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Ensino superior e políticas públicas: muito pouco, demasiado tarde?

O ensino superior em Portugal tem novos problemas que precisam de ser resolvidos. Como dar resposta? Ensaio de Pedro Nuno Teixeira, Hugo Figueiredo, João Cerejeira e Miguel Portela.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

O ensino superior tornou-se um não-tema na sociedade portuguesa. A não ser por motivos menos recomendáveis, ou pelos três Ps – Praxes, Propinas e Protestos –, pareceria que seria um assunto arrumado onde tudo (ou quase tudo) estaria resolvido. A juntar a isto, criou-se a perceção na opinião pública que já teríamos resolvidos os problemas de qualificação, sobretudo nos mais jovens, até pelos episódios de desemprego e emigração de diplomados, prontamente ampliados pelos velhos e novos media, perceção essa que nem o retomar recente do emprego e do crescimento parece ter apagado.

Assim, e segundo dados recentes da OCDE (Education at a Glance, 2018), 40% dos jovens portugueses com 20 anos estão hoje inscritos no ensino superior, o que não compara de modo muito desfavorável com o que se observa na média dos países da OCDE. Habituados que estamos a vexames estatísticos quando nos comparamos internacionalmente em educação, estes valores têm contribuído para uma certa complacência satisfeita. Além disso, o lado mais sexy do ensino superior, o da investigação, desenvolvimento e inovação, tende a aparecer no debate público e político como que desvinculado do “restante” ensino superior, como se este não fosse preciso e não se tratassem de sistemas fortemente interligados e que se complementam e alimentam mutuamente. Assim, nos últimos anos foi notória a perda de entusiasmo com o ensino superior enquanto fator de crescimento económico, de criação de oportunidades individuais e de dinamização e inovação económica e social.

Ora, como se evidenciará neste ensaio, existe ainda um longo caminho a percorrer no desenvolvimento das políticas públicas do ensino superior em Portugal – e, em grande medida, esse caminho começa no acesso ao ensino superior e na consciencialização entre os mais jovens dos benefícios da formação superior.

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A situação portuguesa no contexto internacional

De certo modo, é possível afirmar que o ensino superior está a ser vítima do seu próprio sucesso, nomeadamente nas décadas de 80 e 90 do século passado que assistiram não apenas à maior expansão do sistema, mas, igualmente, ao forte aumento das vantagens monetárias associadas a esses investimentos. Contudo, em anos mais recentes, seja por influência de mudanças na força relativa da oferta e procura de ensino superior, seja porque a economia portuguesa entrou num período de forte estagnação, seja por influência da própria crise, o panorama alterou-se. À medida que os salários reais dos mais jovens começaram a cair e à medida que os níveis de desemprego na economia aumentaram, tornou-se mais difícil passar a mensagem de que os benefícios do ensino superior continuam a ser elevados. Quando uma parte importante dessa vantagem passa por “evitar males maiores”, torna-se mais difícil converter os mais desconfiados (e muitas vezes menos bem informados), mesmo sendo as vantagens relativas aquelas que devem guiar as decisões de investimento.

À medida que os salários reais dos mais jovens começaram a cair e à medida que os níveis de desemprego na economia aumentaram, tornou-se mais difícil passar a mensagem de que os benefícios do ensino superior continuam a ser elevados

Todavia, quando analisamos os dados com mais cuidado, percebemos que a nossa posição internacional não é tão favorável como parece e que esta perda de visibilidade do ensino superior pode ter custos elevados a médio e longo prazo. Menos de um quarto da nossa população ativa tem formação superior, um valor bastante abaixo da média dos países da OCDE. Mesmo entre os jovens em início de carreira (com idades entre os 25 e os 34), continuamos abaixo da média (ver Figura 1), situação que ocorre sobretudo entre os homens para quem o problema de abandono precoce do ensino continua a assumir dimensões preocupantes. Isto não quer dizer que a expansão do ensino superior em Portugal não esteve isenta de problemas ou que bastará continuar a expandir como no passado.

Ao mesmo tempo parece existir um paradoxo na economia portuguesa na medida em que, mesmo sendo uma economia com défices de qualificações importantes e retornos elevados associados aos investimentos em educação, parece haver menor tolerância para alguns dos efeitos (em grande medida esperados) da massificação dos níveis mais elevados de ensino. Esta expansão e as mudanças múltiplas a que assistimos na economia, na tecnologia ou na sociedade colocam novos desafios de política pública que implicam repensar a estratégia para o ensino superior. É sobre isso que tentaremos refletir, alertando ainda para um contexto complexo e crescentemente desigual na transição dos diplomados para o mercado de trabalho e nos benefícios económicos da formação superior.

Benefícios (presentes e futuros) do ensino superior: elevados mas desiguais

Os dados mais recentes mostram que, de uma forma generalizada, os indivíduos com uma formação superior apresentam uma taxa de desemprego inferior à dos trabalhadores com o ensino secundário. A Figura 2 apresenta assim dados sobre a evolução da taxa trimestral de desemprego para indivíduos entre os 25 e os 34 anos de idade, comparando as taxas de desemprego dos diplomados do ensino secundário e superior com a taxa global. Além da queda extraordinária dos níveis globais de desemprego é interessante observar a vantagem relativa da formação superior que parece querer estar a aparecer nos trimestres mais recentes. Num estudo recente sobre os “Benefícios do Ensino Superior” (FFMS, 2017), mostramos igualmente que a escolaridade ao nível do ensino superior aumenta a probabilidade de o indivíduo desempregado encontrar emprego, inclusivamente em períodos de abrandamento ou recessão económica.

A taxa média de desemprego dos diplomados disfarça uma grande dispersão dos valores entre cursos, entre áreas de formação, entre ciclos de ensino (licenciaturas e mestrados), bem como ao nível da duração do desemprego (de curta ou de longa duração)

No entanto, a taxa média de desemprego dos diplomados disfarça uma grande dispersão dos valores entre cursos, entre áreas de formação, entre ciclos de ensino (licenciaturas e mestrados), bem como ao nível da duração do desemprego (de curta ou de longa duração). Olhando para os dados do desemprego diplomado disponibilizados pela Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), observamos que a incidência de desemprego em 2017, para todos os ciclos de graduação, é de 3,9%. Esses dados mostram uma incidência de desemprego para as Licenciaturas de 1.º Ciclo, cursos Pós-Bolonha, de cerca de 4,2%.

No entanto, há cerca de 5% de licenciaturas com taxas acima dos 17%, sendo que a dispersão típica ultrapassa os 10 pontos percentuais. Este problema de dispersão é o mais relevante, pois existe uma desigualdade significativa entre as diferentes áreas de formação (ver Tabela 1). Destacam-se ao nível das taxas mais baixas a Saúde e Proteção Social, Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) e Ciências Naturais e Engenharias, com taxas médias de incidência de desemprego em torno dos 3% e dispersão entre os 8 e os 9 pontos percentuais. As áreas das Ciências Sociais e Artes e Humanidades registam valores médios de desemprego acima dos 5% e uma dispersão na ordem dos 13 pontos percentuais. A Figura 3 mostra, adicionalmente, o desequilíbrio entre a quota de diplomados e a quota de desempregados diplomados entre as diferentes áreas de formação.

Vários trabalhos de investigação têm vindo também a mostrar, de forma consistente, o elevado retorno do investimento em ensino superior em Portugal. A conclusão é válida seja quando este é medido considerando os diferenciais individuais de salários dos diplomados face a indivíduos menos qualificados, seja quando consideramos os efeitos coletivos de produtividade e rendimento que níveis mais elevados de educação proporcionam. O aspeto mais surpreendente dos dados apresentados na Figura 4, para o período compreendido entre 2006 e 2016, é a manutenção dos prémios salariais em níveis muito elevados para os mestres, sobretudo dos homens. Tomando como base trabalhadores com o ensino secundário, em 2006 o prémio salarial associado a um diploma ultrapassava os 75% entre os trabalhadores com um máximo de 10 anos de experiência. Esta vantagem salarial diminui de forma gradual para os licenciados, atingindo valores médios inferiores a 50% em 2016. Entre os mestres, observa-se que para os homens a vantagem no salário horário real permanece estável ao longo desta década, aproximando-se dos 90%, ao passo que para as mulheres há uma quebra na ordem dos 10 pontos percentuais.

Vários trabalhos de investigação têm vindo a mostrar o elevado retorno do investimento em ensino superior em Portugal

Manuel Almeida/LUSA

Os mestrados parecem assim ter servido como autênticos paraquedas durante este período de queda de salários reais, sobretudo para os homens. Esta nova cisão entre mestres e “apenas” licenciados parece-nos da maior importância, sobretudo quando associada aos baixos níveis salariais entre os licenciados e à forte queda dos prémios do salário horário da licenciatura. Esta tendência cria um forte incentivo à continuação de estudos superiores, imediatamente após a conclusão do primeiro ciclo, mas abre um novo espaço de desigualdade, na medida em que o acesso ao segundo ciclo de ensino universitário não adota as mesmas regras de jogo, existindo aí mais espaço de mercado, nomeadamente ao nível da definição do valor das propinas. Além disso, mesmo entre mestres (e à medida que este nível de ensino se generaliza), parece existir uma tendência para o aumento da desigualdade de salários relativos.

Além disso, o prémio salarial atribuído às áreas de Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática (CTEM) tem também vindo a aumentar, o que parece estar relacionado com a maior capacidade de acesso a melhores empregos (seja em melhores empresas, seja ao nível de setores de atividade específicos, seja em posições hierárquicas mais elevadas ou novos especialismos). Estes efeitos parecem também ter saído reforçados do período de crise já que os mestres e os doutorados nas áreas CTEM sofreram menores perdas salariais durante esses anos.

As rápidas e acentuadas alterações tecnológicas, registadas em particular na última década, poderão já estar a ter um impacto significativo no funcionamento do mercado de trabalho. Os trabalhadores mais afetados pelas alterações tecnológicas são, como esperado, aqueles que desempenham tarefas manuais e rotineiras

Por outras palavras, as rápidas e acentuadas alterações tecnológicas, registadas em particular na última década, poderão já estar a ter um impacto significativo no funcionamento do mercado de trabalho. Os trabalhadores mais afetados pelas alterações tecnológicas são, como esperado, aqueles que desempenham tarefas manuais e rotineiras. Contudo, alguns trabalhadores que desempenhem tarefas cognitivas, mas que sejam rotineiras, enfrentarão igualmente dificuldades crescentes na obtenção de um emprego habitualmente associado às suas qualificações. O muito citado artigo de Frey e Osborne (2017), “The future of employment: How susceptible are jobs to computerisation?” estima que 47% do emprego nos EUA está em ocupações com elevada probabilidade de automação nas próximas duas décadas. Usando uma metodologia semelhante, os autores deste ensaio calcularam para Portugal uma percentagem de 58%. Em ambos os casos, as profissões onde a qualificação média dos trabalhadores é mais elevada, são também as profissões onde será menos provável a substituição do trabalho por tecnologia – maior qualificação académica parece ser condição necessária mas não suficiente para o mercado de trabalho do futuro, como veremos a seguir.

Neste contexto, a opção pelo tipo de formação ao nível do ensino superior não será só em termos de nível ou mesmo em termos de área de formação, ainda que esta seja importante, mas será sobretudo focado no tipo de competências adquiridas durante os trajetos no ensino superior, muitas delas transversais a determinadas áreas. Deste modo, teremos um mercado de trabalho cada vez mais diversificado mas não necessariamente paritário, em que nem todos beneficiam da tecnologia da mesma forma. Neste contexto, os trabalhadores terão de aumentar o seu capital humano, reforçando-se, por isso, o papel da aprendizagem contínua, da necessidade do trabalhador se adaptar a rápidas alterações no mercado de trabalho e uma continuada e rápida realocação de trabalhadores a novas tarefas.

Políticas públicas e promoção do acesso ao ensino superior: as propinas não são tudo

É neste contexto que se enfatiza a importância de o ensino superior se adaptar rapidamente a todas estas mudanças. Os dados que fomos apresentando ao longo deste ensaio levantam novos problemas para as políticas públicas do setor, acerca das quais importa refletir.

Se, pelas razões que apontamos, interessa cofinanciar o investimento em ensino superior (e já lá vamos à forma), não se percebe neste novo quadro que a manutenção de limites máximos às propinas praticadas seja feita apenas ao nível do primeiro ciclo ou de alguns mestrados integrados. Este argumento é exposto de forma simples mas eloquente num artigo recente assinado por Susana Peralta no jornal Público. No contexto que descrevemos anteriormente, a “liberalização de preços” ao nível dos restantes mestrados cria, eventualmente, mecanismos de certificação de capacidade de compra mais do que de mérito, reduzindo as possibilidades de mobilidade social. Como refere a autora, nem todos os países europeus em processos de massificação do ensino superior optaram por essa via, tendo alguns optado por praticar propinas iguais nos dois ciclos.

O problema, contudo, não se resolve necessariamente por redução de propinas. Há instrumentos preferíveis. Mais importante seria, assim, criar maior inclusão a partir de mecanismos de acesso a crédito ou do reforço de bolsas de ação social

Deste modo, a criação de mecanismos de financiamento (sejam propinas ou empréstimos) ou de apoio social complementares (bolsas), que evitem a exclusão, são essenciais. O problema, contudo, não se resolve necessariamente por redução de propinas. Ainda que seja expectável que o aumento de propinas, sem qualquer ação complementar, resulte em menor mobilidade social (e ainda que existam alguns méritos em estabelecer valores máximos para evitar os problemas de certificação por exclusão que referimos anteriormente), há instrumentos preferíveis. Mais importante seria, assim, criar maior inclusão a partir de mecanismos de acesso a crédito ou do reforço de bolsas de ação social. No contexto ainda seletivo de acesso ao ensino superior em Portugal, a redução de propinas é um instrumento de muito menor progressividade quando comparada com o eventual reforço de bolsas (na medida em que uma parte substancial do benefício é alocado a alunos de contextos socioeconómicos favorecidos).

Por seu lado, a discussão sobre a reintrodução de mecanismos de acesso a crédito não pode também acontecer desligada das escolhas relativas à gestão da rede de instituições de ensino superior. Um mecanismo de acesso a crédito será tão mais inclusivo quanto mais apoiar o crescimento do acesso a instituições e programas de qualidade e atratividade. Caso contrário, daqui a alguns anos poderemos estar perante um debate semelhante ao que caracteriza sistemas como o americano: o da existência de endividamento excessivo face ao nível de retornos em pelo menos algumas áreas de ensino superior e para alguns segmentos de instituições.

Os problemas de organizar o ensino superior em contexto de mercados puramente livres são muitas vezes utilizados para justificar o estabelecimento de numerus clausus de acesso ao sistema. Estes podem ser aliás um mecanismo para reorientar a oferta de habilitações superiores, aproximando-as da (nova) estrutura da procura que discutirmos. Mas existem sempre duas vias de expansão ou de reorganização da rede de oferta de ensino superior. Promover o acesso mais generalizado possível aos percursos de maior qualidade no ensino superior deverá ser, parece-nos, o elemento unificador de uma abordagem política renovada à regulação do ensino superior.

é possível afirmar que o ensino superior está a ser vítima do seu próprio sucesso, nomeadamente nas décadas de 80 e 90 do século passado

MIGUEL A. LOPES/LUSA

O sistema de ensino superior deve procurar acomodar, em princípio e talvez sobretudo ao nível do segundo e terceiro ciclos, maior diversidade de percursos de formação, maior permeabilidade a novas procuras de competências, eventualmente com maior ligação ao meio e maior presença de aprendizagens ativas. Um sistema binário, como o sistema português, pode em princípio ser utilizado como uma ferramenta para criar essa maior diversidade. No entanto, não basta a existência de universidades e politécnicos para que essa diversidade de percursos de formação cresça ou seja fomentada sobretudo no ensino politécnico. Por um lado, será importante que, em vista das assimetrias de informação existentes nos mercados de ensino superior e a eventual falta de mecanismos de reconhecimento do valor dos ciclos de estudo por parte de empregadores, a reputação de qualidade e empregabilidade não seja monopolizada por algumas universidades. No futuro que já está aí, poder-se-á acentuar a importância da complementaridade entre a aprendizagem em contexto de sala de aula e a aquisição de informação com recurso à tecnologia, por exemplo. De que forma se pode preparar o ensino superior para esta nova realidade? Só criando incentivos claros à maior ligação ao meio envolvente e à inovação pedagógica em resposta às novas necessidades da procura, poderão as instituições de ensino responder cabalmente de forma a evitar hiatos de qualificações.

Só criando incentivos claros à maior ligação ao meio envolvente e à inovação pedagógica em resposta às novas necessidades da procura, poderão as instituições de ensino responder cabalmente de forma a evitar hiatos de qualificações

Em suma, muito há a fazer no ensino superior, sobretudo pelo seu papel na determinação de futuros individuais e coletivos. Em que medida os níveis de desigualdade de riqueza e rendimento na nossa sociedade limitam esse processo de expansão do ensino superior? O que podemos fazer para que aqueles que nas suas famílias são os primeiros licenciados (ou mestres) continuem a poder contribuir ativamente para o aumento dos índices de produtividade da nossa economia, partilhando os seus frutos? Dar resposta a estas questões será decisivo para apoiar os principais desafios que se colocam já hoje à nossa economia e à nossa sociedade. Em termos económicos, o da transformação do nosso modelo de crescimento; em termos sociais, como limitar o nível de desigualdade e os seus efeitos perversos na coesão social e na participação política.

Pedro Nuno Teixeira é Diretor do CIPES e Professor na FEP da Universidade do Porto.
Hugo Figueiredo é investigador do CIPES e Professor na Universidade de Aveiro.
João Cerejeira e Miguel Portela são investigadores no NIPE, no CIPES e Professores na Universidade do Minho.

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