A esposa plácida, expressão facial entre o condescendente e o sofrido. O marido num nervoso ensaiado, perante a imprensa, a admitir a traição e a pedir desculpa. Os olhos do mundo naquela mulher, inabalável, de mão dada ao prevaricador, toda ela brandos costumes. O subtexto dos mirones: “havia de ser comigo que eu metia-lhe as malas à porta”. O arquétipo do corno manso. A imagem é tão recorrente que até serviu de ponto de partida para a premiada série “The Good Wife”. Corta para: Beyoncé, vestido amarelo flamejante, gargalhada quase infantil, rolando o seu taco de basebol e a destruir vidros enquanto maldiz as amantes do seu marido, o rapper e guru Jay Z. Mais à frente, sugere usar os dentes dessas galdérias como confetti. Esta imagem mental, no meio da dureza daqueles sussurros confidentes entre canções (uma espécie de spoken word que se torna na parte mais marcante do disco), tem muita graça. A melhor raiva é aquela que reserva uma prateleira para o sentido de humor. Beyoncé perdoa, mas não esquece. A placidez que se vá lixar, estilhaçada pelo tal taco de beisebol — mas, no final, o perdão continua lá. Ainda não é desta que os advogados que tratam de divórcios de estrelas milionárias podem lamber as beiças.

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“Lemonade”, de Beyoncé (Ed: Sony Music)

É difícil perceber se Lemonade é ou não um álbum histórico. Não é História quem quer, é História quem chega lá depois do teste do tempo num mundo onde as novidades duram cada vez menos segundos e onde nós enquanto público nos apegamos às coisas só até ao próximo scroll. O limão pode ser só mesmo o sabor do mês. A versão vídeo de Lemonade estreou na HBO poucos dias depois da morte de Prince e mostra o que Beyoncé tem em comum com a realeza de Mineápolis: a vontade de nunca se repetir. Nem os maiores preconceituosos com a pop podem acusar a ex-vocalista da Destiny’s Child de ser mais uma. Há uma genuína vontade de deixar legado até em detrimento de vendas, algo pouco comum na música atual. Seria mais confortável e certeiro voltar aos calções de ganga de “Crazy In Love” ou aos sucessos instantâneos para festas de despedida de solteira como “Single Ladies”. Mas para a Beyoncé de 2016 não interessa se vai passar na rádio (a maioria das canções não é particularmente orelhuda), não interessa quantos views vai ter (nenhum excerto de Lemonade está no YouTube), só interessa fazer algo pessoal e conceptual que meta toda a gente a falar. Pelo menos no imediato, essa missão foi um sucesso.

[o trailer de “Lemonade”, filme-disco que passou na HBO]

Mas o ato de meter toda a gente a falar da sua vida íntima não é habitual em Beyoncé. Ela não é a girl next door, ela é a Queen B. Dá cada vez menos entrevistas e só usa as redes sociais como desinspirada montra para o seu trabalho (quase num frete de picar o ponto), ao contrário do diário em tempo real feito por outras estrelas pop. Uma ida ao Instragram de Taylor Swift mostra-a enfiada num pijama em forma de unicórnio a comer pizza. Já no de Katie Perry é possível ver que comprou cartas de tarot pela net. Rihanna desvenda o véu sobre as suas saídas à noite. Mas Beyoncé fecha-se em copas no que está para lá da carreira. Daí que toda a sensação ao ver e ouvir um álbum tão visceral como Lemonade seja estranha: eu não sei o que é que a voz de “Formation” comeu ao pequeno-almoço, mas sei com algum grau de detalhe que o seu pai traía a mãe e que agora Jay Z anda a saltar a sebe. Partilhar a intimidade? Só como expressão artística e não como dependência do smartphone. É capaz de haver aqui uma lição de moral à espera de ser extrapolada.

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Fazer das tripas canção

Mas terá Jay Z mesmo traído Beyoncé? O mundo divide-se entre quem aqui vê uma impecável campanha de marketing e quem acredita que a cantora fez das tripas canção. O desconforto que me causou ver o especial de uma hora da HBO deixa-me mais partidária da segunda hipótese. Aquela sensação de voyeurismo, só ultrapassada pela sensação de que Beyoncé os tem no sítio (uma das frases de uma letra é mesmo “suck my balls, I had enough”). Mas aqui o mundo volta a dividir-se: perdoar um hipoteticamente traidor Jay Z faz de Beyoncé mais forte ou mais frágil? É magnânimo ou submisso? O empowerment feminino que aguçou a carreira da artista tem agora as suas arestas mais afiadas ou afinal estão rombas e enferrujadas? Seja qual for a resposta (dificilmente inequívoca), esta é uma obra calculada até ao mais ínfimo detalhe e não o equivalente sonoro a ver tudo verde e queimar as roupas do marido no quintal com recurso a gasolina. Aliás, Jay Z junta-se de livre e espontânea vontade aos últimos 15 minutos do especial de uma hora (não sei se era suposto este artigo ter um spoiler alert ao facto dele aparecer. Conta como um personagem a regressar dos mortos, a nova moda das séries?). Depois de toda a dor, de todas as ameaças, de todos os dedos do meio levantados, de toda a angústia e ira, de todos os silêncios desconfortáveis (até isso o disco tem), Beyoncé fala sobre não desistir e sobre “encontrar o antídoto na tua própria cozinha”. “O meu torturador tornou-se no meu remédio”, declara ao rasgar a página e começar de novo, no final feliz possível – sem príncipe encantando, mas com uma Rainha de feridas lambidas. Seguem-se homevideos do casamento, da gravidez, da filha. Querem embebedar-se em imagens privadas de figuras públicas? Força, agora que já sabem que tudo é sempre mais complexo do que parece e que o “felizes para sempre” não existe.

O tema da traição é transversal a todo o Lemonade, mas não se esgota na relação com Jay Z. Não há expressão portuguesa tão certeira como a inglesa: daddy issues. A relação com o pai é essencial para perceber todas estas confidências. Mas é também fundamental ter em conta que Beyoncé não é só uma mulher: é uma mulher negra. E é a mulher negra a grande protagonista do especial da HBO, com Nova Orleães (panela de pressão da africanidade que também é berço dos Estados Unidos) como cenário preferencial. São elas quem aparece em todos os momentos, representado todas as faixas etárias e variados estilos de vida. E ecoa a voz samplada de Malcolm X: “The most disrespected person in America is the black woman. The most unprotected person in America is the black woman. The most neglected person in America is the black woman. (A pessoa mais desrespeitada nos Estados Unidos é a mulher negra. A pessoa mais desprotegida nos Estados Unidos é a mulher negra. A pessoa mais negligenciada nos Estados Unidos é a mulher negra)”. Não é um só homem falível que as trai: é todo o sistema. E talvez isto explique o nome do álbum: reza o mito urbano que algumas negras usam sumo de limão para aclarar o tom de pele.

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O estigma da mulher traída não se apaga. Veja-se Hillary Clinton, que quase 20 anos depois do escândalo Lewinsky (e com muitos cargos relevantes desde então) continua a ser recordada como “aquela que foi traída porque o marido quis papar uma estagiária”. Donald Trump já usou as bocas de mau gosto como trunfo e certamente que o fará muito mais agora que é oficialmente o nomeado republicano. Beyoncé atirou-se para esta fogueira: mesmo que quisesse agora dizer que Lemonade era só um exercício de estilo narrativo ficcionado, da fama de traída já não se salva.

O casal não tem feito qualquer tipo de declaração, deixando Lemonade falar por si. Os últimos rumores garantem que Jay Z dará a sua versão dos acontecimentos num álbum em nome próprio. A melhor piada sobre esse tema veio do apresentador de talk shows Seth Meyers: “Talvez o casamento deles estivesse a correr melhor se eles não comunicassem através de álbuns”. Sim, talvez. Mas eu, egoisticamente, prefiro discalhaços intimistas a ler cusquices na revista “Holla” quando vou ao cabeleireiro.

Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa