Faltava uma hora e meia para as portas do Salão Nobre da Irmandade da Lapa, no Porto, abrirem este sábado e já uma fila com centenas de pessoas se formava junto à entrada. A razão era simples. “Não é todos os dias que temos a oportunidade de ver uma coisa destas”, ouvia-se entre pessoas de todas as idades, portugueses e estrangeiros, debaixo de uns já quentes 25 graus. Uns sabiam ao que vinham e até informavam familiares e amigos para chegarem cedo e assim evitarem a confusão de logo à tarde, outros folheavam mapas e guias da cidade para anteciparem de alguma forma o que iam ver ao vivo e a cores minutos mais tarde.
Antes de viajar temporariamente para o Brasil, no âmbito das celebrações do bicentenário da independência brasileira, o coração do rei D. Pedro IV, guardado no Porto há 187 anos, está pela primeira vez em exposição aberta ao público. A fila andava a um bom ritmo e, enquanto esperava pela sua vez, Carlos Costa explicava baixinho à mulher a história que cruza Portugal e o Brasil. “Sou do Nordeste, vivo no Porto há quatro anos e sempre quis presenciar este momento”, confessa ao Observador. “Já tinha visitado várias vezes a Igreja da Lapa, sabia que o coração de D. Pedro estava lá, mas nunca tive a oportunidade de o ver de perto, então hoje não irei esquecer. Espero poder tirar várias fotografias para mostrar à minha família no Brasil”.
Uns metros à frente estão as irmãs Madalena e Maria Sousa, já impacientes e de garrafa de água na mão. Vieram da Maia de autocarro propositadamente para a ocasião e garantem que a curiosidade é mais do que muita. “Soubemos que isto acontecer pelos jornais e decidimos vir passar uma manhã diferente”, começa por explicar Madalena. “Nunca vi o coração do rei, nem por fotografias, vou completamente às escuras”, diz a irmã, assegurando não ter receio de ficar impressionada ao ver um órgão com quase 200 anos. “Tenho o meu marido no hospital muito mal, duvido que isto me cause algum espanto.”
Depois da indicação do segurança na entrada, e subindo meia dúzia de degraus em pedra, chega-se a uma sala escura e silenciosa, com quadros a óleo nas paredes, vitrines com paramentos religiosos de várias cores, uma mesa de madeira comprida e lá ao fundo, rodeada por dois agentes da polícia municipal, uma vitrine especificamente concebida para o efeito, desenvolvida pelo arquiteto Luís Tavares Pereira, mostra o vaso de prata dourado e o recipiente de vidro com o coração real, posicionado precisamente à altura de um coração no corpo humano.
“Sinceramente fiquei desiludida. Pensava que era vermelho e maior e também que houvesse alguém aqui a explicar o que estamos a ver”, afirma Madalena, desanimada e a tentar tirar fotografias com o telemóvel. Ao seu lado, a irmã Maria Sousa parece não ter dúvidas de que “é realmente estranho, mas tem muito significado para nós e para os brasileiros.”
Entre selfies, vídeos, panorâmicas arrojadas ou breves aulas de história entre pais e filhos, uns passavam rapidamente pela vitrine, mas outros demoravam-se um pouco mais a analisar a relíquia. É o caso de António Pacheco, lisboeta e de passagem pelo Porto de férias. “Gosto muito de história, principalmente esta época liberal e quando soube que isto ia estar em exposição não pensei duas vezes”, recorda, sublinhando não estar “completamente convencido” na ida do coração para o Brasil. “Depois do problema que aconteceu com as joias da coroa acho arriscado. Este é um símbolo demasiado importante, faz parte inclusive do brasão da cidade do Porto, é uma pena se se extraviar. Espero mesmo que volte em condições, são e salvo como se costuma dizer.”
Em apenas 30 minutos já 185 pessoas tinham visitado a exposição, que permanece até domingo na Irmandade da Lapa, onde há várias semanas a azáfama é grande e o dispositivo policial se faz notar. Pela porta verde de madeira têm entrado nos últimos dias vários homens com escadotes, placas de vidro, baias e cartazes com o rosto do rei D. Pedro IV, o “verdadeiro protagonista deste momento histórico”, ouve-se já na saída.
Uma vontade deixada em testamento, três dias num barco a vapor e uma morada pouco óbvia
Conhecido como o Rei Soldado, O Liberal ou O Libertador, D. Pedro IV declarou a independência brasileira a 7 de setembro 1822, tendo sido aclamado Imperador do Brasil com apenas 24 anos, mas é pela Guerra Civil portuguesa que é mais recordado por cá. Quando em 1828 o seu irmão D. Miguel I afastou a sobrinha D. Maria II do trono português iniciou-se um conflito nacional que colocou frente a frente miguelistas e liberais.
Os confrontos entre os dois irmãos culminaram no Cerco do Porto, onde durante pouco mais de um ano as tropas de D. Pedro e a cidade Invicta resistiram ao cerco dos miguelistas, conseguindo, por fim, a vitória. Segundo o professor e historiador Francisco Ribeiro da Silva, o Cerco do Porto “foi o maior acontecimento da história da cidade”, que traduziu uma “mudança completa da estrutura social e modo de exercer o poder” naquela época.
Na véspera da sua morte, a 23 de setembro de 1834, no Palácio de Queluz, exatamente o local onde nasceu 35 anos antes, o rei D. Pedro IV de Portugal e primeiro imperador do Brasil começou a ditar as suas últimas vontades. Junto de D. Amélia, a sua segunda mulher, dirigiu-se aos brasileiros, entregando-lhes o seu filho D. Pedro II, e declarou em testamento a vontade de deixar o seu corpo à cidade de Lisboa e o seu coração à cidade do Porto como prova de agradecimento e reconhecimento da lealdade, resiliência e devoção dos portuenses à causa liberal. O desejo do imperador acabou por se cumprir, naquele que é um gesto único na história de Portugal.
A 4 de fevereiro de 1835 um barco a vapor transportou o coração do monarca de Lisboa para a cidade do Porto, onde só chegou três dias depois à zona da Ribeira. “A Câmara do Porto queria que fosse guardado na Sé Catedral e preparou tudo para isso, mas havia quem defendesse que o coração deveria ficar no Mosteiro da Serra do Pilar, um local importante na luta contra os miguelistas e que foi conquistado pelos liberais muito cedo”, refere o historiador Francisco Ribeiro da Silva, em declarações à RTP.
Com o coração real vinha uma carta a indicar que o órgão fosse depositado na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, um templo onde D. Pedro assistia às missas militares. “Ele chegou a residir no Palácio das Carrancas, onde é hoje o Museu Nacional de Soares dos Reis, mas estava muito exposto à artilharia miguelista e foi obrigado a sair. Mudou-se depois para o número 395 da Rua de Cedofeita e foi nessa altura que começou a frequentar a Lapa, por ser mais perto e mais seguro.”
A 7 de fevereiro de 1835, cerca de 12 mil pessoas acompanharam em procissão o trajeto do coração de D. Pedro IV da Ribeira até à Igreja da Lapa, tornando-se esta morada “o símbolo maior da relação umbilical entre Portugal e o Brasil”. O momento da entrega do coração imperial pelo coronel Baltasar de Almeida Pimentel ao presidente da Câmara do Porto, Vicente Ferreira Novais, está reproduzido na base de pedra, com um baixo-relevo em bronze, na estátua de D. Pedro IV, situada na Praça da Liberdade.
O medo de roubo, as cinco chaves e a cena de um filme
Quando o coração do rei chegou à Igreja da Lapa dentro de uma urna de madeira de mogno, coberta por uma bandeira de seda, havia o receio que fosse roubado. O mausoléu imponente feito em pedra com várias granulações, decorado com elementos militares brasileiros e portugueses, onde hoje está depositado o órgão não existia e foram necessários dois anos para que fosse construído, por isso, a Irmandade da Lapa exigiu que uma sentinela funcionasse de noite e de dia no interior da capela-mor da igreja para garantir toda a segurança necessária.
Se antigamente o coração era exposto sempre que um presidente do Brasil visitava Portugal e se deslocava ao Porto para prestar homenagem a D. Pedro, atualmente esse momento é cada vez mais raro e a operação tem tanto de exigente como de solene. São necessários seis homens com luvas, duas cordas, duas escadas de madeira e cinco chaves de vários tamanhos, que habitualmente estão guardadas numa caixa de madeira no gabinete do presidente da Câmara do Porto, “uma vez que o coração foi entregue à cidade e não à Irmandade da Lapa”.
Tudo começa com uma chave para que seja retirada uma pesada placa de cobre, duas chaves abrem uma grade de ferro, uma outra abre a urna de madeira de mogno e a última fechadura dá acesso a um estojo com um vaso de prata dourado, onde num recipiente de vidro está conservado em formol o coração real. “É um processo demorado que exige alguns cuidados para ninguém se ferir, trata-se de um órgão frágil e achamos que toda a trepidação de movimento pode ser prejudicial”, sublinha ao Observador a Irmandade da Lapa, acrescentando que se trata “de uma relíquia de valor incalculável”.
De 30 em 30 anos a autarquia ou a Irmandade alertam para a necessidade de serem revistas as condições de conservação do coração, um trabalho que normalmente fica a cargo de peritos da Universidade do Porto, mas há exceções. Uma delas aconteceu em janeiro de 2015, quando Rui Moreira, já presidente do município, autorizou a que aquele que considera ser “o maior tesouro da cidade” integrasse uma das cenas do filme “Sentido da Vida”, realizado por Miguel Gonçalves.
Recorde-se que D. Pedro cedeu o corpo a Lisboa, cidade onde nasceu e morreu, mas em 1972 a pedido do Brasil os seus restos morais foram transladados para as margens do Ipiranga, em São Paulo, onde há precisamente 200 anos o imperador declarou a independência daquele território.
Um pedido especial, cinco horas de perícia e uma viagem inédita
D. Bertrand de Orleans e Bragança, tetraneto de D. Pedro IV, visitou no início do mês de maio o mausoléu na Igreja da Lapa, onde está depositado o coração real, e já se avistava a hipótese do mesmo atravessar o oceano para fazer parte das comemorações do bicentenário da independência brasileira, mas só no final desse mesmo mês é que chegou a confirmação. O embaixador brasileiro George Prata, um dos coordenadores das celebrações, enviou um pedido oficial à Câmara do Porto para a trasladação temporária do órgão.
Numa conferência de imprensa, Rui Moreira começou por explicar que após o pedido surgiram preocupações quanto à vulnerabilidade da trasladação para o Brasil, por isso mesmo contactou o Presidente da República e o Reitor da Universidade do Porto e decidiu solicitar ao Instituto de Medicina Legal uma peritagem que avaliasse as condições do coração, com o intuito de aferir o seu estado e se podia ser efetivamente transportado.
O Instituto de Medicina Legal constituiu uma equipa de cinco peritos, envolvendo um conjunto de investigadores da Universidade do Porto, nomeadamente da Faculdade de Medicina e do Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), das áreas da anatomia, medicina legal, da genética e da biologia forense, e realizaram um exame complexo que aconteceu numa das salas da Irmandade da Lapa e durou mais de cinco horas.
Ainda antes do relatório da perícia estar totalmente concluído, já tinha sido assegurado ao autarca que o coração poderia ser trasladado temporariamente para o Brasil, “mediante a exigência de um transporte em ambiente pressurizado”, revelou, acrescentando que será o próprio a acompanhar o transporte, assegurado pela Força Aérea Brasileira, realçando que todos os custos associados a esta operação ficarão a cargo do Brasil. “Irei assegurar que o vaso onde se encontra o coração seja devidamente selado.”
Questionado sobre o risco associado à viagem, Rui Moreira recorda que “não há viagens sem riscos” e sublinha que os acidentes aéreos “são raros”. “Não vamos levar o coração num contentor ou na mala do presidente da câmara. Estas coisas não são inéditas, há exposições que circulam para vários museus de avião, mas riscos existem sempre. Ainda assim, a prudência está garantida.”
Apesar desta ser uma decisão que cabe exclusivamente ao presidente da câmara, o assunto foi levado a discussão ao executivo municipal e a 18 de julho foi aprovada por unanimidade a transladação temporária do coração para o Brasil. “Esta é uma competência minha que entendo que deverei levar ao executivo, mas não temo nada. Tenho a certeza que a cidade entenderá que esta é a melhor forma de nos associarmos à independência do Brasil.”
Depositado no Porto há 187 anos, esta é a primeira vez que o órgão mais precioso de D. Pedro IV sai da cidade, ainda que por tempo determinado. A chegada ao Brasil está prevista para dia 22 de agosto e à sua espera no aeroporto o coração terá uma parada militar e será recebido com honras de Estado. O percurso prevê a sua passagem pelo Palácio do Planalto, em Brasília, onde terá lugar uma cerimónia, e pelo Palácio do Itamaraty, onde ficará em exposição contando com todas as medidas de segurança consideradas necessárias. O seu regresso ao Porto está marcado para 9 de setembro e nos dois dias seguintes o coração voltará a ser exposto no Salão Nobre da Irmandade da Lapa, para depois voltar a ser guardado a cinco chaves no mausoléu.