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Em "Seis Personagens à Procura de um Autor" de Pirandello, como Enteada
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Em "Seis Personagens à Procura de um Autor" de Pirandello, como Enteada

Em "Seis Personagens à Procura de um Autor" de Pirandello, como Enteada

Entrevista com Carmen Dolores. "Tenho saudade daquilo que posso deixar"

Uma longa entrevista com Carmen Dolores, a "deusa da palavra", como escreveu Luis de Oliveira Nunes, que começou na rádio, paixão eterna, e seguiu depois para os palcos. Morreu aos 96 anos.

[entrevista publicada originalmente a 17 de setembro de 2017 e atualizada após a morte de Carmen Dolores, a 16 de fevereiro de 2021]

Aos 14 anos já ia ler poemas à rádio mas aquilo “parecia a escola”, era só “brincadeira e amigos”. Rapidamente se tornou uma paixão e um vício. Não sabia qual veio primeiro — “Será que alguém sabe?” — mas sabia que era ali que se sentia livre, a dar corpo aos males de amor que cantavam os seus primeiros poetas — Antero, Garrett, Herculano. Dos poemas passou para o teatro radiofónico. Na rádio a voz é tudo o que existe, “a rádio é iimaginar, que mais podemos fazer que não imaginar?”

Aprendeu com a rádio a ler e a desenhar os mundos dos livros como aguarelas que iam aparecendo à sua frente dando força às personagens que interpretava. Quem a abordava na rua lembrava sempre a sua voz, foi pela voz que começou e dizia que sem a rádio talvez nenhuma outra magia lhe tivesse tocado. Dizem que Amélia Rey Colaço, que nos anos 20 tomou conta do Teatro Nacional como Ferreirinha tinha feito com o vinho do Douro uns cem anos antes, fazia audições aos seus atores escondendo-se atrás de uma porta ou no camarim, ouvindo-lhes apenas a voz, escolhendo-lhes apenas a voz.

Sempre teve receio das câmaras fotográficas, nunca se achou fotogénica e, de todos os técnicos, quem admirava mais eram os fotógrafos e os operadores de luz que, não sabe como, a punham bonita na tela e nas fotografias que enviava às centenas de admiradores que lhe escreviam. O Observador entrevistou a atriz em 2017. Carmen Dolores, então com 93 anos, dizia que só soube como sorrir “tarde na vida”, estava “mais otimista” do que algum dia foi mas a falta de romantismo dos tempos modernos levava-a a dizer que não queria ser jovem nos dias de hoje.

Está apreensiva em relação às fotografias. Sempre pensou muito nas lentes que a filmavam?
Não penso, não. Agora como estou afastada… não me apetece aparecer. Mas é importante o público ver o ator a envelhecer.

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A sua casa está rodeada de livros mas na sua juventude nem todas as casas eram assim. Um dia envergonhou os seus pais…
É verdade, é verdade. Os livros estavam por todo o lado em minha casa, pensei que era assim em todo o lado. Mas uma vez, devia ter menos de 10 anos, cheguei a casa dos amigos dos meus pais e, muito calada, sempre muito calada, comecei a olhar para todo o lado à procura de livros. Comecei a ficar progressivamente mais ansiosa até que perguntei, assim, do nada: “Onde é que vocês têm os vossos livros?” Em casa os meus pais bem me perguntaram: “Então tu tão calada, nunca falas com ninguém e foste logo dizer aquilo aos senhores”.

Abre um dos seus livros de memórias, o Palco da Memória, com uma frase de uma peça de Fernando Pessoa, de “O Marinheiro” que diz:

“Éreis feliz, minha irmã?”

“Começo neste momento a tê-lo sido outrora”

Quer isto dizer que só agora é que se apercebe que foi feliz lá atrás?
Sim, é um pouco isso. Tem muito a ver com isso, sim. Gosto muito de Fernando Pessoa mas não é isso. Eu acabo por pensar um pouco assim, que nunca soube viver bem os momentos bons que tive. Não sei porquê, talvez por ter sido sempre muito exigente comigo mesma e não tive tempo, houve sempre muita coisa a acontecer, estive a fazer coisas em vez de aproveitar coisas. Sinceramente não sei mas o que quer que seja é traduzido nessa frase.

Carmen Dolores em sua casa JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

À revista Filmagem deu uma das suas primeiras entrevistas. Fala, ainda tão nova, da falta de tempo. Sempre foi uma noção permanente?
Sim, sempre. Nessa entrevista falei muito do tempo, porque ainda me faltava fazer tudo. Dizia que o meu maior desejo era que os dias tivessem 48 horas porque só assim eu conseguiria fazer tudo aquilo que gostaria de fazer. A falta de tempo sempre foi uma grande preocupação.

Diz-se, por vezes, aquela frase: “Era feliz e não sabia”. Aplica-se a si?
Isso. E essa fome de tempo que continua a atormentar-me talvez menos mas sim. Talvez seja uma forma de aproveitar o tempo, agora que sei que fui ou sei como ser. Vejo as pessoas de mais idade a queixarem-se que os dias demoram imenso a passar. Mas para mim os dias passam tão depressa que eu nunca tenho tempo de fazer aquilo que tinha planeado.

Como preenche os seus dias?
Saio cada vez menos . Leio muito e escrevo muito, escrevo mesmo muito. Ao início da tarde sento-me num canto e escrevo o que me vem à cabeça. Nunca escrevi com intenção de publicar e por isso há pensamentos soltos nos livros. Escrevo quando me dá a inspiração. Um termo que talvez seja um pouco ambicioso demais. Vocês não têm esse luxo, os jornalistas. Mas o que eu quero dizer é que escrevo por necessidade, num ímpeto de deitar coisas cá para fora.

Um hábito que começou como contraponto à sua timidez?
Comecei por escrever porque era muito introvertida, precisamente. Não deitava cá para fora o que podia dizer. Nunca fui muito de me abrir com os outros para falar dos meus problemas. Um dos meus sonhos era ser escritora.

A primeira arte que experimentou, foi, então, a escrita?
Sim, e quem me dera ser escritora. As pessoas têm dito coisas muito agradáveis, muito interessantes, fico muito admirada porque não me vejo como escritora, e não sou, claro. E até pensei nem publicar.

"Comecei por escrever porque era muito introvertida, precisamente. Não deitava cá para fora o que podia dizer. Nunca fui muito de me abrir com os outros para falar dos meus problemas. Um dos meus sonhos era ser escritora"
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

É um livro etéreo, muito fragmentado. É assim que lhe surgem os momentos e, depois, repara que tem que os apontar?
São ideias que surgem mas não estão necessariamente presas a um mesmo fio condutor, ou a nenhum fio condutor, de facto.

Sentimo-nos como se pudéssemos abrir um livro em qualquer parte e retirar daquelas três páginas um significado, estanque, sem ser preciso ler para trás ou para a frente.
É assim que escrevo. Não é um romance. São imagens que me aparecem. Estou sempre a divagar mas mesmo nas minhas divagações há qualquer coisa de real. Nunca escrevi histórias inventadas. É tudo baseado na minha experiência de vida, nunca escrevi ficção.

O livro chama-se “As Vozes Dentro de Mim”. As suas personagens vêm ter consigo, metaforicamente falando?
Vêm ter comigo, sim, até porque eu é que as disse e disse-as muitas vezes. Muitas vezes em casa brinco com isso com o meu filho, usamos inflexões do teatro, fazemos perguntas com um tom dramático, perguntas que eram das minhas peças.

O seu filho Rui nunca quis ser ator?
Não, não. É economista mas é todo da música. Sabe tudo. Um dia estávamos aqui, o Rui pequeno. Ele pediu-me para assistir a um ensaio, um daqueles que eu fazia em casa, para mim. Concordei. Ele sentou-se no sofá e comecei a dizer o texto, um texto dramático, era O Vestido de Noiva do Gaspar Simões, e esqueci-me que ele aqui estava. De repente olhei e as lágrimas escolhorriam-lhe pela cara abaixo.

Diz que não se sente envelhecer. Mas ao mesmo tempo também há uma grande sombra de saudade que perpassa todo o livro.
Não sei até que ponto isso é saudade. Ou que tipo de saudade é que é. Porque não posso dizer que seja saudável de quando era nova, mais nova, ou melhor, menos velha, e pensava em diferentes coisas. É uma saudade daquilo que posso deixar. Não é nostalgia do que passou, nem melancolia porque lembro sobretudo as coisas boas — sem me esforçar muito por isso. Sei que sinto falta das pessoas que já cá não estão, não só da família como dos colegas mas isso é natural. As saudades de que fala, que ensombram o texto, são mais difíceis de classificar e até antitéticas, é como se tivesse saudades do futuro.

A definição de saudade não é essa… ou pelo menos não é aquela que as pessoas mais associam à palavra.
É uma saudade do que ainda não se tem por completo e já se sabe que se vai perder. Pode acontecer. Saudade de um futuro que já não vou viver.

"É uma saudade daquilo que posso deixar. Não é nostalgia do que passou, nem melancolia porque lembro sobretudo as coisas boas -- sem me esforçar muito por isso. Sei que sinto falta das pessoas que já cá não estão, não só da família como dos colegas mas isso é natural. As saudades de que fala, que ensombram o texto, são mais difíceis de classificar e até antitéticas, é como se tivesse saudades do futuro".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Não gostava assim tanto de ser uma jovem nos nossos tempos, pois não?
Como é que sabe isso [risos]? É verdade, não sei se alguma vez disse isso em público mas sim, às vezes penso que não gostava de ser nova agora.

Sabe explicar porquê?
Não sei. Talvez porque há coisas que agora me dececionam mais. Mas vivi tantas épocas diferentes e todas com cunho muito especial, todas importantes e difíceis. Embora eu fosse introvertida, calada, hoje reparo muito que há muita falta de comunicação entre as pessoas. Não é que fosse muito comunicativa na altura da minha juventude. Não consigo explicar muito bem, mas há qualquer coisa que não é cansaço de viver.

O que é que se interpõe entre a comunicação das pessoas?
Eu acho que há muita falta de comunicação. Por exemplo, nos transportes públicos. As pessoas não comunicam e em Portugal isso era muito comum. As pessoas comunicavam. Os anos que vivi em Paris senti muito a diferença. Entre os parisienses, principalmente, senti muito isso, que não havia abertura para comunicar e isso chocava-me um pouco porque em Portugal não era assim. Acontecia qualquer coisa e as pessoas falavam, comentavam.

Carmen Dolores, sempre rodeada de livros JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

JÚLIO LOBO PIMENTEL/OBSERVADOR

Mesmo assim escreve que ficou mais otimista com o tempo.
Ai mas muito mais! Quando era rapariga era melancólica e tinha uma tendência para ler livros dramáticos, uma grande tendência para histórias e coisas trágicas. Era o meu feitio. Não foi só por ter perdido o meu pai tão cedo. Eu já era, por natureza, assim, uma pessoa fechada e triste. Posso dizer que era triste. Lembro-me de não saber como se sorria. Para mim, hoje, o sorriso é muito importante. Não sei quando é que aprendi a sorrir. Aconteceu que eu, a pouco e pouco, fui-me tornando menos melancólica mas não encontro uma razão.

Está a escrever agora uma retrospetiva sobre os Comediantes de Lisboa, a primeira companhia onde trabalhou, no Teatro da Trindade. Como foram esses tempos?
Olhe, nesse tempo era triste. Ainda era uma rapariga triste. Tinha 20 anos. Também foi nessa altura que me estreei no cinema, com Amor de Perdição e se calhar foi por isso que o António Lopes Ribeiro me escolheu para a Teresa. A Teresa era muito isso. Só que a minha não era uma melancolia romântica. Talvez uma melancolia de saber que havia tanto para fazer, ser muito exigente, alguma responsabilidade, inexperiência, querer fazer tudo muito bem.

Portanto nada a ver com desamores?
Não, não, (Risos). A pouco e pouco fui-me abrindo mais, falando mais, porque só falava bastante em casa. Fui-me adaptando mas não sei dizer a partir de que altura me tornei mais alegre. Ou menos triste. Mas o que é certo é que fiquei mais otimista até costumo dizer uma coisa ao meu filho: “Precisava de ter agora 80 anos! Ai o que eu fazia com 80 anos!” e ele goza comigo e diz: “Os teus oitenta anos”. Realmente com 80 anos acho que era nova e agora também acho — não me sinto velha, velha, assim velhinha.

"Talvez porque há coisas que agora me dececionam mais. Mas eu vivi tantas épocas diferentes e todas com cunho muito especial, todas importantes e difíceis. Embora eu fosse introvertida, calada, hoje reparo muito que há muita falta de comunicação entre as pessoas". 
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos, sobre o facto de não desejar ser nova agora

Escreveu também que começou a ler poesia quando as pessoas ainda davam valor às palavras. Acha que já não damos valor às palavras?
Menos. Há cada vez menos público para as palavras. Tem que vir da escola e cada vez vem menos. A culpa não é das pessoas. Acho que as pessoas despejam palavras, por exemplo, na televisão. No outro dia estava a ouvir a missa e as pessoas que leem as passagens da Bíblia despejam palavras ou pelo menos eu tenho essa sensação: de que estão a ler aquilo como se estivessem a ler outra coisa qualquer. Isso desgosta-me mas a reafirmação da utilidade e da força da palavra tem que vir da escola porque os pais de hoje também já não sabem, já não podem dar isso, já não passam essas coisas. Se não vem da escola, vai acabar. Haverá cada vez menos interesse em ouvir. Ouvir falar é muito importante, ouvir falar com as sílabas todas, ouvir como quem escuta. Parece-me que hoje em dia as pessoas não leem em voz alta. Na escola líamos em voz alta, fazia parte. Sempre foi muito importante para mim. As pessoas não dão valor à palavra. Continuo a ler em voz alta e mudo sempre coisas quando vou reler em voz alta.

De quem são as palavras? Dos poetas, dramaturgos e escritores que as põem no papel ou de quem lê os poemas e interpreta as peças e os romances?
As palavras são de todos. O poema, ou as palavras só existem quando esbarram num destinatário. Não sei o que pensam os poetas, já não digo os escritores porque a prosa ainda se lê menos em voz alta, quando ouvem os seus poemas mas sei que cada vez ouvem menos.

Em "Gebo e a Sombra", de Raúl Brandão, como Sofia

Começou pela poesia, aos 14 anos, na rádio.
Comecei pela poesia, a poesia sempre teve muita importância, já tinha antes disso. Em casa aprendi logo a dizer versos quando era miúda, o meu irmão ensinou-me logo. Diziam-se muitos versos lá por casa e à mesa fazíamos versos. Um de nós começava com uma frase e os outros tentavam acabá-lo fazendo uma quadra.

Na rádio, tal como acontece na maioria da literatura, o recetor do texto forma todo o cenário da “trama” através da sua imaginação. Não há imagens como num ecrã de televisão. Teve esse “poder” na sua voz, quando começou a fazer rádio teatro. Foi isso que a fascinou?
Sim, sim, completamente. Ainda hoje encontro pessoas que se lembram de alguns teatros que ouviram e dizem que se lembram bem daquela peça ou da outra. Na rádio não há apetrechos, não há imagem, tínhamos que imaginar, acho que foi aí que comecei a cultivar a memória visual, eu hoje leio e vejo tudo o que estou a ler. É um grande esforço, e requer algum talento, fazer passar tudo através das ondas da rádio: angústia, alegria, suspense, só pela voz é isso que é extraordinário.

Isso aprende-se?
Eu não aprendi. Quando lia um texto eu sentia-o. Em miúda já imaginava muito, lia muito e via tudo a passar à minha frente e por isso não foi difícil para mim reproduzir essas imagens na rádio. Depois comecei a ouvir-me, e comecei a perceber os defeitos que tinha. Por exemplo era demasiado explicadinha, até no cinema, explicava tudo, muito formal para que percebessem. As pessoas encontravam-me na rua e diziam-se ‘ai gosto muito porque se percebe tudo o que diz’. Por isso eu digo que acho importante que as pessoas não despejem palavras.

Escolhia as poesias que lia?
Não. Ou seja, no início sim, era eu que escolhia mas depois entrei em programas de poesia como “O Tempo da Poesia” com o Carlos Queiroz e depois “Poesia, Música e Sonho” e aí já não escolhia.

"Há cada vez menos público para as palavras. Tem que vir da escola e cada vez vem menos. A culpa não é das pessoas. Acho que as pessoas despejam palavras, por exemplo, na televisão. No outro dia estava a ouvir a missa e as pessoas que leem as passagens da Bíblia despejam palavras ou pelo menos eu tenho essa sensação: de que estão a ler aquilo como se estivessem a ler outra coisa qualquer". 
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Lembra-se de algum poeta que tenha escolhido e a tenha marcado?
Ó, eu na altura ainda era miúda, muitos dos poetas eram mais clássicos, digamos, Augusto Gil, Antero de Quental…

Disse-nos há pouco que era muito tímida. Foi essa timidez que a levou aos microfones escondidos da rádio e só depois aos palcos?
Não, não. Não pensava ser atriz. Primeiro pensei em ser missionária.

Porquê?
Não era uma questão religiosa. Era para levar a palavra às pessoas. Devo ter lido qualquer coisa relativo a uma missionária. Era sobretudo um desejo de ir ao encontro de pessoas. Tinha muita dificuldade em chegar às pessoas e acho que vi nessa profissão uma forma de me aproximar. Depois pensei ser professora.

Também para usar a palavra…
Hoje, à distância, percebo isso. Era tudo para falar, para transmitir palavras aos outros. Eu era tímida com as pessoas conhecidas mas adorava falar com estranhos. Quando alguém me abordava na rua ou no eléctrico eu falava mas quando via uma pessoa conhecida na rua era capaz de atravessar para o outro lado. Falar com uma pessoa que não conhecemos é ótimo, não nos julgam tão facilmente, não fazem ideia do que está para trás. E a rádio permitia-me isso.

"Quando era rapariga era melancólica e tinha uma tendência para ler livros dramáticos, uma grande tendência para histórias e coisas trágicas. Era o meu feitio. Não foi só por ter perdido o meu pai tão cedo. Eu já era, por natureza, assim, uma pessoa fechada e triste. Posso dizer que era triste. Lembro-me de não saber como se sorria. Para mim, hoje, o sorriso é muito importante. Não sei quando é que aprendi a sorrir. Aconteceu que eu, a pouco e pouco, fui-me tornando menos melancólica mas não encontro uma razão".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Isso apaixonava-a na rádio?
Comecei com o meu irmão na rádio, ele cantava coisas líricas, era tenor. Oferecemos por ir fazer um programa, numa rádio de amadores, ninguém pagava nada, era por amor à arte e nenhum de nós pensava no futuro nem em ganhar alguma coisa dali. Surgiu assim. A rádio era uma festa, era muito bonito.

A sua mãe também não queria que fosse atriz.
Não. Naquela altura ser atriz não era bem visto. E o meu pai já tinha morrido, ela tinha medo que me perdesse. E mesmo o meu pai, que era jornalista e fazia crítica de teatro, não gostava nada que os filhos andassem pelos bastidores dos teatros. Demasiada boémia. E a minha mãe não estava preparada para que eu fizesse o mesmo. A rádio não tinha problema era uma gracinha mas depois, quando foi o cinema, a minha mãe, viúva, sentia uma responsabilidade maior. Os meus irmãos é que me entusiasmaram imenso porque eu própria não pensava ser atriz. Foi uma sorte extraordinária.

E quando a sua mãe a viu?
Foi um bocadinho o choque. Mas nessa altura as coisas sucederam-se com tal rapidez, e naturalmente, que ela deixou de pensar assim.

Ela apercebeu-se que não havia mal?
Sim. Até porque, naquele tempo, as raparigas iam acompanhadas para o estúdio. Eu ia com a minha mãe ou com os meus irmãos para as filmagens.

Fala muito da sua paixão pelas vozes da rádio, pelos locutores mesmo. Ficava horas a ouvi-los. Nunca pensou que muitos também se terão apaixonado por si — ou pela sua voz?
De repente essas pessoas parecem mais irreais, mais inatingível. A voz é de todos e só nossa. Para mim os locutores eram… eu gostava muito mais de ouvir vozes do que canções. A voz falada… eu tinha a sensação que os locutores falavam só para mim, passava horas encostada ao aparelho, era uma loucura. Era a voz que me apaixonava e sim, pensei nisso, até porque recebi muita correspondência. As pessoas escreviam, os jovens principalmente, escreviam muito aos artistas, a pedir fotografias. Assim que me estreei no cinema uma das coisas que pedi foi que me tirassem fotografias, e depois tirassem muitas cópias, para ter para mandar. Nos Estados Unidos já se fazia muito isso, os grandes estúdios de cinema tinham essas fotos dos seus atores e enviavam para todo o mundo. De modo que uma das primeiras despesas que tive quando comecei a ser mais conhecida foi tirar fotografias para mandar aos admiradores. O meu irmão pedia por carta algumas fotografias a atrizes lá da América e via o prazer que lhe dava receber aquilo e queria proporcionar o mesmo. Há uns anos um taxista disse-me que tinha uma fotografia que lhe tinha enviado e contou-me que a filha dele faz troça dele por aquilo ser para mim uma relíquia…

"Naquela altura ser atriz não era bem visto. E o meu pai já tinha morrido, ela tinha medo que me perdesse. E mesmo o meu pai, que era jornalista e fazia crítica de teatro, não gostava nada que os filhos andassem pelos bastidores dos teatros. Demasiada boémia. E a minha mãe não estava preparada para que eu fizesse o mesmo. A rádio não tinha problema era uma gracinha mas depois, quando foi o cinema, a minha mãe, viúva, sentia uma responsabilidade maior".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Até houve quem oferecesse a sua fotografia em troca de bacalhau no tempo do racionamento.
Ai essa história, juro que é verdade! Fui a Alhandra dizer poemas com o Vitor de Sousa e apareceu uma senhora, no final, a falar comigo que me contou uma história extraordinária. Na altura da guerra tinha ido lá estrear um filme, acho que foi Um Homem Às Direitas (1944), e fomos distribuir fotografias pelo público. Ela era pequenina, estava com os pais e ficou com aquela fotografia. Um tempo mais tarde a mãe, que vivia com dificuldades, foi a uma mercearia porque queria comprar bacalhau e não tinha dinheiro para pagar. Então ofereceu a fotografia e, em troca, trouxe o bacalhau. E essa senhora, na altura miúda, quando voltou da escola e reparou que não tinha a fotografia teve um ataque de choro enorme. Achei esta história incrível.

Como Teresa Carrar em "As Espingardas da Mãe Carrar" de Bertolt Brecht

Deve ter recebido milhares de cartas…
Sim, sim, eu tinha uma mala de viagem enorme cheia de cartazes e quando me casei rasguei a maior parte.

Então? Eram cartas de amor escaldantes?
Umas eram de amor, outras não eram mas sabia que não podia ir com tudo aquilo para casa. Na altura em que se estreou o Amor de Perdição estava a trabalhar no Rádio Clube Português e as pessoas ouviam-me e mandava as cartas para lá. A Rádio Clube era na Parede e eu lembro-me de vir no comboio a abrir as cartas e a ler. Eram imensas cartas.

E lembra-se de alguma que a tenha marcado?
Havia um estudante de Coimbra que me escrevia às vezes a dizer: “Carmen sigo no primeiro comboio depois da sua resposta”. A esse não mandei fotografia, tive medo. Tinha visto o Amor de Perdição e pronto — e eu estava horrível no Amor de Perdição, mas enfim! Acho que as pessoas eram mais românticas do que são hoje. Se calhar é por isso que digo me adaptaria mal a ser rapariga hoje.

Ainda hoje falam consigo na rua?
Sim, sim. Muito. Até fico admirada. Fiz televisão, certo, mas fico admirada. Algumas pessoas acompanharam-me toda a vida. Nos lançamentos dos livros acho muita piada. As pessoas vêm ter comigo e dizem-me: “Por favor não se importa de autografar este livro que é para o meu avô, ele é seu fã, ele nunca a esqueceu”. (Risos)

A voz era tão importante na altura que a Amélia Rey Colaço fazia as audições aos seus artistas, ou uma parte delas, sem lhes ver a cara, escondida atrás de uma porta para lhes ouvir apenas a projeção, a entoação, o poder da voz. Acha que teria sido atriz sem a rádio?
Olha que interessante, isso eu não sabia. Comigo nunca fez isso mas também só trabalhei com ela já depois de algum tempo nos Comediantes (de Lisboa). Mas acho que não tinha, não. Eu tive imensa sorte, as coisas vieram ter comigo, na altura certa. Depois esforçava-me muito mas já dentro dos trabalhos. As oportunidades vieram ter comigo que é uma coisa que às vezes as pessoas não têm. Depois dedicava-me inteiramente mas muitas coisas vieram ter comigo.

"Havia um estudante de Coimbra que me escrevia às vezes a dizer: "Carmen sigo no primeiro comboio depois da sua resposta”. A esse não mandei fotografia, tive medo. Tinha visto o Amor de Perdição e pronto -- e eu estava horrível no Amor de Perdição mas enfim! Eu acho que as pessoas eram mais românticas do que são hoje. Se calhar é por isso que digo me adaptaria mal a ser rapariga hoje".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

O teatro na rádio devia regressar?
Ai, acho que é uma coisa importantíssima!

E porque não se faz?
Dizem que é caro, que as pessoas agora interessam-se mais por música do que pela palavra mas acho que seria importante, sim. As gerações mais novas não sabem o que isso é, e a importância da palavra pensada e bem dita perde-se. Estou a repetir-me.

Olhamos à volta da sua sala e só livros, o corredor está forrado a livros. Diz neste livro que os poetas não são só poetas mas são também a sua companhia.
Desde sempre. Muitos nunca conheci, outros que conheci nunca disse isso por timidez porque desde miúda eles sempre foram presenças. Não tinha coragem para lhes dizer isso. Conheci o Alexandre O’Neill, por exemplo, talvez o mais conhecido. Mal cheguei a conhecer mas ele escrevia-me cartas e até me dedicou um monólogo que transcrevo no meu último livro. Admiro muito quem escreve, por isso é que me sinto sempre uma coitadinha de uma atriz que escreve (Risos).

Falava-me há pouco da morte prematura do seu pai. Tinha 15 anos. A forma como ele se despede da família é um pouco triste. Pode contar-nos essa história?
Não gosto muito de falar disso mas de facto foi triste. Nós éramos uma família que vivia razoavelmente. A minha mãe não precisava de trabalhar. Tínhamos as nossas economias mas o meu pai teve um problema — ou um problema de amigo para resolver. O filho desse grande amigo do meu pai contraiu uma enorme dívida de jogo e ele emprestou-lhe o que tinha juntado ao longo da vida. Deveriam pagar-lhe em oito dias, mas não pagaram. A minha mãe nunca esteve de acordo com isso mas o meu pai dizia-lhe: ‘Eu não posso perder um amigo’ e a minha mãe dizia: ‘Vais perder o dinheiro e o amigo’. E assim foi. O meu pai, daí até à sua morte, foi sempre a definhar. Ele já tinha tido problemas de saúde, arranjou uma neurastenia e pronto.

A sua vida mudou muito.
Isso marcou-me, como é natural. Mas, por outro lado, aprendi muito cedo as dificuldades da vida. A minha mãe foi uma mulher extraordinária, tomou logo as rédeas e vivíamos razoavelmente. Isso fez-me bem entre aspas. Era melhor que não tivesse acontecido mas eu tento ver isso com uma coisa positiva, o depois.

Em “No Palco da Memória” fala de si mesma como “uma criança tímida que acabou responsável pela família”, coisa que o seu pai, que só a conheceu ainda menina, nunca adivinharia. Porque é que se sentiu responsável, sendo a irmã mais nova?
Passado pouco tempo surgiu a hipótese do cinema e eu comecei a trabalhar. O meu irmão estava casado, tinha a vida dele para sustentar, ganhava pouco e fui um bocadinho a pessoa que acabei por contribuir. Ele não sabia o que eu ia ser, claro, eu na altura só dizia uns versinhos na rádio, nunca sonhou que eu pudesse ser atriz e, em todo o caso, não sei se ele haveria de ter gostado dessa opção.

Nessa altura em que a sua família sofreu um pouco até voltar a erguer-se, sentiu falta de algum conforto material?
Sim, muitas coisas deixamos de ter. A minha mãe foi logo drástica: alugou dois quartos e retirou o telefone. A minha irmã não trabalhava e teve que se empregar, sendo que ela nunca tinha trabalhado e era muito mais velha que eu. Ela era asmática e morreu com 46 anos. Tudo isso foi muito complicado. Nos meus primeiros tempos do teatro não tinha a possibilidade de me vestir como as outras raparigas porque achava que isso era supérfluo. De alguma forma isso foi um filtro importante: eu ligava às coisas realmente essenciais, nunca tive inveja, nunca quis essas coisas. É que na altura era a nossa situação complicada que se juntava à situação complicada do país porque o meu pai morre no início da guerra, em 1939 e nós tínhamos menos armas para fazer frente àquela austeridade, ao racionamento, isso tudo.

Há uma passagem no seu livro em que fala de passar do camarote para o “galinheiro”, aquelas galerias muito altas no teatro onde ficam os bilhetes mais baratos. Mas até nisso conseguiu ver alguma vantagem: fingia que estava dentro dos Enfants du Paradis, do Marcel Carné. Parece que a morte do seu pai lhe deu uma capacidade de ver as coisas boas nas coisas más.
Adoro esse filme. Estar no galinheiro foi lindo. Nunca mais me esqueci daquele Frei Luís de Sousa que vi lá de cima. Eu ia ao teatro desde bebé, juntavam-se duas cadeiras no camarote e eu ficava a dormir. No fim, dizia a minha mãe, eu acordava e batia muitas palmas, muitas palmas. Mas sim, tive essa capacidade de conseguir ver na nossa nova realidade outras coisas boas. Nem sempre é no luxo que estão as experiências e as vivências mais impressionantes.

As pessoas iam mais ao teatro?
Lembro-me de um artigo do meu pai, datado do ano em que eu nasci, 1924, em que ele dizia que o teatro estava em crise, penso que sempre esteve e sempre estará. Mas já houve uma altura pior do que hoje, acho que está a voltar. A revista tinha aquele picante, tinha aquelas piadas que simulavam uma certa revolta latente. Vinha gente de todo o lado ver a revista, de todo o país mas acho que nunca houve um público massivo para o teatro. Era um dos poucos entretenimentos por isso talvez tivesse um pouco mais.

"Nos meus primeiros tempos do teatro não tinha a possibilidade de me vestir como as outras raparigas porque achava que isso era supérfluo. De alguma forma isso foi um filtro importante: eu ligava às coisas realmente essenciais, nunca tive inveja, nunca quis essas coisas. É que na altura era a nossa situação complicada que se juntava à situação complicada do país porque o meu pai morre no início da guerra, em 1939 e nós tínhamos menos armas para fazer frente àquela austeridade, ao racionamento, isso tudo".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Quando ia em tournée notava-se que as pessoas, nas localidades mais pequenas, não estavam habituadas a ver teatro?
Sim, depois do 25 de abril comecei a percorrer o país com várias peças. É natural que não soubessem bem como agir. Era extraordinário para nós, mas também desconcertante. Em As Espingardas da Mãe Carrar, do (Bertolt) Brecht, representávamos sempre junto do público, com público por todos os lados e uma vez, numa terra que já não me lembro, uma senhora atravessou o palco, eu estava a amassar pão em cena, e foi dizer à sua amiga: ‘vou fazer chichi’.

Em quase todas as entrevistas que deu está sempre a dizer que não quer dramatizar, que nada é grave, que nada é um problema, que é preciso não fazer dramas. No entanto dramatizar foi a sua vida, em palco. Essa relativização dos problemas é uma forma de não se deixar afetar pelo negrume que algumas das suas personagens encerravam?
Comecei a representar muito cedo. O drama está no palco e devemos fazer o possível para que fique lá.

Começou a representar numa altura cheia de tragédia, primeiro a Guerra Civil Espanhola, depois a Segunda Guerra Mundial. É uma altura em que tanto o cinema, com o realismo italiano por exemplo, e o teatro também, começam a dar conta das vidas do povo, do sofrimento anónimo, da miséria, da desigualdade.
Começamos a ter consciência disso, sim. Fiz peças como “O Cadáver Vivo” do Tolstoy e os “Cinco Judeus Alemães” ainda bem dentro do tempo da censura, em 1947, 48. Mas nessa altura não sofríamos muito com isso. O António Lopes Ribeiro era uma pessoa de direita, sempre o afirmou, e foi ele que escolheu essas peças, por isso, de alguma forma, confiavam nele e não nos chateavam. Ele tinha consciência do que estava a fazer, achava importante mas não estava em foco como alguém perigoso. A censura em muito menos ativa. Quando fizemos o Teatro Moderno de Lisboa, sim, aí é que foi. Já havia lá pessoas que pertenciam ao Partido Comunista e só aí tomei consciência do poder da censura. Eu era um pouco ingénua.

Como é que viveu esses tempos, de tomada de consciência coletiva?
Foram uma revelação. Havia tanta coisa que eu não sabia. O Teatro Moderno era no Cinema Império e nós víamos os estudantes a fugir do técnico e a refugiarem-se lá. Circulavam aqueles abaixo-assinados para libertação dos prisioneiros do pensamento, dos presos políticos, comecei a ouvir os meus colegas falarem disso e assinava todas.

Criou o Teatro Moderno nos anos 60, quando fermentava um descontentamento que era cada vez mais difícil de encobrir. Assumiram uma postura de crítica social, de forma clara. Aí já teve problemas?
Sim, assumimos. Era gerente da companhia e era eu que assinava as coisas, escolhia algumas peças mas quem escolhia a maioria era o Rogério (Paulo). Foi muito complicado. Mandávamos às dez peças à censura e vinham duas, as menos interessantes. Ou então vinham as boas com imensos cortes e depois tivemos que acabar porque não se conseguia encenar. A censura matou a companhia. Escolhíamos peças mais ousadas e quase tudo o que mandávamos era rejeitado.

Em "Espectros" de Henrik Ibsen, como Senhora Alving

Vocês tinham que ensaiar perante os censores?
Sim. No Teatro Moderno, quando fizemos o “Humilhados e Ofendidos”, do Dostoyevsky, eu estava nervosíssima. Os censores estavam na plateia e tinham lanternas para irem lendo as falas, para garantirem que não nos desviávamos do texto. A certa altura, estava tão nervosa, que me esqueci do texto e comecei a inventar texto dentro do sentido da personagem e eu só via aquelas lanternas à procura do texto que não estavam lá. Tenho essa imagem presente. Se tivesse sido o Rogério eles tinham achado estranho de certeza, ele era um conhecidíssimo anti-fascista mas eu não estava identificada como uma pessoa perigosa. Depois do 25 de Abril foi o regabofe como se diz. Veio o Brecht todo.

Para Brecht o teatro devia incluir o espectador. O homem, a personagem nunca é um herói, e jamais uma personagem acabada, com tudo resolvido na cabeça, está sempre em construção. Há sempre o propósito que leva à auto-análise, quer sempre despertar consciências. E para isso ele preferiu sempre peças perto do público. Também a Carmen, certo?
Ai, sim, sem dúvida. Adoro. Nunca mais gostei de trabalhar em teatros grandes. É ótimo sentir a respiração do público. Na Casa da Comédia, com as Espingardas (da Mãe Carrar), foi a primeira experiência. Nunca mais quis outra coisa, há uma enorme comunhão. Nós representamos para o público, se não representavámos cá em casa só para nós. Sentir o público é incrível e mesmo como público é muito melhor estar perto do público.

Agora é mais comum. Vê alguma simbologia nisso? O ator já não é aquele divindade inalcançável…
Sim, vejo. É muito mais humano, a aproximação da cultura às pessoas, literalmente, sou muito a favor disso.

Perfilha essa ideia do Brecht de que o teatro tem sempre que conter crítica social, tem que agitar consciências?
Não sei deve ter sempre. Mas é muito importante. Serve para ajudar as pessoas a entenderem a realidade e outras realidades. Mas também gosto muito de um teatro poético, como (Federico García) Lorca, se bem que Lorca não é só isso. O teatro não tem barreiras: a revista diz-se que é para o povo, que toda a gente entende mas também Brecht é assim, feito para ser apreendido por toda a gente por isso acho que todas as peças têm um propósito.

"No Teatro Moderno, quando fizemos o 'Humilhados e Ofendidos', do Dostoyevsky, eu estava nervosíssima. Os censores estavam na plateia e tinham lanternas para irem lendo as falas, para garantirem que não nos desviávamos do texto. A certa altura, estava tão nervosa, que me esqueci do texto e comecei a inventar texto dentro do sentido da personagem e eu só via aquelas lanternas à procura do texto que não estavam lá. Tenho essa imagem presente. Se tivesse sido o Rogério eles tinham achado estranho de certeza, ele era um conhecidíssimo anti-fascista mas eu não estava identificada como uma pessoa perigosa"
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Mais uma vez somos obrigados a mencionar estes livros todos que aqui tem para lhe perguntar: quem são os seus autores preferidos?
Isso é tão difícil de responder. Vou só dizer alguns mais óbvios, algumas referências em Português. Gosto muito de José Luís Peixoto, António Lobo Antunes e gosto muito de José Saramago. Gosto muito de Clarice Lispector também. Nenhum deles é fácil e é por isso que eu gosto.

Não falámos ainda foi de Paris.
Nunca vi tanto cinema, foi tão bom, é essa a memória que guardo. Ia tanto ao cinema. Foi por altura do novo cinema alemão, com o (Rainer) Fassbinder, mas também do (Carlos) Saura, espanhol e os franceses todos. Foi uma época incrível. Era tão diferente esse cinema. Sabe que eu ainda me lembro do cinema mudo! Foi quando foi inaugurado o Pompidou, e tinha tempo, foi a primeira vez que tive tempo. Escrevi muito nessa altura. Ter tempo é muito bom. Fui para Paris com o amor da minha vida, que se quer mais?

Virgínia, em "A vida de Virgínia Wolf", de Edna O'brien

Foi só por um ano, com o seu marido Vítor, e acabou por ficar sete.
Sim o Vítor acabou por ficar imenso tempo colocado lá. Ele estava sempre preocupado. E as minhas amigas também. Perguntavam se eu não tinha medo que me esquecessem, estava há tempo fora de Portugal. E eu dizia: ‘Então se se esquecerem o pior é deles. Depois voltei o foi ótimo, voltei a fazer grandes coisas.

Que heroínas é que lhe faltam fazer?
A Hedda Gabler, do (Henrik) Ibsen. É curioso. Eu digo que sorte sempre veio ter comigo e das únicas vezes que pedi subsídios nunca mos deram. Um deles era para a Hedda Gabler. Em Cascais, no Verão, lembro-me de ir para lá para uma casinha que tínhamos alugada e tentar escrever com aquilo que eu imaginava ser a letra da Hedda Gabler.

"Nós não somos assim tão transparentes, não nos explicamos assim tão bem a nós próprios. Independentemente do tempo que vivamos não nos vamos conhecer bem, ninguém se conhece. Já tenho tido essa conversa. As pessoas por vezes podem ainda vir a ter atitudes que não nos passariam pela cabeça. De uma maneira geral, as pessoas dizem muito coisas como: 'Ai eu seria incapaz de fazer isso'. Mas ninguém pode dizer isso".
Carmen Dolores, atriz e autora de três livros autobiográficos

Deixava as personagens tomarem conta de si?
Era muito dedicada mas tentava sempre não trazer as personagens para casa. Nem nas pausas dos atores, nem nos intervalos, nem nos tempos mortos, nunca abandonava. E não gostava muito que me distraíssem. Antes de entrar em cena lia sempre o ato. No caso da Virgínia (A Vida de Virgínia Wolf de Edna O’Brien) era muito texto, era só eu. Então nessa peça, antes de jantar, concentrava-me muito e lia tudo antes de ir para o teatro.

Em 1959 fez “Seis Personagens à Procura de um Autor”, do Luigi Pirandello. Entra no fim e diz apenas: “Eu sou aquela que quiserem que eu seja”. Acha que foi aquela que as pessoas quiseram que fosse?
Não sei se fui mas acho que tentar sê-lo é uma despersonalização. Essa peça mexeu muito com as pessoas. Chegaram a telefonar-me a perguntar realmente quem era eu, nessa peça, mas eu também não sabia, é Piradello que é totalmente fora da caixa! (Risos)

Há uma passagem em “As Vozes Dentro de Mim” em que a Carmen parece que consegue, a custo, expulsar alguém que vive perto de si, talvez mesmo dentro de si e a pressiona, a oprime. Acredita que temos várias vozes dentro de nós e que temos que lutar a favor de umas e contra as outras?
Em nós há mais do que uma personalidade. Esse texto de que fala foi escrito para mim própria, para a outra pessoa que há em mim.

Em que se distingue que si?
Foi outra que eu fui em alguma altura da minha vida. Outra que de vez em quando me tentava levar para outros caminhos mas não sei quais.

Sempre sentiu que há outra pessoa em si?
Sim, houve alturas em que sentia isso plenamente. Hoje sinto menos. Uma outra que eu achava pior do que eu, menos concreta. Ora está-me a fazer perguntas que eu nem coloquei a mim própria!

É, de qualquer forma, um texto sobre luta.
Nós não somos assim tão transparentes, não nos explicamos assim tão bem a nós próprios. Independentemente do tempo que vivamos não nos vamos conhecer bem, ninguém se conhece. Já tenho tido essa conversa. As pessoas por vezes podem ainda vir a ter atitudes que não nos passariam pela cabeça. De uma maneira geral, as pessoas dizem muito coisas como: ‘Ai eu seria incapaz de fazer isso’. Mas ninguém pode dizer isso. Não sei se é por ser atriz que eu penso assim, porque sempre tive que me por na pele de outras pessoas. Talvez. Não há explicação para as coisas, as pessoas dentro de nós surpreendem-nos a nós mesmos mesmo e depois perguntamos: ‘Como é que isto me foi passar pela cabeça’?

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