Há anos que Jon Fosse consta na lista de favoritos ao Nobel da Literatura e, em 2023, a Academia Sueca concedeu alinhar-se com as casas de apostas. O autor norueguês, com uma obra multifacetada, traduzida em mais de 40 línguas, que vai da escrita teatral aos romances, ensaios e livros para crianças, foi distinguido esta quinta-feira pelas “suas peças e prosa inovadoras que dão voz ao indizível”.
“Toca-nos tão profundamente. Quando lemos uma obra dele temos de continuar”, disse Anders Olsson, presidente do comité do Nobel para a literatura, após o anúncio, destacando a “a proximidade da sua escrita”. “Toca nos sentimentos mais profundos, nas inseguranças, incita questões de vida e morte, coisas com que todos os humanos se confrontam. Chega muito longe e tem um impacto universal no que escreve. Não importa se é drama, poesia ou prosa, é o mesmo tipo de apelo a essa humanidade básica”.
O silêncio, o sentido da vida, a sombra, a solidão o suicídio. Com tudo isto, todos os nossos demónios, nos confrontava o ator José Raposo sobre uma cama de de ferro supensa na escuridão cerrada, há uns meses, no Teatro da Politécnica, em Lisboa. As palavras de Jon Fosse, agora laureadas com o maior dos galardões, há muito que nos lançam para a vertigem, encenadas no teatro.
Fosse ocupa o lugar de um dos dramaturgos europeus mais representados nos palcos em todo o mundo. Em 2010, foi laureado com o prestigiado Prémio Ibsen, considerado o Nobel do Teatro, que de dois em dois anos premeia pessoas ou instituições que tenham contribuído de forma significativa para o desenvolvimento do drama como uma forma de arte.
Em Portugal, a companhia Artistas Unidos trabalha frequentemente a partir das suas obras. Fosse foi, aliás, o autor do primeiro espetáculo apresentado pela companhia fundada por Jorge Silva Melo no espaço A Capital, em 2000. Chamava-se Vai Vir Alguém, com tradução de José Maria Vieira Mendes e Solveig Nordlund, e encenação da realizadora luso-sueca. “Com a vinda do autor a Lisboa, através da realização de conversas e leituras e de uma continuada apresentação do seu trabalho, estabelecemos uma relação próxima com a sua obra”, pode ler-se no site dos Artistas Unidos.
O norueguês chegou até a ficar amigo de Jorge Silva Melo, que se preparava para encenar Vento Forte quando morreu em março do ano passado. Contou Fosse ao Observador que lhe enviou um ramo de flores. Um ano e meio após a morte de Silva Melo, a companhia continua a levar à cena textos do dramaturgo. Ainda este ano, passou pelo Teatro da Politécnica, de março a abril, Foi Assim, solo supracitado sobre um homem, pintor, que no fim da sua vida faz um balanço da sua existência. “Um exercício individualista ao estilo Fosse, de escrita rarefeita e com muitas repetições, um ruminar de sentidos e de emoções”, lia-se na sinopse que anunciava a peça. O monólogo, traduzido por Pedro Porto Fernandes, foi interpretado por José Raposo e encenado por António Simão.
“Foi Assim”: todos os nossos demónios num encontro solitário com José Raposo
Desde a sua fundação, os Artistas Unidos mostraram de Fosse: Sonho de Outono, em 2001, A Noite Canta os Seus Cantos, em 2004 e 2009, Inverno, em 2005, Lilás, em 2007, e Morte em Tebas, em 2010. “Uma das frases que mais me marcou das primeiras vezes que [Jon Fosse] falou da sua escrita foi ter referido que tinha sido cantor de uma banda de punk-rock e que escrevia como um baixista, ‘como se as palavras fossem as notas graves e quentes de um baixo.’ Esta confissão veio a comprovar-se na musicalidade da sua escrita; das repetições, dos parágrafos, das pausas e da meticulosa estrutura. Como se tornasse o trabalho de repetição do texto por parte do ator em escrita dramática, sabendo que cada vez que um ator repete a mesma frase, vai revelando a multiplicidade de sentidos, tonalidades, nuances e um mais profundo sentido poético”, descreve António Simão, que com Pedro Carraca e João Meireles partilha a direção artística dos Artistas Unidos, no site da companhia. “Jon Fosse cria as suas personagens, leves e violentas, com uma escrita rarefeita, despojada, musical, que vai revelando ecos e resquícios – porque é predominante o passado -, onde o silêncio domina”, acrescenta.
De acordo com a informação disponibilizada pela companhia, Jon Fosse esteve em Portugal em março de 2000, aquando da estreia de Vai Vir Alguém, em 11 de março de 2001 para assistir a Sonho de Outono e ainda em 2009, por ocasião da visita oficial dos Reis da Noruega, quando assistiu à leitura de Sou O Vento.
Não obstante o seu sucesso enquanto dramaturgo — é o norueguês mais representado após Henrik Ibsen —, Jon Fosse cansou-se da escrita teatral. Há quase uma década e meia que se dedica às histórias em prosa, criando um universo literário singular.
“Quis acalmar a minha escrita, a minha vida, tudo. Deixei de escrever para teatro e voltei aonde tinha começado: aos romances, à prosa”, explicou em entrevista ao Observador, em dezembro. Se na escrita dramatúrgica era rápido, intenso, concentrado, na literária revelou-se o oposto. Passou a demorar-se nos processos, permitindo-se descobrir o que daí resulta. “Não tenho qualquer ideia antes de escrever. Quando comecei a escrever o livro Trilogia [Cavalo de Ferro, 2021], o casal Asle e Alida… apenas escrevi, nunca tinha pensado em nada assim na minha vida. Da mesma forma, quando comecei a escrever a Septologia, acerca deste pintor… para quê escrevê-lo se soubesse antes o que iria ser? Escrever sobre o que já conheço não me interessa”.
Trilogia é o resultado desse regresso à escrita demorada e poética que o autor designa de “prosa lenta”. Obra central da prosa de Fosse, reúne três novelas, Vigília (2007), Os Sonhos de Olav (2012) e Fadiga (2014), que se fundem numa única história. É uma parábola de inspiração bíblica sobre amor, violência, crime, castigo e redenção, que lhe valeu o Prémio de Literatura do Conselho Nórdico.
Jon Fosse entre os demónios da criação: “Escrever sobre o que já conheço não me interessa”
Os últimos anos tem-nos guardado para a ambiciosa epopeia que é Septologia, magnum opus do autor que será publicada integralmente em Portugal pela editora Cavalo de Ferro. A história de um pintor (ou dois?), Asle, viúvo, que tem dificuldade em pintar um quadro muito específico que implica cruzar duas linhas em forma de cruz, está já em O Outro Nome – Septologia I-II, o primeiro de três volumes de Septologia e que chegou às livrarias portuguesas no final do ano passado. É apenas o primeiro. Para contar esta história, o autor criou sete partes que distribuirá por três livros — o primeiro inclui as partes I e II e foi nomeado para o prémio Booker International 2020. O segundo tem como título O Eu é um Outro – Septologia III-V e chega a 6 de novembro, reunindo as partes III, IV e V.
Em português, a ficção de Jon Fosse tem sido publicada por esta mesma chancela, que além de Trilogia (2014) e Septologia (2009-2021), editou ainda Manhã e Noite (2015). O seu trabalho enquanto dramaturgo também está disponível em português através da coleção Livrinhos de Teatro que a editora Cotovia (extinta em 2020) tinha com a companhia de teatro Artistas Unidos. Outros títulos desta coleção, da autoria de Fosse, foram editados pela editora Snob, no mesmo regime colaborativo com a companhia.
Já o seu romance de estreia, em 1983, Raudt, svart [Vermelho, preto], ainda carece de tradução. A Academia Sueca descreve-o como “tão rebelde quanto emocionalmente cru”. A obra aborda o tema do suicídio e, “de muitas maneiras, estabelece o tom para seu trabalho posterior”. Em entrevista ao jornal Público, em 2021, falando sobre esse primeiro romance (“muito negro, uma espécie de brutalismo realista” e “uma espécie de metal literário, black metal”) Fosse diz: “Mais tarde ou mais cedo, será traduzido em inglês, pelo menos…”.
Jon Fosse nasceu a 29 de setembro de 1959, em Haugesund, Noruega. Aos sete anos teve uma queda aparatosa que o confrontou pela primeira vez com a ideia de morte — tema que explora abundantemente na sua obra, a par de outros como o existencialismo ou as relações humanas. Formou-se em Literatura Comparada na Universidade de Bergen e, com 20 anos, escreveu o seu primeiro livro. Recebeu vários prémios ao longo da carreira. A sua escrita caracteriza-se por um enredo reduzido, avanços e recuos temporais frequentes, alternância de pontos de vista e uma linguagem sem adornos que é muitas vezes descrita como “minimalista”, destaca a Academia Sueca. É-lhe apontada também musicalidade, graças ao ritmo e repetição frequentes, com frases e sequências longas, pontos finais ausentes e um uso pouco ortodoxo da vírgula.
Escreve na língua Nynorsk, uma das duas versões oficiais, e a “menos comum”, do norueguês. É o primeiro autor a escrever em Nynorsk, também conhecido como “novo norueguês” e desenvolvida a partir de dialetos ruais, a conquistar um Nobel, nota o jornal The Guardian. Escreve o editor de cultura europeia, Philip Oltermann, que esta vitória é também um passo em frente na ascensão da Noruega enquanto potência cultural.
Aos 64 anos, vive em Oslo, numa residência honorária, um edifício do século XIX situado nas propriedades do Palácio Real de Oslo, chamada “Grotten” (“Caverna”). A atribuição é feita por decreto real e concedida a um destacado artista norueguês. “Para ser absolutamente honesto, não queria. Mas conveceram-me”, disse em 2014 ao jornal The Guardian.
Fosse é o quarto norueguês a ganhar o prémio Nobel da Literatura. Antecederam-no Bjørnstjerne Bjørnson (1903), Knut Hamsun (1920) e Sigrid Undset (1928). Além do reconhecimento e de uma medalha e diploma a atribuir numa cerimónia em dezembro, o escritor vai receber 11 milhões de coroas suecas (cerca de 950 mil euros).