Índice
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Leonardo preencheu milhares de páginas com apontamentos e esboços sobre assuntos tão diversos como engenharia militar, hidráulica, anatomia, geologia, aerodinâmica e paleontologia; desenhou máquinas e mecanismos que poderiam ter sido os antecessores do avião, do helicóptero ou do tanque; embrenhou-se em ambiciosos e visionários projectos de engenharia, arquitectura e urbanismo; o seu talento como pintor fez dele um dos artistas mais requisitados da Europa do seu tempo e os seus quadros estão hoje entre os mais valiosos e célebres.
Todavia, quando se confronta o fabuloso potencial de Leonardo com as suas realizações efectivas, a disparidade é gritante: deixou por concluir a maior parte dos seus projectos artísticos, as suas múltiplas descobertas e intuições no domínio científico permaneceram ignoradas durante séculos e, de uma forma geral, dissipou ingloriamente boa parte da sua criatividade numa demanda sem propósito definido nem continuidade, numa dispersão e inconstância de tais proporções que levou a que fosse avançada a teoria de que sofreria de síndrome de déficite de atenção e hiperactividade.
Vinci: 1452-1466/8
Filho bastardo que não deve ter ido à escola (ou não seria canhoto)
A verdade é que as circunstâncias do nascimento de Leonardo, a 15 de Abril de 1452, em Anchiano, perto de Vinci, não lhe auguravam grandes perspectivas de carreira: era filho ilegítimo de Piero da Vinci (1426-1504), notário em Vinci, na Toscânia, e membro de uma abastada e respeitada família local – embora não aristocrática – e a sua posição elevada era denotada pelo uso do tratamento “Ser” (de “Messer”). A mãe de Leonardo, Caterina, era uma simples camponesa de Anchiano, que Ser Piero, um homem ambicioso, nunca iria considerar ser mais do que uma “aventura” ocasional.
Com efeito, no ano em que Leonardo nasceu, Ser Piero casou-se com Albiera Amadori, filha de outro notário (os casamentos dentro do mesmo “ramo de negócio” eram então usuais). Esta faleceu em 1464 sem lhe dar filhos, mas Ser Piero voltou a casar-se mais três vezes e, após dois casamentos sem filhos, a terceira e quarta mulheres deram-lhe, cada uma, seis filhos e é claro que estes tinham precedência sobre Leonardo na atenção e favores do pai.
Pelo seu lado, Caterina casou-se, poucos meses depois do nascimento de Leonardo, com alguém da sua condição – um trabalhador num forno de cal, com a sugestiva alcunha de “Arranja-Brigas” – e foi com eles que Leonardo viveu, em Campo Zeppi, um lugarejo vizinho de Anchiano, até aos cinco anos, altura em que passou a viver com os avós paternos em Vinci – o avô, Antonio, tinha-se recusado, ainda muito novo, a prosseguir o “negócio da família” (o notariado) e optara por levar uma pacata vida rural.
Há quem sugira que Leonardo não terá frequentado a escola, pois se o tivesse feito, a sua escrita canhota – que, na época, era muito mal vista – teria sido corrigida. Assim, terá recebido apenas uma educação informal, ministrada desgarradamente pelo avô e pelo tio Francesco, o que não é inesperado, uma vez que a sociedade daquela época impunha restrições aos “bastardos” (que não tivessem sangue aristocrático), nomeadamente barrando-lhes o acesso ao ensino superior ou a profissões “respeitáveis”. Aparentemente, boa parte da infância foi passada a vaguear livremente pelos campos à volta de Vinci.
Florença: 1466/8-1482
De rapazola rústico a aprendiz e mestre (com acusações de sodomia)
O avô Antonio faleceu em 1468 e a sua viúva, Lucia, não lhe sobreviveu mais do que uns meses. Leonardo terá então sido acolhido em Florença por Ser Piero, que se mudara em 1462 para esta cidade onde os seus antepassados já tinham ocupado cargos oficiais de prestígio. Não há certeza quanto à data da ida de Leonardo para Florença – alguns estudiosos sugerem que teve lugar dois anos antes – nem da subsequente admissão como garzone (aprendiz) na bottega (oficina) do pintor e escultor Verrocchio (1435-1488, Andrea di Cione, de seu nome de baptismo), que terá tido lugar algures entre os 14 e os 17 anos de idade.
No mundo de meados do século XV, Leonardo dificilmente poderia ter encontrado um local mais propício à eclosão do seu intelecto do que Florença: era uma cidade cosmopolita, com intensa actividade comercial e artística, e beneficiava de um clima de tolerância invulgar para os padrões do final da Idade Média. A República Florentina estava, claro, longe de ser uma república nos moldes modernos e a sua “democracia” era na verdade uma plutocracia, cujo controlo acabara por ser exercido hereditariamente pela poderosa família de banqueiros Medici.
Em 1469, por altura da admissão de Leonardo na oficina de Verrocchio, Piero de’ Medici faleceu, sendo sucedido pelo seu filho Lorenzo (1449-1492), homem de vasta cultura e um dos maiores mecenas das artes da História, justificando o cognome de “Il Magnifico”.
Pelo seu lado, a bottega de Verrocchio era um verdadeiro viveiro de talentos, dando formação, entre outros, a pintores como Sandro Botticelli (1445-1510), Perugino (c.1448-1523) e Lorenzo di Credi (c.1459-1537). Leonardo ascendeu rapidamente na hierarquia da oficina, passando do degrau mais baixo (garzone) ao mais alto em muitos menos anos do que os 13 prescritos no Tratado de pintura de Cennino Cennini: em 1472, com apenas 20 anos (três a seis anos depois de ter sido admitido como aprendiz), era formalmente inscrito como mestre na guilda dos pintores, mantendo-se, todavia, vinculado à oficina de Verrocchio.
Na época, era usual que o mestre delegasse nos aprendizes a execução de partes menos elaboradas dos quadros, como a paisagem ou as roupagens; os discípulos mais talentosos eram por vezes encarregados das figuras secundárias – segundo Vasari, no quadro O Baptismo de Cristo, de Verrocchio, este terá confiado a Leonardo o anjo da esquerda, que segura a túnica de Cristo (e que, efectivamente, está trabalhado numa técnica diversa do resto do quadro).
Há também quem sugira que Leonardo, que se transmutara de um rapazola rústico num dandy de grande beleza e elegância, que dava preferência a túnicas cor-de-rosa e audaciosamente curtas (a crer nas fontes), terá sido o modelo para uma estátua de bronze de David que foi encomendada a Verrocchio pelos Medici e foi executada c.1473-75.
Desta época data também uma magnífica Anunciação que inicialmente foi atribuída parcialmente a Verrocchio, mas que a maioria dos especialistas julga hoje tratar-se de uma obra essencialmente de Leonardo.
Outra obra da oficina de Verrocchio, conhecida como Madonna Dreyfus, tem visto a sua atribuição oscilar entre Leonardo – com uma datação de 1469 – e Lorenzo di Credi – com uma datação de c.1475-80 – parecendo ser este último o candidato mais provável. A balança inclina-se decisivamente para Leonardo no caso da Virgem do cravo (c.1473-80), que começou por ser atribuída a Verrocchio.
Também de atribuição quase consensual a Leonardo é o retrato de Ginevra de’ Benci (c.1474-78), filha de um família de abastados mercadores florentinos e, à data, noiva do banqueiro Luigi di Bernardo Niccolini, também ele elemento proeminente da sociedade florentina.
Quando Leonardo começava a afirmar-se como artista, ainda que continuasse vinculado à oficina de Verrocchio, a sua vida sofreu um sobressalto: em Abril de 1476 foi alvo de uma denúncia anónima que o acusava de, com mais três indivíduos, ter sodomizado um certo Jacopo Saltarelli. Florença era uma cidade de costumes “liberais” para a época, nomeadamente no domínio sexual, a ponto de, na Alemanha, “Florenzer” (florentino) ser, então, sinónimo de homossexual. Todavia, do ponto de vista formal, a prática de actos homossexuais não deixava de ser duramente reprimida: a pena prevista era a castração (no caso de os envolvidos serem adultos) ou amputação de um pé ou de uma mão (no caso de serem menores).
Após duas audiências com os acusados, o caso foi arquivado em Junho de 1476, por não terem sido apresentadas provas ou testemunhas – e talvez por um dos acusados, Leonardo Tornabuoni, pertencer a uma família aristocrática ligada aos todo-poderosos Medici (a mãe de Lorenzo Il Magnifico era Lucrezia Tornabuoni).
A partir do Verão de 1477, o lugar de Leonardo como assistente de Verrocchio passou a ser desempenhado por Lorenzo di Credi e por volta de 1478 Leonardo produziu aquela que é vista como a primeira obra produzida “por conta própria”: um quadro que foi dado como perdido durante séculos e é hoje conhecido como Madonna Benois, por ter sido o arquitecto russo Leonti Benois quem, em 1909, o descobriu entre a colecção de arte da sua família. É um regresso ao tema “Virgem com Jesus e flores”, já abordado na Virgem do cravo, e, dada a incerteza das datações, é possível que as duas obras tenham sido produzidas na mesma altura.
Até agora, o trajecto de Leonardo parecia seguir os trâmites usuais de um jovem pintor muito promissor, mas, ainda em 1478, ocorre um episódio sintomático do que será a sua carreira: recebe a primeira encomenda “oficial” de um quadro, destinado ao altar da capela de São Bernardo, no Palazzo Vecchio, mas após produzir um esboço, não há sinal de que tenha voltado à obra, ainda que esta fosse generosamente remunerada, atendendo a que se tratava de um artista em início de carreira. A encomenda acabou por ser entregue a Domenico Ghirlandaio e, depois, a Filippino Lippi.
Incompleto ficaria também um São Jerónimo iniciado c.1480 e cujo encomendador é desconhecido.
Também a encomenda, em 1481, de uma Adoração dos Magos para o mosteiro de San Donato, em Scopeto, ficou incompleta – mais uma vez, coube a Filippino Lippi executar a encomenda. É possível que Leonardo não tenha prosseguido com a pintura por os monges de San Donato terem rejeitado a sua pouco ortodoxa abordagem ao tema – com efeito, o protagonismo da Virgem, de Jesus e dos três reis magos dilui-se na agitação de várias figuras alheias às convenções das representações de cenas bíblicas e entre vários detalhes assaz bizarros – cavalos caracoleando, uma escadaria destituída de função…
Mas Leonardo tinha ainda outra atenuante para não ter completado a Adoração dos Magos: em 1482, Lorenzo de’ Medici enviou-o a Milão numa espécie de missão diplomática, destinada a fortalecer a aliança com este ducado. Leonardo, que aprendera (supostamente com Verrocchio) a tocar lira da braccio (instrumento de cordas friccionadas afim do violino), tornara-se num talentoso executante e a sua curiosidade levara-o a desenvolver um novo tipo de lira. Lorenzo decidiu oferecer esta ao Duque de Milão e entendeu que a pessoa ideal para a demonstrar seria o próprio inventor, que fez acompanhar de Atalante Migliorotti, que era assistente de Leonardo e um notável cantor.
Milão: 1482-1499
A faceta de engenheiro, o mural da Última Ceia e a paixão por efebos
Leonardo, que estava despeitado com o escasso apreço que Lorenzo de’ Medici mostrava pelos seus múltiplos talentos e vira recentemente frustradas as suas expectativas de ser um dos artistas indicados por Lorenzo ao papa Sisto IV para decorar a Capela Sistina, aproveitou o ensejo da missão diplomática para oferecer os seus serviços ao Duque de Milão.
Como potência económica e centro cultural e artístico, Milão não ficava atrás de Florença, e, embora o seu governante, Ludovico Sforza (1452-1508), não fosse tão culto e amante das artes quanto Lorenzo de’ Medici, também ele estava bem consciente do uso da arte como afirmação de poderio. Na verdade, do ponto de vista formal, Ludovico apenas assumira, em 1481, a regência do ducado até o seu sobrinho Gian Galeazzo atingir a maioridade, mas na prática, era ele o senhor absoluto de Milão – iria depois protelar indefinidamente a subida ao trono do sobrinho, que acabaria por falecer, em circunstâncias suspeitas, em 1494, com 25 anos, permitindo a Ludovico assumir oficialmente o título de Duque que, na prática, era seu há 13 anos.
Surpreendentemente, na sua carta de candidatura a um posto na corte milanesa, Leonardo propunha os seus préstimos antes de mais como inventor de material bélico inovador e de eficácia garantida: pontes portáteis, equipamento de cerco e assalto, artilharia de elevado poder de destruição, navios inafundáveis, carros de combate eriçados de armas de fogo, “em resumo, seja qual for a situação, sou capaz de inventar uma infinita variedade de armas de ataque e defesa”.
Após uma detalhada enumeração dos artefactos bélicos, garantia ser útil também em tempo de paz: “Rivalizo com os melhores na arquitectura, na concepção de edifícios públicos e privados, ou na condução de água de um lugar para outro. Em jeito de post scriptum, acrescentava ser “capaz de executar escultura em mármore, bronze e cerâmica” e, finalmente, publicitava os seus talentos como pintor – a única actividade em que dera provas até então. Apesar de toda a prosápia e auto-confiança que emana da carta, há indícios de que esta nunca foi enviada – o que é muito revelador da personalidade de Leonardo.
Ainda assim, Leonardo entrou ao serviço de Ludovico Sforza, inaugurando um período que um dos seus biógrafos, Michael White (Leonardo da Vinci: The first scientist), afirma ser “o mais feliz, o mais inspirado e o mais produtivo da sua vida”. Não há vestígios de que algum dos muitos engenhos bélicos com que encheu páginas de esboços tenha tido concretização material (em Milão ou noutro lugar qualquer), mas Ludovico atribui-lhe o título de ingeniarius ducalis, um cargo cujas atribuições podiam ir da decoração do palácio ducal ao estudo de uma cúpula destinada a rematar a Catedral de Milão (cuja construção começara em 1386) e só seria dada como completa em 1965).
Leonardo ficou também responsável pela concepção e coordenação das festividades da corte, para as quais terá concebido engenhosa maquinaria de “efeitos especiais”. Entre as suas primeiras (e mais aclamadas) realizações neste domínio esteve Il Paradiso (ou a Festa del Paradiso), um espectáculo multimédia “avant la lettre”, destinado a celebrar o recente casamento de Gian Galeazzo Sforza (o legítimo Duque de Milão, recorde-se) com Isabel de Aragão. Foi apresentado no Castello Sforzesco a 13 de Janeiro de 1490 e combinou uma proto-ópera com libreto de Bernardo Bellincione e uma sucessão de eventos teatrais concebidos por Leonardo, que incluíram uma vistosa alegoria astronómica, que Bellincione descreveu nestes termos: “Foi feita com grande engenho e arte pelo mestre florentino Leonardo da Vinci […], com cada um dos sete planetas representado por um actor […] que teceu elogios à Duquesa Isabel”.
Apesar de ter listado a pintura em último lugar nas suas “habilitações”, Leonardo executou vários quadros no seu período milanês. O primeiro terá sido a Virgem dos rochedos, encomendada em 1483 pela Confraria da Imaculada Conceição, como peça central de um elaborado retábulo no altar da sua capela, sita na Igreja de São Francisco Maior, em Milão, mas quando o pintor a terminou, três anos depois, foi recusada pela confraria por Leonardo não ter cumprido as especificações do contrato: omitira dois profetas indicados pela confraria e não só inserira um João Baptista (em criança) não previsto, como lhe dera um relevo que rivalizava com o de Jesus.
Supõe-se que Leonardo terá vendido o quadro recusado a Ludovico Sforza e que, após mudar de mãos várias vezes, tenha acabado nas colecções de arte dos reis de França – está hoje exposto no Louvre.
A confraria recusou-se a pagar a Leonardo o resto da soma acordada e o imbróglio jurídico entre o pintor e a confraria arrastar-se-ia durante mais de duas décadas – até que, em 1504, o tribunal deu a Leonardo um prazo de dois anos para cumprir o acordado no contrato. Com efeito, existe uma segunda versão da Virgem dos rochedos, que, embora continue a ser pouco ortodoxa, está mais conforme ao estipulado no contrato.
Esta versão, que parece ter sido trabalhada em duas fases – c.1491-96 e 1506-08 – foi, efectivamente exposta no retábulo central da Capela da Imaculada Conceição, até que, em 1781, a confraria foi dissolvida e a pintura foi vendida, passando por várias mãos até terminar no seu actual proprietário, a National Gallery, em Londres. Mas não é certo que Leonardo se tenha submetido aos ditames da confraria: a pintura não está inteiramente terminada e alguns especialistas defendem que teve intervenção de outro(s) pintor(es) e que poderá até ter sido, na sua maior parte, executada pelos aprendizes de Leonardo.
Em 1490, Leonardo tomou sob a sua protecção Gian Giacomo Caprotti (1480-c-1524), um rapaz com dez anos de idade e origens humildes, a quem atribuiu o nome de Salai, que significava literalmente “imundo”, mas que Leonardo empregou com o sentido de “Diabo”. Salai não era um vulgar aprendiz, pois os aprendizes pagavam para trabalhar com os mestres e os registos de Leonardo dão, pelo contrário, conta das muitas despesas incorridas com o “diabrete”, que, para mais, era, segundo Leonardo, “mentiroso, gatuno, teimoso e glutão”. Em contrapartida era muito belo e possuía longos cabelos encaracolados, características que pareciam fascinar Leonardo. A sexualidade de Leonardo tem sido assunto de polémica, mas é evidente a ausência de ligações a mulheres e o fascínio por efebos de rosto angelical e cabelos longos.
Em 1489-90, Leonardo pintou para Ludovico Sforza, um retrato da sua amante Cecilia Gallerani, um quadro que ficou conhecido como Dama com arminho – porém, há quem defenda que a mulher retratada é Joana de Aragão, esposa do rei Fernando II de Nápoles.
1490 é também a data atribuída a um quadro de autoria incerta, conhecido como Madonna Litta (o nome provém da família milanesa que foi proprietária do quadro) e que representa a Virgem a amamentar Jesus. A obra provém seguramente da oficina de Leonardo, havendo dúvida sobre se terá sido pintada por Leonardo ou pelos seus discípulos Giovanni Antonio Boltraffio ou Marco d’Oggiono.
O argumento mais convincente em favor da autoria da Madonna Litta por Leonardo é a forte semelhança entre a Virgem do quadro e o desenho de uma cabeça de mulher feito por Leonardo.
Em 1490 (1485, segundo outros estudiosos), Leonardo terá também pintado Retrato de um músico, representando Franchino Gaffurio (1451-1522), mestre de capela na Catedral de Milão e amigo de Leonardo (e do prestigiado compositor franco-flamengo Josquin Desprez). Na verdade, não há provas substanciais de que o retratado seja Gaffurio e apenas a partitura que segura indica que é um músico.
Em 1495-97, Leonardo (ou a sua oficina) produziu outro retrato feminino para Ludovico Sforza, um quadro hoje conhecido como La belle ferronière, por o adereço que a retratada exibe na testa ser conhecido em francês como “ferronière”. A identidade da retratada tem sido alvo de disputa entre os especialistas, que se dividem entre Cecilia Gallerani (a retratada em Dama com Arminho), Lucrezia Crivelli (outra amante de Ludovico), e Beatrice d’Este (a esposa de Ludovico).
Porém, a obra que mais absorveu o tempo e energia de Leonardo em Milão não foi uma pintura mas o “Gran Cavallo”, uma estátua equestre monumental em homenagem a Francesco Sforza, pai de Ludovico e fundador da casa Sforza. Leonardo, que recebera a encomenda mal chegara a Milão, fez numerosos estudos para a estátua, certamente com gosto, pois os seus cadernos de notas há muito que atestavam o seu interesse por cavalos. Porém, os anos foram passando e a estátua tardava em materializar-se, talvez por Leonardo não ter ideia de como fundir uma estátua desta dimensão inaudita – mais de sete metros de altura e 100 toneladas de peso – para mais estando o cavalo empinado, o que faria todo o peso recair sob as patas traseiras.
Leonardo acabou por adoptar uma pose mais convencional para a estátua e, em 1494, por ocasião do casamento da sobrinha de Ludovico com o imperador Maximiliano I, apresentou publicamente um modelo em cerâmica do monumento a Francesco Sforza – 12 anos depois de a tarefa lhe ter sido atribuída. Mas é possível que continuasse apreensivo quanto à possibilidade de concretizar o megalómano projecto e, assim sendo, é provável que tenha sido com secreto alívio que assistiu ao desenrolar dos acontecimentos políticos desse ano.
Nas suas maquinações para assegurar uma posição proeminente da complexa e turbulenta geopolítica da Península Itálica, Ludovico Sforza tivera a infeliz ideia de espicaçar Carlos VIII de França a reclamar o trono napolitano após o falecimento de Fernando I de Nápoles, em Janeiro de 1494. Carlos VIII aceitou a sugestão mais entusiasticamente do que Ludovico esperara e, após derrotar os inimigos deste, começou a dar sinais de que se preparava para se apoderar também dos territórios do Ducado de Milão. Ludovico viu-se forçado a inverter subitamente as suas alianças e a tomar o bronze que estava destinado para o “Gran Cavallo” para fundir canhões desesperadamente necessários para fazer face às tropas francesas. O projecto da estátua monumental ficou suspenso, mas em 1499 as tropas francesas tomaram Milão e danificaram irremediavelmente o cavalo de cerâmica (usando-o como alvo) e a ideia do monumento a Francesco Sforza acabou por ser posta de lado.
Entretanto, em 1495, Leonardo recebera o encargo de pintar um mural de nove metros de largura no refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, representando A última ceia. Não apreciando o método usual de pintura em fresco, que implicava um trabalho rápido e sem lugar a correcções, Leonardo decidiu usar materiais e técnicas inovadoras, de sua invenção, mais de acordo com a sua personalidade, propensa a maduras reflexões e sucessivas mudanças de ideias. Os monges de Santa Maria delle Grazie foram levados ao exaspero pelo ritmo de trabalho do pintor, que tanto podia trabalhar incessantemente do nascer ao pôr do sol, como podia passar horas absorto na contemplação do mural, sem fazer nada; outras vezes vinha expressamente para acrescentar duas ou três pinceladas, antes de partir tão abruptamente como chegara.
Este método de trabalho levou os monges a queixarem-se a Ludovico Sforza, na sua qualidade de patrono do Convento de Santa Maria delle Grazie, e o duque pediu explicações a Leonardo. Este terá retorquido: “Saberá Vossa Excelência que só falta pintar a cabeça de Judas e que este era, como se sabe, um refinado canalha. É, pois, necessário que tenha uma fisionomia que condiga com a sua infâmia. Para tal, há um ano, senão mais, que, pela noite ou pela manhã, vou todos os dias ao Borghetto, onde, como é do conhecimento de Vossa Excelência, se acoitam todos os malfeitores desta cidade. Porém, ainda não encontrei um velhaco que tenha um rosto que corresponda ao que tenho em mente. Assim que dê com essa cara, bastar-me-á um dia para completar a obra. Mas se a minha busca se revelar infrutífera, tomarei as feições do frade que veio queixar-se de mim a Vossa Excelência”.
A Última Ceia só foi terminada em 1498, mas por efeito da conjugação do novo processo de pintura usado por Leonardo e da humidade da parede, sob a qual corriam águas subterrâneas, o mural começou a degradar-se poucos anos depois de ter sido terminado. A última ceia que hoje pode ver-se em Santa Maria delle Grazie é apenas um pálido reflexo do que Leonardo pintou; a sua condição era bem pior antes de um profundo restauro recente, que só foi possível tomando como modelo os quadros realizados a partir do mural por discípulos de Leonardo, em particular o de Giovanni Pietro Rizzoli, dito Giampetrino, por volta de 1520.
Em 1495, a reviravolta de Ludovico Sforza e a aliança contra natura do Ducado de Milão aos seus rivais tinham permitido repelir as tropas francesas, mas o interesse da França pela geopolítica italiana viera para ficar e nem a morte de Carlos VIII, em 1498, o esmoreceu. O sucessor de Carlos VIII, Luís XII, via-se como legítimo herdeiro do trono de Milão e, em 1499, as suas tropas entraram em Milão, forçando Ludovico Sforza a buscar refúgio junto do imperador germânico Maximiliano I, seu sobrinho.
Leonardo também deixou Milão pouco depois, mas é possível que antes de o fazer tenha pintado um Salvator Mundi que só recentemente foi admitido, ainda que com contestação, no cânone de Leonardo. Paira grande incerteza sobre a sua data, autenticidade e finalidade, havendo quem avente que foi uma encomenda do novo “dono” de Milão, Luís XII. O quadro foi alvo de várias repinturas e restauros, o que o deixou suficientemente alterado para que fosse, durante muito tempo, visto como uma cópia. O príncipe saudita Badr bin Abdullah parece estar seguro da sua autenticidade, caso contrário não teria desembolsado 450 milhões de dólares por ele num leilão na Christie’s, em 2017, estabelecendo um novo recorde para transacções de pinturas.
Mântua e Veneza: 1500-01
Os estudos para a guerra submarina que não se concretizaram
Após sair de Milão, Leonardo passou dois meses em Mântua, onde contou com a hospitalidade de Isabella d’Este (1474-1539), marquesa de Mântua e conhecida mecenas das artes (encomendou obras a Giovanni Bellini, Giorgione, Andrea Mantegna, Perugino, Raffaello e Tiziano), que há muito que tentava convencer Leonardo a retratá-la. Talvez como retribuição pela hospitalidade, Leonardo cedeu, parcialmente, ao assédio de Isabella d’Este e retratou-a num desenho que deveria servir de base a um quadro – que nunca foi pintado e que, provavelmente, nunca teve intenção de pintar.
Deixando Mântua para trás, Leonardo instalou-se em Veneza, acompanhado pelo seu jovem discípulo Salai e por Luca Pacioli (c.1447-1517), um eminente matemático que, em 1497, fora convidado por Ludovico Sforza a ir para Milão e que se tornara amigo íntimo e parceiro de investigação “científica” de Leonardo, passando inclusive a viver na sua casa.
A opção de Leonardo por Veneza resultou talvez de a Serenissima Republica estar, mais uma vez, em guerra com os turcos e de contar vender os seus préstimos como engenheiro militar aos venezianos. Em Veneza fez vários estudos audaciosos no âmbito da guerra submarina, mas nenhuma das suas propostas – provavelmente inexequíveis com os materiais disponíveis na época – foi usada contra a armada turca. No Mosteiro da Santissima Annunziata, onde ficou hospedado, produziu um estudo de grandes dimensões, representando a Virgem e Menino Jesus com Santa Ana e São João Baptista, que serviria, provavelmente, de base a um quadro – que nunca foi concretizado.
Florença: 1501
As duas pinturas da Virgem e o Fuso
Após deixar Veneza e passar por Roma, Leonardo regressou a Florença, onde poderá ter dado início a outro quadro: a Virgem do fuso. O quadro é de atribuição incerta, mas há um testemunho que abona a hipótese de ser Leonardo o seu autor. Isabella d’Este, que alimentava a ilusão de que poderia persuadir Leonardo a converter o esboço que o pintor dela fizera quando da passagem por Mântua num verdadeiro retrato, não deixou de mexer os seus cordelinhos e de obter informações sobre o que andava Leonardo a fazer e, em 1501, um dos seus informadores, o frade carmelita Pietro da Novellara, relatou-lhe que Leonardo estava ocupado com um quadro representando a Virgem e Jesus com um fuso, destinado a Florimond Robertet, secretário do rei de França.
Na verdade existem duas Virgens do fuso, ambas da oficina de Leonardo – a maioria dos especialistas entende que a versão da colecção Buccleuch poderá ter sido obra de Leonardo e de um dos seus discípulos, enquanto na versão Lansdowne o contributo de Leonardo poderá ter-se resumido ao esboço inicial.
Cesena: 1502
Engenhos voadores e sub-aquáticos e um novo tipo de pólvora
Em Leonardo da Vinci: The first scientist, Michael White faz um pouco convincente número de contorcionismo intelectual e branqueamento para justificar o facto de o pacifista e vegetariano Leonardo ter entrado ao serviço da mais brutal figura do Renascimento italiano, Cesare Borgia, Duque de Valentinois e filho do papa Alexandre VI. Mas a verdade é que Leonardo já dera mostras de estar enfadado da pintura e parecia querer provar o seu génio sobretudo através da engenharia militar – aparentemente, Leonardo obteve o lugar presenteando Cesare Borgia com um mapa de apreciável rigor e detalhe da cidade de Imola, uma das praças-fortes de Cesare.
Deste breve período, passado em Cesena, que Cesare elevara a capital do seu ducado, não resultaram frutos materiais, embora Leonardo tenha avançado propostas para engenhos voadores e sub-aquáticos e um novo tipo de pólvora.
É incerto o paradeiro de Leonardo na viragem de 1502-03, após ter abandonado o serviço de Cesare Borgia no final de 1502, e há quem sugira que terá sido chamado a Istambul pelo sultão Bayezid II para conceber uma ponte sobre o Corno de Ouro, entre Istambul e Galata. Em 1952, descobriram-se os esboços de Leonardo para esta ponte, que deveria ter 366 metros de extensão, 24 de largura e um vão de 43 metros de altura na sua secção central, de forma a permitir a passagem de navios de grande porte.
Não há qualquer indício de que Leonardo tenha ido a Istambul e a ponte não foi concretizada – resta saber se seria tecnicamente exequível, já que, à data, não existia no mundo nenhuma ponte tão comprida e até aos nossos dias não foi construído um arco de alvenaria com a extensão prevista no plano de Leonardo. Em 2001 foi inaugurada uma réplica aproximada, para uso pedonal, em As, na Noruega, que foi baptizada como Ponte Da Vinci, mas que, claro, foi construída com betão e aço, não alvenaria.
Florença: 1503-1506
A rivalidade com Michelangelo e a Gioconda
Em Março de 1503, Leonardo estava de regresso a Florença, que, afastados os Medici, os franceses e Savonarola, era agora governada, a título vitalício, pelo recém-eleito gonfalionere Piero Soderini, que encarregou o pintor de produzir um gigantesco mural para a Sala do Grande Conselho (hoje Sala dos Quinhentos = Salone dei Cinquecento), no Palazzo Vecchio, comemorando a vitória dos florentinos sobre os milaneses na Batalha de Anghiari, em 1440. A proposta continha um “picante” especial: na parede oposta seria celebrada em mural outra histórica vitória florentina, na Batalha de Cascina (em 1364, contra Pisa) e quem fora encarregado dessa tarefa fora um jovem artista emergente, que detestava Leonardo e que era detestado por Leonardo: Michelangelo Buonarroti (1475-1564).
Leonardo foi temporariamente desviado da execução da encomenda, pois, a fim de subjugar os pisanos, que se tinham rebelado contra o domínio florentino, propôs, após demorado trabalho de campo em torno de Pisa, desviar o curso do Rio Arno, privando a cidade de água e dificultando o acesso dos navios ao porto. O projecto revelou-se um fiasco e foi abandonado e Leonardo regressou ao seu mural.
Mas nem sequer a rivalidade com Michelangelo foi suficiente para que se empenhasse na obra, que deixou inacabada quando, em 1506, rumou novamente a Milão. Para mais, recorrera novamente a um processo inovador que se revelou pouco durável, de forma que A Batalha de Anghiari começou a degradar-se, tendo acabado, em 1563, por ser coberta por novo mural encomendado a Giorgio Vasari (que, por coincidência, foi também o autor de As vidas dos melhores pintores, escultores e arquitectos (1550), que é uma preciosa – ainda que nem sempre fiável – fonte de informação biográfica sobre Leonardo).
Os cadernos de apontamentos de Leonardo contêm estudos parcelares para o mural, mas não dão uma ideia da concepção geral e a única percepção que temos hoje da obra resulta de cópias da sua secção central – conhecida como “A captura do estandarte” – realizadas por outros artistas, sendo a de Peter Paul Rubens a mais célebre.
Mas o duelo entre os dois colossos do Renascimento acabou empatado, pois tampouco Michelangelo finalizou a sua Batalha de Cascina, pois foi chamado a Roma para se ocupar dos frescos da Capela Sistina, pelo que também esse mural acabou por ser coberto por Vasari nas obras de renovação de 1563 – o único testemunho que dele chegou aos nossos dias foram os numerosos estudos parcelares realizados por Michelangelo e uma cópia, por Bastiano di Sangallo, um discípulo seu, do estudo preparatório geral.
Esta estadia de Leonardo em Florença produziria também a sua obra mais famosa – talvez a mais famosa da história da pintura: o retrato de Lisa del Giocondo (1479-1542), nascida na influente família florentina dos Gherardini e esposa do comerciante de seda Francesco del Giocondo. O retrato, usualmente conhecido como “Mona Lisa” (“Mona” é uma forma abreviada de “Madonna”) ou “La Gioconda”, e que faz parte da colecção do Louvre, tem estado envolvido em polémica, pois há quem conteste a identidade da retratada e paira a incerteza sobre a data em que foi executado.
O debate ganha ainda maior complexidade por existir um quadro muito semelhante, mas incompleto, representando uma mulher um pouco mais nova e conhecido como Mona Lisa Isleworth, que foi adquirida e revelada ao mundo em 1913 pelo coleccionador britânico Hugh Baker (cuja colecção se situava no subúrbio londrino de Isleworth). Na altura, o quadro foi recebido com desconfiança no meio artístico – a sua aparição, pouco depois do sensacional furto da Mona Lisa do Louvre, em 1911, parecia demasiado “oportuna” –, mas hoje a sua autenticidade é aceite pela maioria dos especialistas.
Se, como Vasari afirma, a retratada é Lisa del Giocondo e o quadro foi encomendado pelo seu esposo Francesco, terá sido pintado entre 1503 e 1506 em Florença. Em 2005, foi encontrada uma nota de um amigo de Leonardo, datada de Outubro de 1503, que confirma que, nesta data, o pintor estava a retratar Lisa del Giocondo. Esta informação é contradita pelo relato feito por Antonio de Beatis, secretário do cardeal Luigi de Aragona, de uma visita feita a Leonardo em Amboise, França, em 1517, que inclui Mona Lisa na lista de obras que aí viu. Se o retrato fora uma encomenda de Francesco del Giocondo, porque não estava na posse deste? Será que Leonardo não terminou o retrato enquanto esteve em Florença e regressou a ele nos últimos anos de vida? Nesse caso, que Mona Lisa (incompleta) é a que Vasari descreve em tom laudatório em “As vidas dos melhores pintores, escultores e arquitectos”?
É possível que a Mona Lisa vista por Vasari tenha sido a que foi pintada entre 1503-06 em Florença – que pode corresponder à Mona Lisa Isleworth – e que Leonardo tenha pintado uma segunda Mona Lisa (a versão que está hoje no Louvre) em Amboise por volta de 1517, a partir dos estudos (ou de um retrato incompleto ou cópia) realizados em Florença.
Sobre as várias Monas Lisas – existem outras, possivelmente cópias realizadas pela oficina de Leonardo – já muito se pesquisou, escreveu e especulou, produzindo muitos milhares de páginas e hipóteses para todos os gostos; as mais excêntricas identificam a figura retratada com Salai, o discípulo/amante de Leonardo, ou com o próprio Leonardo.
Milão e Florença: 1506-13
Os outros muitos estudos (da água ao corpo humano) e um novo amante
Em 1506, Leonardo regressou a Milão, por pressão de Luís XII sobre as autoridades florentinas, que pretendiam que Leonardo terminasse o mural da Batalha de Anghiari. Em Milão, Leonardo terá trabalhado em pinturas destinadas ao rei de França – sobre as quais nada se sabe – e num projecto de mais uma estátua equestre, desta feita destinada a glorificar o governador francês da cidade, Carlos II d’Amboise, mas que se ficou por um modelo de cera.
Em 1507, Leonardo regressou a Florença para tratar de assuntos relacionados com heranças: o pai, falecido em 1504, excluíra o filho ilegítimo do testamento, mas o tio Francesco, falecido em 1507, fizera de Leonardo o único herdeiro das suas modestas posses, o que suscitara contestação pelos meios-irmãos de Leonardo.
Em 1508, Leonardo estava de volta a Milão, mas parecia estar menos interessado em empreendimentos artísticos do que em pôr ordem na formidável colecção de apontamentos – 13.000 folhas soltas – que tinha vindo a produzir sistematicamente desde 1484 e que versavam os assuntos mais díspares – do voo das aves aos remoinhos da água corrente, da óptica à geologia –, por vezes na mesma folha. Apesar da impressionante amplitude dos seus interesses, alguns pareciam suscitar recorrentemente a sua atenção: a anatomia humana, que estudou com afinco a partir de cadáveres, e os movimentos da água, que pareciam exercer sobre ele um misto de fascínio e horror.
Sobre a água escreveu Leonardo: “Por vezes é ácida, outras, amarga, umas vezes doce e outras espessa ou fina, por vezes traz sofrimento e pestilência, outras é fonte de saúde, às vezes é venenosa. Atravessa tantas mudanças na sua natureza quanto os diferentes locais por onde passa. E como um espelho muda consoante o objecto na sua frente, também ela se altera consoante o lugar, tornando-se ruidosa, laxante, adstringente, sulfurosa, salgada, carmim, tristonha, enfurecida, vermelha, amarela, verde, negra, azul […]. Umas vezes inicia uma conflagração, outras, extingue-a; é quente e é fria, arrasta consigo ou deposita, escava ou acumula, desfaz ou consolida, enche ou esvazia, ergue-se ou esconde-se sob o solo, acelera ou aquieta-se; é, consoante as ocasiões, causa de vida ou de morte, traz benesses ou privações, umas vezes alimenta, outras tem efeito contrário; por vezes tem um travo, noutras não tem sabor, por vezes submerge os vales com grandes cheias. Com o tempo e a água, tudo muda”.
Apesar da absorvido pelas suas demandas “científicas”, Leonardo produziu neste período o quadro Virgem e Menino Jesus com Santa Ana, uma encomenda da Igreja da Santissima Annunziata, em Florença – um regresso a um tema que já esboçara em 1501 em Veneza (por coincidência quando estava hospedado no Mosteiro da Santissima Annunziata).
Em 1508, entrou no círculo de Leonardo Francesco Melzi (c.1491-c.1570), um rapaz de 17 anos de origem aristocrática, cujo pai fora engenheiro militar no exército dos Sforza e fora educado no ambiente requintado da corte milanesa. Era, como Salai, um jovem muito belo e de longos cabelos e tornar-se-ia discípulo e assistente de Leonardo.
M não só era culto e educado como revelaria maior talento e empenho na pintura do que Salai e acabaria, progressivamente, por substituir Salai, de ascendência campónia e natureza mais rude, nas preferências – e, quiçá, também na cama – de Leonardo.
Roma: 1513-16
Envelhecido, ultrapassado e preterido por Michelangelo e Raffaello
Em Setembro de 1513, Leonardo, acompanhado por Salai e Melzi, instalou-se em Roma, onde também trabalhavam, à data, o seu rival Michelangelo e a estrela ascendente Raffaello (que Leonardo muito admirava). Tinha sido chamado por Giuliano de’ Medici, filho de Lorenzo Il Magnifico e irmão do papa Leão X (Giovanni di Lorenzo de’ Medici) – e também conselheiro papal, comandante do exército dos Estados Pontifícios e mecenas.
Porém, a Leonardo os Medici apenas confiaram trabalhos “menores”, enquanto as encomendas de prestígio e sumptuosamente remuneradas iam para Michelangelo e Raffaello – talvez por Leonardo, então já sexagenário, ser visto como um artista passado de moda ou por o seu curriculum juncado de projectos inacabados inspirar escassíssima confiança. Data desta altura uma anotação de Leonardo que tem sido decifrada como “Os Medici me criaram e os Medici me destruíram”.
O único trabalho importante que lhe foi encomendado não tinha natureza artística, mas inscrevia-se numa das principais áreas de interesse de Leonardo: a hidráulica. Tratava-se da drenagem de uma zona pantanosa 60 km a sul de Roma, conhecida como Paludi Pontine. Leonardo elaborou o projecto e este foi aprovado pelo papa, mas a morte de Giuliano de’ Medici, em 1516, fez o projecto ficar sem efeito.
A única pintura que é associada a este período – e que é também a última pintura de Leonardo de que se tem conhecimento – é um pouco ortodoxo São João Baptista que dispensa a usual presença de Jesus e interpela directamente o observador. Terá sido pintado entre 1513 e 1516 e há estudiosos que especulam que o santo, tradicionalmente representado com traços duros e ascéticos e que na leitura de Leonardo tem contornos suaves e andróginos e uma aura erótica, teve Salai como modelo. Desconhece-se a que fim se destinaria e quem o encomendou.
A 19 de Dezembro de 1515, Leonardo esteve presente em Bologna num encontro entre Leão X e Francisco I, em que o Papa, que pretendia desanuviar as relações entre a Santa Sé e a França, presenteou o rei (então com apenas 21 anos) com um leão mecânico, criado por Leonardo, que, após dar uns passos na direcção do rei, fez sair do seu peito um ramo de lírios (os lírios são o símbolo dos reis de França e o leão, era, claro uma alusão ao papa).
Impressionado por esta demonstração de engenho ou por já há muito estar a par dos feitos de Leonardo, Francisco I, que era apaixonado pela cultura e arte italianas e um generoso mecenas, viria pouco depois a convidar Leonardo a juntar-se a outros artistas transalpinos que começara a atrair para França – um recrutamento que incluiria nomes como Andrea del Sarto, Benvenuto Cellini, Rosso Fiorentino e Giulio Romano.
Amboise: 1516-19
A ida para França e a morte nos braços de Francisco I
Leonardo, sempre acompanhado por Salai e Melzi, foi instalado numa mansão – o Château de Clos Lucé – situada a apenas 500 metros da residência real do Château d’Amboise, e a ela ligada por uma passagem subterrânea. Foi-lhe atribuído o título de “Primeiro Pintor, Arquitecto e Mecânico do Rei” e uma pensão condizente com a importância do cargo, mas Francisco I não parece ter-lhe confiado tarefas específicas ou imposto um programa – terá dito “Aqui, Leonardo, serás livre de sonhar, pensar e trabalhar”.
Foi em Amboise que recebeu a já mencionada visita do cardeal Luigi de Aragona, cujo secretário, Antonio de Beatis, relata ter visto entre os quadros de Leonardo, “um retrato de uma dama florentina” (a Mona Lisa), um São João Baptista e uma Virgem e Menino Jesus com Santa Ana. Não é possível determinar se Leonardo conservara consigo estes quadros por ter por eles especial apreço ou se, na sua permanente insatisfação com as suas próprias obras, pensava ainda aperfeiçoá-los.
Não há registo de obras pictóricas neste período e as suas realizações terão ficado pela área da arquitectura e urbanismo: esteve envolvido na construção de um palácio para a rainha Luísa de Sabóia, em Romorantin, mas o projecto foi suspenso quando da morte de Leonardo e a ala por ele concebida foi demolida em 1723. É possível que Leonardo também tenha contribuído, juntamente com o arquitecto italiano Domenico da Cortona (conhecido em França como Boccador), para a concepção original do Château de Chambord, um ambicioso projecto destinado a imortalizar Francisco I. Entre os desenhos de Leonardo há uma escadaria em dupla hélice que também figura nos primeiros planos do palácio, mas Leonardo faleceu poucos meses depois de as obras se iniciarem e a construção, que se prolongou até 1547, ter-se-á afastado do delineado por Leonardo e Boccador.
À medida que sentia aumentar o peso da idade, Leonardo foi tomando consciência de que não teria tempo e energia para transformar as 13.000 folhas soltas de notas e esboços num corpo de conhecimento estruturado; os volumes que compilou e encadernou eram uma pequena fracção dos seus apontamentos e não eram necessariamente homogéneos – com excepções como o breve Códice sobre o voo das aves, compilado em 1505.
Em Abril de 1519, Leonardo fez um testamento em que legava a maior parte das suas posses mais relevantes ao fiel Francesco Melzi e atribuindo a Salai, que regressara a Itália pouco depois da chegada a Amboise, apenas metade de uma vinha e metade dos direitos de portagem de um canal (o “Diabo” tombara a pique na estima de Leonardo). Leonardo morreu pouco depois, a 2 de Maio de 1519, com 67 anos, e, na sua célebre biografia de grandes pintores, Vasari faz duas afirmações pouco dignas de crédito sobre as circunstâncias da morte de Leonardo: afirma que, no leito de morte, terá manifestado a vontade de regressar ao seio da Igreja Católica e que terá expirado no braços de Francisco I.
O legado de Leonardo
Dos documentos que se perderam aos encriptados
Dos projectos escultóricos e arquitectónicos de Leonardo, muito pouco foi concretizado e nada sobreviveu. Para lá do leão mecânico construído para o encontro entre Leão X e Francisco I, não há indícios de que algum dos muitos imaginativos engenhos que projectou tenha sido efectivamente construído – e é de supor que os materiais disponíveis na época não permitiram que a maior parte deles chegasse a ser operacional. Algumas das suas mais aclamadas realizações ao serviço do Duque de Milão foram festividades e espectáculos que, claro, não deixaram vestígios.
A fama de Leonardo no imaginário do cidadão comum dos nossos dias assenta, essencialmente, na sua faceta de pintor – o que é paradoxal, dada que da sua produção muito pouco chegou ao nosso tempo: 16 obras em quase meio século de carreira, 10 delas de atribuição discutível e que poderão ser, em parte, obra de discípulos da sua oficina.
É ainda mais curioso constatar que a maior parte da sua fama como pintor está associada a apenas duas obras: uma Última Ceia que chegou tão desbotada e adulterada aos nossos dias que não faz jus à obra original e dificilmente deixa adivinhar o talento do seu criador; e a Mona Lisa do Louvre, quadro que não era tido em grande apreço até ter sido roubado em 21 de Agosto de 1911. A comoção pública acicatada pelos jornais fez com que, nas semanas após o furto, o espaço vazio no Louvre recebesse mais visitantes do que os que lá tinham estado nas décadas em que a Mona Lisa esteve exposta. Até então, Mona Lisa não suscitara mais entusiasmo do que o Tiziano e o Correggio que a ladeavam e, quiçá, era até ignorada pelos visitantes, pasmados com o colossal e espectacular O banquete na casa de Simão, de Veronese, pendurado acima dela.
Um aspecto do legado de Leonardo que merece análise é o dos seus herdeiros artísticos, os “Leonardeschi”. Leonardo cedo ganhou prestígio e é natural que a sua oficina atraísse numerosos aprendizes – numa carta a Ludovico Sforza, em 1496, Leonardo menciona ter a seu cargo seis aprendizes – mas os discípulos de Leonardo não costumam figurar nas Histórias da Arte, pela simples razão de nenhum deles se ter tornado num pintor famoso. Os mais dotados – Francesco Melzi, Giovanni Antonio Boltraffio e Bernardino Luini – fizeram carreira como pintores, mas ficando-se pelo patamar da mera competência e sem alcançaram sucesso, e se hoje são lembrados é apenas por terem privado com um génio (e, eventualmente, dado contributos menores para alguns dos quadros creditados a Leonardo).
Este facto suscita questões intrigantes: como pode um génio da pintura como Leonardo gerar apenas discípulos sofríveis ou medíocres? Será que era um absoluto fracasso como pedagogo? Será que por ser excessivamente cioso dos conhecimentos que adquirira, tinha relutância em partilhá-los? Será que, como sugere o Dr. Sigmund Freud (que, diga-se de passagem, escreveu várias tolices sobre Leonardo), a sua figura patriarcal era tão colossal e dominadora que os seus discípulos não conseguiam conceber-se como entidades autónomas? Ou será que o efebófilo Leonardo escolhia os aprendizes pela delicadeza das feições e pelos cachos de caracóis e não pelo talento artístico?
O fabuloso acervo de 13.000 folhas que representam a demanda “científica” de Leonardo ficou na posse de Melzi, que o levou consigo quando regressou a Itália. Porém, desta enorme massa de conhecimento, Melzi apenas extraiu, em 1542, um pequeno volume a que deu o título de Trattato della pittura e que só foi publicado, sob forma bastante adulterada em 1651.
Quando Francesco Melzi faleceu, por volta de 1570, o espólio passou para o seu filho Orazio, que, não partilhando da estima do pai pelos escritos de Leonardo, foi vendendo volumes e deixando que visitantes pilhassem folhas soltas e que outras fossem destruídas pelos ratos, pelos peixinhos-de-prata, pelos fungos e pela humidade. Daqui resultou que se tenha perdido o paradeiro a 6.000 das folhas de apontamentos de Leonardo.
Mas o problema das “investigações científicas” de Leonardo é anterior e mais profundo: enquanto foi vivo, Leonardo não publicou nem uma linha sequer das suas agudas e meticulosas observações e das suas fulgurantes intuições, nem revelou os diagramas dos seus engenhosos dispositivos. Pelo contrário, tinha um receio, que raiava a paranóia, de que alguém lhe roubasse as ideias e tratou de “encriptar” parte dos apontamentos – há quem sugira que a sua peculiar escrita “reflectida” faria parte dessa “encriptação”, o que não faz sentido, pois bastaria lê-los frente a um espelho.
Porém, esta atitude de reserva era usual nos “cientistas” daquele tempo e a saudável tradição de fazer imprimir os resultados das investigações só se inaugurou com Galileo Galilei – o que lhe trouxe, aliás, sérios dissabores com a Santa Inquisição – e seria preciso esperar mais um século para a publicação de artigos científicos se tornar-se numa rotina. Serve o triste destino das “investigações científicas” de Leonardo para nos lembrar que o conhecimento mantido secreto não produz proveito algum e que a vertiginosa aceleração da inovação científica e tecnológica desde o tempo de Newton até à actualidade resulta, não de o Homo Sapiens ter ficado mais esperto, mas de ter aprendido a partilhar rápida e eficazmente o conhecimento.
Mas não basta que existam meios expeditos de difusão do conhecimento, é também preciso que as autoridades não criem entraves à sua livre circulação. Ora, é de crer que, acaso Leonardo tivesse publicado as suas “descobertas”, algumas teriam suscitado a censura das autoridades – é duvidoso que a Igreja aceitasse de bom grado que o seu rebanho tivesse oportunidade de ler um ensaio de anatomia sobre o lugar de residência da alma (o sensus s) no corpo humano (uma das obsessões de Leonardo) ou sobre os órgãos reprodutivos humanos.
Apesar de Leonardo desenvolver as suas pesquisas da forma mais discreta possível, na sua última estadia em Roma, no seguimento de uma denúncia por necromancia, o papa Leão X proibiu-o de continuar a dedicar-se à dissecação de cadáveres no Hospital do Santo Spirito. O mundo da viragem dos séculos XV/XVI talvez não oferecesse ainda condições para permitir o pleno florescimento do génio de Leonardo.
Quanto à dispersão que fez fracassar tantos dos seus projectos, fazia parte da sua natureza mais íntima. O espírito de Leonardo era tão vivo e inquisitivo que nada do que via, ouvia ou tocava – mesmo algo aparentemente tão banal como o fluxo da água num ribeiro – o deixava indiferente e, em vez de se fiar no senso comum ou nas explicações fornecidas pelos sábios antigos, preferia fazer a sua própria demanda em busca de explicações. Ele mesmo o deixou explícito nas suas notas: “O ferro enferruja quando não é usado […] e a água estagnada perde a sua pureza […]; do mesmo modo, o vigor do espírito é minado pela inactividade”.