Quando o Conselho de Administração liderado por Fernando Araújo entrou em funções no Centro Hospitalar São João, em fevereiro de 2019, havia um problema para resolver. Uma porta. Era uma porta que se impunha num dos corredores dos serviços de ambulatório, no polo onde funciona o hospital de dia, e que bastava para atrasar o percurso dos doentes desde a sala de espera até aos consultórios médicos.
Mesmo depois de cumprido o atribulado caminho entre os dois espaços, que na verdade é de apenas alguns metros, esse último obstáculo insistia em interferir nas consultas. Sempre que alguém a empurrava para desimpedir o caminho, a porta batia numa das paredes e o ruído ecoava pelos consultórios. Era imperativo para os profissionais de saúde — e já o era há longos anos — livrarem-se dela.
Foi essa uma das primeiras medidas que o então presidente do Conselho de Administração do Centro Hospitalar São João, que agora é substituído por Maria João Baptista para assumir a direção executiva do Serviço Nacional de Saúde (SNS), tomou ao assumir aquele cargo. E é um exemplo que, para Filomena Cardoso, enfermeira diretora do Conselho de Administração, ilustra um dos segredos da gestão que transformou o São João no berço da revolução que o Governo pretende instalar no SNS: a atenção aos detalhes. E o faro para as grandes mudanças.
É que, entre cargos dirigentes recentemente apontados pelo Executivo, desde a demissão de Marta Temido, três chegaram a ser profissionais de saúde no segundo maior hospital do país. A começar pelo novo ministro da Saúde, Manuel Pizarro, que foi médico internista no São João antes de enveredar na vida política — mas que voltou aos corredores do hospital portuense para reforçar a equipa no início da pandemia de Covid-19.
A sua secretária de Estado para a Promoção da Saúde, Margarida Tavares, chegou a assumir a direção clínica do mesmo hospital, foi coordenadora da Unidade de Doenças Infecciosas Emergentes do São João e, enquanto infecciologista, foi também um dos rostos da instituição na batalha contra a Covid-19. E esta quarta-feira, 2 de novembro, também Fernando Araújo vai abandonar oficialmente as funções no São João para se tornar no primeiro diretor executivo do SNS.
Escala regional (não só hospitalar) evita falta de profissionais de saúde
O percurso começou há uma década, quando Fernando Araújo ainda liderava a ARS do Norte e concebeu uma escala que, em vez de ser adotada ao nível hospitalar, era constituída em rede por todos os hospitais sob a jurisdição daquela administração regional de saúde — um pouco à imagem daquilo que o Governo agora pretende aplicar nos serviços de ginecologia e obstetrícia, que têm acumulado problemas ao longo dos últimos meses, num caos generalizado durante um qual se registou um episódio fatal de uma grávida, que levou à demissão da ex-ministra, Marta Temido.
Quando Fernando Araújo aplicou a tal escala regional, havia já “um desequilíbrio de recursos gerado por esta necessidade de ter a porta aberta 24 sobre 24 horas” em todo o lado ao mesmo tempo, descreveu ao Observador o médico Nelson Pereira, diretor da Unidade Autónoma de Gestão de Urgência e Medicina Intensiva do hospital. É, de resto, uma dificuldade que resiste até hoje noutros hospitais do país e que condena algumas unidades dos serviços de urgência ao encerramento.
O que a ARS Norte propôs foi priorizar a acessibilidade: desde que uma determinada região fosse servida por vários hospitais num raio pequeno, os diferentes serviços dessas instituições deviam alimentar uma escala única — nomeadamente em períodos noturnos, quando há menos procura da população. A exceção são os hospitais que são o único ponto de socorro em caso de urgência em locais mais isolados.
“Fernando Araújo teve consciência de que provavelmente iria haver dificuldades a médio prazo em vários hospitais porque não haveria condições de manter escalas de determinadas especialidades em todos os hospitais ao mesmo tempo”, analisa agora o médico intensivista: “O que se fez foi colocar todos os hospitais a conversar e encontrar um caminho que unisse as pessoas numa solução.” Depois, as mudanças foram sendo instituídas com “serenidade”. Assim, a população adaptava-se e nunca se deparou com portas fechadas abruptamente.
Quando, mais tarde, Fernando Araújo assumiu a direção do Conselho de Administração do São João, a acessibilidade voltou a ser a prioridade da equipa. Filomena Cardoso participou nesse esforço desde o primeiro momento: “Assim que iniciámos funções, reunimos com todos os serviços do hospital e ouvimos os objetivos e as preocupações. E elencamos uma lista de prioridades.”
A missão passou a ser controlar as listas de espera para cirurgia e para consulta externa, cumprir os tempos máximos de resposta garantidos e antecipar possíveis falhas nas escalas — ora por falta de profissionais de saúde, ora porque é preciso mais pessoal para responder a uma qualquer alteração das necessidades da população. E esses objetivos eram cumpridos tão à risca que nem quando havia obras a administração se desviava deles: “Isto é tão importante para o São João que, nas intervenções que foram feitas nos últimos anos, nunca fechámos uma cama, nunca passámos um doente para o exterior”, descreveu ao Observador o engenheiro Jorge Sousa, diretor do serviço de instalações e equipamentos do São João.
Em 2019, só metade das consultas aconteciam em “tempo adequado”. Agora são quase 75%
Os números mostram que o plano tem sido bem sucedido. Em fevereiro de 2019, mês em que o último Conselho de Administração tomou posse, era o hospital com a menor percentagem de primeiras consultas realizadas em tempo considerado adequado: 49,3%. Em fevereiro deste ano, essa percentagem tinha subido para 73,3% e o São João ocupava o 25º lugar no ranking com 43 posições. E a distância para o Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte, a que pertence o maior hospital do país, diminuiu: o Santa Maria estava oito posições e 12,7 pontos percentuais acima do São João há três anos. Em fevereiro de 2022, a diferença é de cinco posições e apenas 6,5 pontos percentuais — metade do que era em 2019.
No mesmo período de tempo, o Hospital São João também duplicou as consultas externas em lista de espera que ainda estão dentro do tempo máximo de resposta garantido: a percentagem em fevereiro deste ano era 72,3%, quando três anos antes era 35,4% (na prática, isto significa que, em 2019, as consultas que aconteciam depois do tempo máximo desejável eram o dobro das atuais). E se, neste parâmetro, o segundo maior hospital de Portugal já tinha um desempenho melhor que o Santa Maria — em 2019, o Centro Hospitalar Lisboa Norte estava cinco posições abaixo, com 35,4% das consultas externas em lista de espera dentro dos tempos máximos de resposta garantidos —, essa distância aumentou. A percentagem em Lisboa Norte subiu para 51,7% e colocou o centro hospitalar 10 lugares acima no ranking nacional, mas o São João saltou do 33º lugar para o 14º em três anos, estando assim 14 posições acima do Santa Maria.
São João ultrapassou maior hospital do país em doentes operados nos tempos garantidos
A estratégia também permitiu que o Centro Hospitalar São João ultrapassasse o Centro Hospitalar Lisboa Norte em doentes operados dentro dos tempos máximos de resposta garantidos. Quando a atual administração tomou posse, 73,1% das operações no São João cumpriam este parâmetro, colocando o hospital na 27ª posição — nove lugares abaixo de Lisboa Norte, onde 79,2% dos doentes eram operados nos tempos máximos garantidos, ou seja, mais 6,1 pontos percentuais.
Volvidos três anos, em fevereiro de 2022, o centro hospitalar em que o Santa Maria se insere melhorou o desempenho: a percentagem subiu para 88,9% e a posição no ranking era agora a 17ª. Mas o salto do São João foi maior: os 93,9% de doentes operados dentro dos tempos máximos garantidos, mais 20,8 pontos percentuais do que em 2019 e mais cinco do que o Santa Maria, fazem do hospital o 10º neste parâmetro, sete lugares acima do maior hospital do país.
À semelhança do que aconteceu com a lista de espera para consultas externas, também a percentagem de inscritos na lista de espera para cirurgia que ainda cumprem os tempos máximos de resposta garantidos aumentou desde que a administração de Fernando Araújo tomou posse. Do 23º lugar, com 73,9% dos inscritos a cumprir os tempos de resposta, o São passou para o 10º com uma percentagem de 91,5% — mais 17,6 pontos percentuais.
O Centro Hospitalar Lisboa Norte, que inclui o hospital de referência em Portugal, já estava abaixo do São João em fevereiro de 2019, mas o fosso entre as duas instituições aumentou nos últimos três anos. É certo que Lisboa Norte subiu do 39º lugar para o 30º, com a percentagem de cirurgias em lista de espera dentro dos tempos de resposta a crescer de 60,6% para 66,1%. Mas a diferença de 13,3 pontos percentuais que se verificava em 2019 em relação ao São João aumentou para 25,4; e o fosso de 16 lugares no ranking nacional aumentou para 20.
Urgências atendidas em tempo previsto melhoraram em três anos
Na percentagem de episódios de urgência atendidos no tempo previsto, no entanto, o Centro Hospitalar Lisboa Norte continua muito acima do Centro Hospitalar São João — embora, ainda assim, este último tenha melhorado o desempenho nos últimos anos. O grupo do Hospital Santa Maria atendia 99,7% dos episódios que chegavam ao serviço de urgência nos tempos previstos em fevereiro de 2019; e essa percentagem manteve-se em linha com estes números, nos 99,6%, três anos depois.
No caso do São João, que era antepenúltimo no ranking nacional com 54,2% — no qual não participam quatro hospitais (Alto Ave, Póvoa de Varzim/Vila do Conde, Cascais e Magalhães Lemos) —, a percentagem aumentou para 63,7% em fevereiro deste ano, melhorando a posição do hospital da 36ª posição para a 33ª.
A equação do São João para as escalas não falharem
A diferença entre os dois hospitais, no entanto, revela-se mais na prática do que na matemática. Em junho, por exemplo, o serviço de urgências de obstetrícia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, chegou a estar 18 horas sem receber doentes em ambulâncias de emergência por ter atingido a lotação máxima. O hospital sofreu assim as consequências de, noutros hospitais em Lisboa e Vale do Tejo, estes serviços de urgência terem encerrado por falta de profissionais de saúde para garantir o mínimo de resposta, obrigando a que os doentes fossem desviados para outras instituições. No São João, mesmo com as dificuldades em hospitais como o de Braga, isso não chegou a acontecer. O segredo está nas escalas.
Segundo Nelson Pereira, o sistema implementado nos últimos 10 anos preenche as escalas das diversas especialidades e serviços em função daquilo que se antecipa serem as necessidades futuras da população que os hospitais servem. E o serviço de urgência é, de resto, um foco para o conselho de administração: “Se a urgência de um hospital funcionar mal, todo o hospital vai funcionar mal. É a principal porta de entrada do doente agudo, que é a mais preocupante em termos de risco imediato de vida”, justifica o médico intensivista.
Tudo acontece como uma equação, através de uma análise da procura: pesa-se o número de doentes observados, internados ou intervencionados em cada especialidade num determinado período de tempo e confronta-se esse fator com o número de profissionais dessa especialidade que estão em condições de contribuir para a escala. Se a evolução desse rácio demonstrar que cada profissional de saúde está a atender cada vez mais doentes, essa é uma bandeira vermelha: é preciso reforçar as equipas.
“Em resumo, é garantir o acesso aos doentes”, sumariza Nelson Pereira, “melhorando a interação com os profissionais no sentido de garantir que não há falhas ou sobrecarga, sem por em risco as boas práticas ao nível do acesso e da competência técnica”. E esta adaptação das escalas verifica-se não só nas equipas de médicos, mas também de enfermeiros, acrescentou Filomena Cardoso: “Planeamos os meses seguintes e percebemos onde estão as falhas. É por isso que agora temos muitas enfermeiras especialistas em saúde materna e obstétrica”, exemplifica.
Covid-19. Como Araújo foi contra “relutâncias internas” para erguer o hospital de campanha
A capacidade de antecipação foi preponderante durante a pandemia de Covid-19. Em janeiro, poucos dias depois de os primeiros casos terem sido diagnosticados na Europa, o Conselho de Administração do São João reuniu para traçar o plano de atuação para quando os primeiros casos atingissem o Norte do país. Esta acabou mesmo por ser a primeira região a identificar casos positivos de infeção pelo SARS-CoV-2. “Quando cá chegaram, já tínhamos pensado em vários cenários, sabíamos o caminho dos doentes quando entrassem no hospital e estávamos sempre um passo à frente”, recorda a enfermeira-diretora, Filomena Cardoso.
Um exemplo? Jorge Sousa estava com o filho num jogo de futebol quando o telefone tocou. Era sábado e o diretor do serviço de instalações e equipamentos do São João estava de folga. Do outro lado da chamada estava Fernando Araújo, que tinha reunido ao fim da tarde com os corpos dirigentes do hospital para debater o que significavam os surtos de coronavírus que se estavam a registar em todos os países, cada vez mais próximos das fronteiras de Portugal. Tinha-lhe telefonado porque tinha uma missão: erguer um hospital de campanha para o São João se preparar para o pior.
“Nesse dia, à meia-noite, estávamos a montar tendas do INEM para conseguirmos receber pacientes na semana seguinte e a sofrer os primeiros impactos da pandemia”, recorda o engenheiro. A decisão não foi consensual internamente, entre os profissionais no São João. “Mesmo internamente, as pessoas olhavam com alguma relutância para grandes adaptações e decisões disruptivas na instituição”, admite Nelson Pereira: “Temos dificuldade em visualizar o que o desconhecido pode trazer.” Certo é que o hospital de campanha estava erguido 24 horas depois de a decisão para o constituir ter sido tomada. Dois dias mais tarde, já era pequeno para o número de doentes infetados que necessitavam de acompanhamento.
Reuniões como as que determinaram a criação do hospital de campanha são organizadas mensalmente no Hospital São João; e participam nelas todos os responsáveis em cada unidade autónoma de gestão — por exemplo, cirurgia, medicina interna, cuidados intensivos ou pediatria. Cada uma dessas unidades apresenta um contrato de programa para cumprir ao longo do ano com a produção que se compromete a realizar e os prazos que se propõe a cumprir.
Em cada reunião mensal, os responsáveis pelas unidades fazem um ponto de situação desses projetos e expõem, perante todos os colegas, os desafios que estão a atravessar, as implicações que têm no plano apresentado e a evolução dos prazos que tinham sido propostos. Uma reunião nunca acaba sem que seja acordada uma data, entre todos os presentes, para a reunião seguinte.
Para Jorge Sousa, este é um dos fatores que mais contribui para o sucesso da gestão no São João: “Muitas vezes, o problema de outros hospitais é não saber quando é que os projetos vão acabar e quem é responsável pelo quê. Aqui toda a gente sabe quem é responsável, quem está na equipa e o ponto de situação.” E foi por isso também que, apesar da pandemia, a equipa de Jorge Sousa conseguiu terminar as obras no “Joãozinho”, a nova ala pediátrica, dentro dos dois anos previstos para o projeto, pondo um ponto final a 10 anos de funcionamento do serviço de pediatria em contentores.