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Onde estavam vocês no dia 13 de dezembro de 2013? Eu estava no Porto, vivia na Rua de Santos Pousada. Levantei-me, escovei os dentes, tomei banho, estava frio, fiz o meu pequeno almoço e abri a internet: foi inesquecível (mesmo que, até agora, não pareça). Acordei com o álbum homónimo Beyoncé e o dia ficou marcado para sempre. Sem qualquer divulgação prévia e surpreendendo tudo e todos, percebi que aquele não era só um álbum, era um álbum visual em que cada canção tinha uma história, um videoclip, um cenário, uma coreografia. Deu certo, Beyoncé fez com que a internet e a “Beyhive” (alcunha para a devota legião de fãs da cantora na qual me incluo, com a vossa licença), não falassem noutra coisa.
Numa época em que a divulgação antecipada e as pré-vendas de um álbum estavam em tendência crescente nas plataformas digitais, a cantora fez o caminho inverso e deu-nos um susto. Imagino ela dizendo algo como: “Te peguei, fã safado! Pensavas que era só para o ano?”. Estou a rir-me enquanto escrevo isto, pois lembro-me perfeitamente de caminhar pelo Twitter e tropeçar num screenshot da canção “Mine” e questionar: “O que é isso? Não conheço essa imagem… CALMA! É UM VIDEOCLIP DELA? MAS JÁ?” Tudo isto para dizer que existe uma Beyoncé antes e depois de Beyoncé. Parece um paradoxo, mas é só a realidade.
O mundialmente aclamado Lemonade de 2016, álbum visual que se seguiu, revelou-se com o mesmo conceito, só que dividido em 12 capítulos com poemas escritos por Warsan Shire, poetisa britânica nascida em Nairobi no Quénia, e narrados pela cantora. Cada um aborda diferentes momentos de um relacionamento, da paixão ao perdão, e faz poderosas reflexões sobre o movimento de orgulho negro.
No lançamento, o filme foi transmitido pela HBO e ficou exclusivamente (e por muuuito tempo) no serviço de streaming do marido Jay-Z, o TIDAL, deixando a Beyhive, que usava o Spotify e outras plataformas musicais, refém e com algum receio sobre o sucesso de Lemonade. Eu próprio fiz uma conta no TIDAL e lá fiquei até hoje. Alguém aí vai censurar-me?
Isto para dizer que inovar, surpreender, contornar as expectativas é o que move Beyoncé. O sucesso já é dela, no streaming, em vídeo, seja onde for. Não é isso que a desperta. O que a alimenta é arriscar. É assim que surge o novo RENAISSANCE, o sétimo álbum, dividido em três atos, sendo que o primeiro foi oficialmente lançado no dia 29 de julho e é um compêndio de música de dança, é um cruzamento de referências de pistas de outros tempos com o tempo e o beat certos para 2022. Não fazemos a mínima ideia para onde vamos a seguir, mas com os ouvidos presos nesta primeira dose, temos a certeza que queremos ir.
E isto justifica-se em 16 pontos, tantos quantas as canções que compõem RENAISSANCE, que soa à melhor discoteca onde poderíamos ir hoje, já, esta madrugada. Canção a canção, esta é uma noite de festa e redenção e aqui explico como e porquê, entre o bar e as luzes:
[ouça o álbum “RENAISSANCE” de Beyoncé na íntegra através do Spotify:]
“I’M THAT GIRL”
É uma intro, um grito dito em sussurro, repetido várias vezes: “Please, motherfuckers ain’t stoppin’ me”. Trata-se de um sample de “Still Pimpin” (1995) de Tommy Wright III feat. Princess Loko and Mac T-Dog. Os primeiros segundos deixam os meus ouvidos e o meu corpo atentos para a verdadeira identidade de Beyoncé neste regresso. Ela revela:
“‘Cause I’m in that ho
Playing all these boys”
Consigo imaginar o RENAISSANCE como uma discoteca. A dona do estabelecimento é a própria Beyoncé. São 23h e é aquele momento em que acabou de abrir a pista de dança, vou para a fila do bar, ainda posso, ainda está tudo meio morno. Mas quase no final da canção tenho de acelerar o passo, vem aí a batida que me faz correr para a pista já com o copo numa mão e a outra a fazer movimentos circulares com o dedo indicador bem no ar, as ancas fazem uma rotunda leve de 360 graus e o meu corpo inconscientemente prepara-me para o que vem a seguir.
“COZY”
Arranca subitamente com um aviso: “This a reminder”. Se “COZY” tivesse uma persona, diria para a discoteca RENAISSANCE: “Olá! Lembra da primeira canção desse maravilhoso álbum? Pois bem, querida, eu sou a segunda e tudo o que foi dito no começo vou reforçar, caso não tenhas entendido. Prepara-te, direi isso de forma bem direta na tua cara.” Quando dou por mim, já estou a mexer os ombros com dois goles da minha bebida favorita consumados.
“ALIEN SUPERSTAR”
“I’m one of one, I’m number one, I’m the only one
Don’t even waste your time trying
To compete with me”
Beyoncé não tem medo e está mais segura do que nunca. Nessas três primeiras canções ela preparou-nos para a tarefa que realmente veio cumprir: deixar nossos corpos completamente entregues à boite mais famosa do mundo. E eu bem lá no meio, esperando só pelo refrão para sensualizar. Ah, já foi mais um gole no meu copo.
“CUFF IT”
É neste momento que percebo que estou tão feliz que nada me abala. Sabe aquele colega chato do trabalho? “Calma, que colega chato do trabalho?” Está a funcionar. Estou tão feliz de olhos fechados a sentir a batida que nada pode desiludir-me, já não consigo parar de dançar. Quando é que vai abrir uma danceteria dessas no Maranhão?
“ENERGY” (feat. BEAM)
É a continuação da anterior, é curtinha, tem menos de dois minutos, nem devia ter sido cortada, mas quem sou eu para dizer o que Beyoncé deve fazer? Mas atenção: ai do DJ que não me passar essa logo a seguir à “CUFF IT”. Tem a voz da Big Freedia em “Explode”, de 2014, umas batidas que me levam ao “Milkshake” de Kelis (2003), até o clássico “Ohh La La La” da Teena Marie, de 1988. Estou velho? Não. Apenas tenho as referências todas comigo. E “ENERGY” é tão boa que ainda dá tempo para protestar:
“Cause them Karens just turned into terrorists”
“Karen” é uma referência direta ao estereótipo da mulher branca de classe média (de extrema-direita) que, acostumada com privilégios, sente-se superior aos demais. Conhecemos alguém assim? Como chamamos a uma mulher assim em Portugal? No Brasil eu chamaria de Damares Alves (a ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Jair Bolsonaro).
“BREAK MY SOUL”
“I’m ’bout to explode, take off this load”
Estou entregue. Já bebi tudo, pousei o meu copo algures. Digo baixinho para mim mesmo: “Queen Bey quebrou a minha alma.” Estou preocupado com os meus moves, não os controlo, só penso: “Calma, é importante este momento, pois vou dormir e amanhã vou acordar renascido”. Nossa Senhora de Beyoncé voltou. Vou orar e dormir como um anjo.
“Bey is back and I’m sleepin’ real good at night”
“CHURCH GIRL”
Parece que acalmou. Vamos hidratar? Preciso de beber uma água, um fino, qualquer coisa. Mas não adianta, estou na fila e estou a dançar “CHURCH GIRL”. Pensei que fosse uma espécie de pausa… Beyoncé enganou-me, riu-se disso e eu gostei.
“PLASTIC OFF THE SOFA”
Finalmente, volto para a pista com outro copo da minha bebida favorita, pode ser água (eu deixo) e percebo que quero beijar na boca e tirar todo o plástico do sofá. Só quero abraçar alguém. Crush, onde estás? Se estiver do teu lado, abraça. É o momento certo para sentir o corpo da pessoa amada.
“I know you can’t help but to be yourself ’round me”
Se estiveres sozinho, abraça-te e sente o teu corpo. Tudo é permitido. Mas eu estou aqui, lembra de mim, ‘tá?
“VIRGO’S GROOVE”
Nascida a 4 de setembro, Beyoncé é Virgem, e segundo os astros, qual é a maior virtude de alguém deste signo, além da organização extrema e de ser bom ouvinte? Amor. É isso que Beyoncé quer na canção que fez para celebrar o seu mapa astral: amar e ser amada de volta. Sem medos:
“Come be alone with me tonight
All these emotions (All these emotions)
It’s washin’ over me tonight, ah”
Nasci a 7 de setembro. Sou virgem. Sei do que falo.
Para mim, esta canção é uma versão super evoluída de “Dance For You”, do quarto álbum de Beyoncé, intitulado simplesmente de 4. “Virgo’s Groove” é de longe uma das mais deliciosas canções desse disco. E estou tão feliz que começo a abrir mais um botão da camisa. Está calor e tem muita gente a dançar. Além disso, está calor, não sei se já tinha falado nesse detalhe.
“MOVE” (feat. Grace Jones & Teams)
Que sorte a minha. Vim no dia da inauguração e há visitas ilustres. Hoje a dona da festa convidou Grace Jones e Teams. Sinto tão forte a canção. É de longe uma das minhas favoritas. Poderia ser uma continuação de Black is King, poderia estar numa versão deluxe desse disco, projeto para um filme da Disney que, segundo Beyoncé, é uma celebração da amplitude e da beleza da ancestralidade negra. Aqui quase choro de emoção. Já viram Black is King? Vejam. Primeiro ouçam RENAISSANCE. Mas depois vejam. Aliás, podemos ver todos juntos quando fechar a pista.
“Want me to get turn up, make it trouble
‘Cause we coming straight out the jungle (Grace)
Rock a bitch, rock a bitch, rock up (Grace Jones)
Fumble like we ’bout to come up (Grace Jones)
Want me to get turn up, make it troublе
‘Cause we coming straight out the junglе”
“HEATED”
Continuo a dançar, a sentir o beat maravilhoso que “MOVE” deixou em mim. Só que é hora de ostentação, é hora de pagar pelo projeto e nisso Beyoncé é a rainha das “pubs” e dos agradecimentos. Lembro-me perfeitamente quando apareceu de surpresa na atuação dos Coldplay no Super Bowl e subtilmente colocou uma peça da Ivy Park (a sua própria marca de roupas, com um nome que homenageia a primeira filha, Blue Ivy) num instrumento musical de um dos elementos em palco que demorou mais para sair de cena. No dia seguinte, a internet enlouqueceu. O marketing estava feito.
“Got a lot of bands, got a lot of Hermès on me
Got a lot of bands, got a lot of Ivy on me
Got a lot of style, got a lot of Tiffany on me”
Vale a pena lembrar que Beyoncé e o marido, Jay-Z, são a imagem de marca da Tiffany & Co. E que ela já usou o colar de diamantes mais caro do mundo. No mínimo, era de fazer hashtag “parceria” na música. E era muito bem feito. #Parceria #Pub #Tiffany #EUzinha&Jay
“Boy, you musta mixed up our faces (Uncle, Uncle Jonny)
Oh, now you wanna have conversations (Uncle Jonny)
See, now you’re testin’ my patience
(Uncle Jonny made my dress)”
Mas há mais nesta canção. Beyoncé fez uma homenagem ao tio Johnny Knowles neste verso de “HEATED” e publicou recentemente que RENAISSANCE é dedicado ao falecido tio: “Ele foi o homem gay mais fabuloso que eu já conheci e ajudou a criar-me a mim e à minha irmã [a também cantora Solange]. Ele viveu a sua verdade, foi corajoso e destemido num período em que o país não era tão recetivo”, declarou Beyoncé.
A mãe, Tina Knowles, também fez uma homenagem, onde reforçou esse amor: “Eu ria constantemente com ele e confiava nele incondicionalmente! Quando ele morreu, um pedaço de mim foi com ele. Solange e Beyoncé adoravam-no. Ele ajudou-me a criá-las. E influenciou-as com o seu sentido de estilo e a sua singularidade!”
Claro que depois de saber isto, quero dançar e celebrar ainda mais. Onde estás tu na pista? Não me esqueci de ti, estou aqui a escrever este artigo, mas estou a ver-te a dançar ao longe.
(AVISO: Beyoncé decidiu fazer uma alteração na letra desta canção, que contém um verso com as palavras “spazzin” e “spaz”. O termo pode ser usado de forma pejorativa em relação a pessoas com paralisia cerebral espástica, Beyoncé foi criticada e voltou atrás)
“THIQUE”
Depois de ficar esquentada em “HEATED”, é hora de ficar bem grossa em “THIQUE”. É aquele momento em que “Queen Bey” vira uma grande rapper e solta:
“Ass getting thicker
Cash getting thicker
Cash getting larger
He thought he was loving me good
I told him ‘Go harder’”
Um revivalismo potente da vibe e dos flows dos anos 90. Estou completamente entregue ao som, não tem mais volta. Onde começou o álbum? Eu disse álbum? Oops! A realidade quase me pegou. Ainda estamos na discoteca RENAISSANCE. Onde começou a festa? Não me lembro. Já faço parte dela.
“ALL UP IN YOUR MIND”
Muito parecido com o esquema de “CUFF IT” e “ENERGY”, esta canção é uma continuação de “THIQUE” sem que demos por isso, está tudo ligado. É aquela hora na pista de dança em que já nem sei quem sou. Só vejo as luzes, estou tão solto e leve. Fecho os olhos e sinto:
“I try to get all up in your mind
Be careful what you ask for ’cause I just might comply”
“AMERICA HAS A PROBLEM”
E qual é o problema? Mentiu? Quase a finalizar a nossa viagem musical, Beyoncé relembra: um disco sem discurso não é um disco, é só música sem mensagem. Nesta canção somos mergulhados em décadas de dance music e hip-pop. Ao mesmo tempo, começo a ter consciência de que a festa está a acabar. Preciso de mais. Estou aqui no canto a escrever este artigo e preciso de mais. Não estou nada, estou a dançar. Confusos? Eu também.
“PURE/HONEY”
Muito mais do que “fan service”, é uma canção de uma Beyoncé expansiva, que explora lugares que jamais imaginaria e que não está nem um pouco preocupada com tabelas de vendas (bom, até pode estar, mas não mostra nada). Vejo voguing, imagino liberdade e pelo meio ainda mato a saudades de “Blow” do “Beyoncé” de 2013. As sonoridades estão muito presentes. Meu Deus, eu quero dar tudo, pega uma bebida aí para mim.
“Bad bitches to the left
Money bitches to the right
You can be both, meet in the middle, dance all night”
Será que a Beyoncé é de centro-esquerda e está a convidar colunistas de direita para dançar até o chão com ela? Para mim, está aqui um conceito.
“SUMMER RENAISSANCE”
Finalmente entrei na pista contigo, estás tão feliz… E esses primeiros acordes? São nostálgicos, não são? Donna Summer, estás aí? Não é a primeira vez que ela aparece numa canção de Beyoncé. Em “Naughty Girl”, de Dangerously In Love (2013), ela faz homenagem a “Love To Love You Baby” (1979) logo no início da canção. Estou banhado em suor e nostalgia.
Chegando ao fim, RENAISSANCE revela uma surpresa extra: tal como uma pista de dança, é um álbum que cresce, que convida a uma outra visita. E outra. E mais outra. E até os momentos que parecem banais, como aquela discoteca que acabou de abrir as portas, acabam por conseguir revelar detalhes que nos convencem a ficar. A quem me estiver a ler: se à primeira audição sentir que RENAISSANCE é a banda sonora de uma loja de roupa de um shopping muito concorrido, desligue. Volte mais tarde mas noutra hora. Esse provador vai transformar-se num desfile de alta costura em que o objetivo é dançar em cima das colunas instaladas na passerelle. E a partir daí, vai ser sempre a melhorar.
O meu telemóvel descarregou escrevendo este artigo na festa. Alguém pede um carro? Bebi de mais…