Na passada sexta-feira, fui pela primeira vez ao Mercado Medieval de Óbidos à procura de uma história. Mal passei as muralhas do castelo, um holandês vestido de cruzado explicou-me que decidira desviar o seu itinerário por Portugal depois de ouvir falar desta “crazy party”. No entanto, não era a festa propriamente dita o que mais me interessava. Vim conhecer melhor a comunidade medieval portuguesa, não por um qualquer interesse em revivalismos históricos, antes por querer olhar para comunidades excêntricas, de forma a perceber melhor esse sentimento de pertença que ativamos, de maneira mais ou menos inconsciente, perante objetos banais, como sejam cachecóis de clubes de futebol, T-shirts dos Nirvana ou crucifixos. A ideia tinha, aliás, uma aura renascentista que me agradava: o que Montaigne fizera com indígenas de tribos do Brasil chegados a Paris em meados do século XVI faria agora este pobre cronista com obidenses trajados com coitas e tabardos − vinha para espreitar a peculiaridade das suas vidas e assim me tornar mais consciente da peculiaridade que o hábito ocultara na minha.
Com a cabeça cheia de teorias que queria à força confirmar, lembrei-me ainda de que a Idade Média foi assim designada pelos italianos por constituir um período de intervalo entre dois grandes momentos de grandeza (o Império Romano e o Renascimento) e imagino que também isso seja um atrativo turístico: regressar a um tempo de banalidade, em que nada se passava.
Armado de tamanha galhardia, pus-me a andar para a frente e para trás pelo castelo de Óbidos. Visitei uma mancebia e falei com quatro ou cinco meretrizes, apenas para perceber o que deveria ter sido óbvio antes de partir: não se tratavam propriamente de entusiastas do mundo medieval, mas antes de estudantes de teatro contratadas para um trabalho imersivo. Falei com uma delas, a Jocosa, que me encorajou, dizendo que com certeza iria encontrar umas quantas pessoas com fetiches medievais. Nada disso aconteceu.
As pessoas subiam e desciam a encosta do castelo e parecia-me que cada uma delas o fazia por motivos diferentes e impossíveis de uniformizar em torno de uma qualquer ideia de comunidade: homens trajados para beberem uns canecos de hidromel, habitantes locais de Óbidos e de terras adjacentes entusiasmados pela animação trazida às suas terras, turistas espanholas movidas pela curiosidade, pais divorciados a quererem proporcionar um fim-de-semana diferente aos filhos, casais de belgas a fazerem tempo para o começo do festival Boom, em Idanha-a-Nova.
Tinha cada vez mais a convicção de que, apesar do bom gosto da recriação medieval, da coerência dos pormenores, do empenho da organização e do genuíno entusiasmo das muitas pessoas (trajadas à século XIII e à século XXI) que havia à minha volta, seria impossível escrever este artigo. Desanimado, sentei-me num dos três anfiteatros do Mercado a assistir à encenação de um julgamento, em que os atores iam repetidamente interagindo com um público que, para meu grande desespero, nem sequer procurava esconder que cinco minutos antes havia passado os olhos pelo Facebook, feito uma story no Instagram e pagado a entrada com o MB Way. Um homem acusado de sodomia e uma mulher adúltera são presos numa gaiola, para gáudio dos espectadores.
Ao abandonar o julgamento, por entre as pessoas que andavam em todas as direções, vejo o senhor Américo, parado precisamente a meio da encosta. Pergunto-lhe se é um ator e ele responde-me: “Não. Eu sou o leproso”. Cinco metros atrás de si, vê-se uma fotografia sua acompanhada de um texto em português e outro em inglês a explicar precisamente isso. Conta-me que mora nas Caldas da Rainha e que vem ao Mercado Medieval há vinte e um anos, sempre convidado pela organização. Tem oitenta e sete anos e diz que esta será a última edição em que participará. Já anunciara isso nos dois anos anteriores, mas desta vez não há volta a dar. Fico algum tempo a conversar com ele e descubro pelo próprio que tenho perante mim “a pessoa mais bem-vista das Caldas da Rainha”. Não encontro motivos para duvidar.
Nos cinco minutos que ali passo, a nossa conversa é interrompida várias vezes por pessoas que querem tirar fotografias com o senhor Américo e que me garantem que o leproso é “uma relíquia da feira”. O meu novo amigo conta-me ainda que é uma espécie de mascote do clube de futebol da sua terra, a cujos jogos assiste religiosamente, e que tem uma empresa funerária chamada Cá Te Espero. As unhas do senhor Américo e as chagas com que alguém lhe cobriu os braços e o rosto tornam-no numa espécie de Eclesiastes carnavalesco, mas a majestade que nele encontro em nada depende da máscara que usa.
Passa uma procissão de monges, rameiras, encantadoras de patos e pastores. No meio deles, um rapaz loiro da África do Sul vestido de cardeal com que conversara antes parece agora convencido da sua própria solenidade enquanto sorri e tenta equilibrar uma mitra na cabeça.
Afasto-me e desço a encosta. Cruzo-me com a Dona Inês e a Andreia, duas amigas impecavelmente vestidas para a ocasião. Pergunto-lhes se já vieram muitas vezes e também elas me garantem frequentar o Mercado desde a primeira edição. Dona Inês, microbióloga no mundo civil e a mais conversadora das duas, explica-me que da primeira vez tinham aparecido com roupas do nosso tempo, mas que a partir daí se deixaram entusiasmar e compraram vários trajes medievais cujos nomes me esqueci de apontar. Informa-me ainda de que tem uma banda de folk metal e explica que há uma relação entre esses dois interesses. Segundo Dona Inês, ainda que a vida medieval seja em eventos deste tipo naturalmente romantizada, haveria no período histórico que mais a fascina, tal como na música metal, uma ligação forte a uma certa naturalidade do homem que a encanta. Quando nos despedimos, convida-me a ir ver a justa dali a pouco, onde Dona Inês seria protagonista ao lado do marido, que com ela começara a ir a feiras medievais e que mais tarde, movido por esse interesse, se licenciara em História.
Agradeço o convite e desço rumo ao anfiteatro, para ver a prometida justa em honra de Dona Urraca. As bancadas estão cheias, mas arranjo um lugar lateral junto a um monge beneditino francês. Seguem-se quarenta minutos de provas de destreza a cavalo que culminariam com Dona Inês a dar uma sova de meia-noite a um aio com uns dois metros de altura numa luta de espadas.
Quando me preparo para sair, cruzo-me com Dom Carlos Manuel, um poeta todo vestido de vermelho que parece saído do Shire de Tolkien. Peço-lhe cinco minutos do seu tempo, mas ele acaba por me dar bem mais do que isso. Oferece-me um poema e conta-me a sua história. Nasceu no Bombarral na década de cinquenta e, antes de se mudar aos dez anos para o estado americano do Massachussets, vinha para o castelo num carro de bois brincar aos cristãos e aos mouros. Diz que o que ali faz agora não é muito diferente disso. Ri-se. Nos Estados Unidos, casou com uma senhora do Tennessee, seguiu a carreira militar e participou em três guerras. Começa a falar da herança mourisca, do seu nariz árabe e das injustiças da história para com essa parte da nossa portugalidade. Confesso-lhe que não imaginei a conversa a prosseguir nessa direção. Já foi Camões, Ponce de Leão e, além do referido Dom Carlos Manuel, é anualmente cirurgião do XIX Regimento da Infantaria das tropas portuguesas na reencenação da batalha napoleónica de Almeida. Tento saber o que o leva a mascarar-se de tantas figuras diferentes e, numa explicação sinuosa cheia de apartes, o poeta feiticeiro fala-me da importância de aprender história através da humanidade das figuras que a moldaram. Deixo-o em paz para que possa voltar a fazer as delícias das crianças do mercado.
À procura de uma conclusão para o que ali vira e de um sítio para jantar, subo de novo em direção ao centro da festa, onde o pôr do sol, o baixo preço das cervejas e a música folclórica vão desinibindo os participantes. Ao contrário do que acontecera durante o dia, agora que a noite chegou, as roupas medievais aparentam dar um livre-passe aos que as vestem, permitindo-lhes, em certa medida, ausentarem-se de si mesmos. Um participante com um traje que parece uma mistura de jogral com Homem-Aranha dança freneticamente junto ao fogo dos crepes. Quando a música para, meto conversa com ele e diz-me que é um expatriado sintrense oriundo dos Estados Unidos. Pergunto-lhe se a roupa o deixa mais desinibido, mas ele garante-me que não. Não consigo deixar de me sentir desolado pela falta de adesão das minhas teorias à realidade e acuso interiormente o jogral aracnídeo de faltar à verdade. Indiferente à minha frustração, ele afasta-se para junto dos amigos. No cimo de um morro, vejo um homem ajoelhado em frente à namorada. Entusiasmo-me ao julgar que se trata de um pedido de casamento, mas a falta de anel, de solenidade e de lágrimas assevera-me que se tratou apenas de uma brincadeira. Raios partam o azar.
Cruzo-me mais uma vez com Dona Inês e dou-lhe os parabéns pela vitória, ao que ela responde que a narrativa não funcionaria de outra forma: a mulher vencida pelo homem não interessa aos espectadores. Dou-lhe razão, vejo as notificações do meu telefone e vou à procura do carro, estacionado do lado de fora da Idade Média. É tempo de voltar a casa.
João Pedro Vala é escritor, autor do romance “Grande Turismo”. Passeio das Virtudes é uma rubrica sobre vidas portuguesas e portugueses nas suas vida