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Entrevista com Luis Pereira, fundador da Showpress e Coordenador dos bastidores da ModaLisboa e do Portugal Fashion. A entrevista decorreu no local onde está a ser contruida o novo espaço para a ModaLisboa, no Hub Criativo do Beato. 24 de Fevereiro de 2022 Hub CrIativo do Beato, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Luís Pereira tem 55 anos, nasceu em Angola, mas viajou muito novo para Portugal. Começou a sua carreira na moda como modelo.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Luís Pereira tem 55 anos, nasceu em Angola, mas viajou muito novo para Portugal. Começou a sua carreira na moda como modelo.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

"Eu varria, montava, carregava, fui crescendo e as pessoas começaram a ter respeito por mim". Luís Pereira, o homem dos bastidores

Começou como modelo, tem uma agência de comunicação, e há anos que coordena os bastidores dos desfiles. A ModaLisboa arranca esta quinta-feira e lá estará Luís Pereira, atrás do pano.

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Luís Pereira não é uma figura pública e, como se verá na entrevista, não quer ser. Mas quem já percorreu os corredores da moda em Portugal já, certamente, se cruzou com ele ou ouviu alguém remeter alguma dúvida ou questão “para o Luís”. Tem a responsabilidades de coordenar os bastidores das semanas de moda nacionais e faz casting de modelos. Também tem a sua própria agência de comunicação. Mas foi a sua postura na vida e no trabalho que fez com que se tornasse um nome incontornável no panorama nacional.

Quando já se aqueciam motores para mais uma edição da ModaLisboa, que arranca esta quinta-feira com as propostas dos designers nacionais para o outono/inverno 2022, encontrámo-lo no Hub Creativo do Beato, onde o evento de moda terá lugar esta estação, para uma entrevista de vida que revê mais de três décadas.

Inspirámo-nos num espaço em construção para perceber como a sua carreira e o percurso da moda nacional se construiram lado a lado, como se os astros assim os tivessem alinhado ao longo de mais de três décadas, cruzando-se primeiro com a moda no Porto e acabando por abraçar Lisboa como a sua cidade. Luís Pereira tem 55 anos, nasceu em Angola e a guerra no seu país trouxe-o para Portugal ainda pequeno — nem de propósito, o conflito na Ucrânia estourou poucas horas antes desta conversa e foi por aí que começámos, cientes de que a moda é uma área de criatividade que absorve tudo o que a rodeia e que está em constante mudança. “O conflito não devia existir. Lógico que a seguir vai influenciar a moda, uns vão para a tendência da guerra e outros para o lado contrário. Vai ter sempre influência.”

Começar pelo princípio

Estamos a fazer esta entrevista depois de ter começado uma guerra de madrugada e numa altura em que está empenhado a preparar a próxima edição da ModaLisboa. Acha que, nestas alturas, devemos só focar-nos no conflito ou o “show must go on”? 
Eu acho que devem continuar. O mundo tem de continuar. A pandemia já veio fazer estragos e agora numa fase de crescimento, esta guerra não veio numa boa altura. Saímos de uma guerra e estamos a entrar noutra. O mundo da moda tem de continuar porque é um negócio muito grande. Mas vamos sentir isso, a seguir. No valor das matérias primas, dos transportes… Agora as feiras estão também a decorrer, mas quando forem as entregas [de encomendas] não se sabe se a matéria-prima vai existir e quais os seus valores. Na altura da pandemia sentiu-se muito, não havia materiais, não havia coisas para entrega e tudo demora muito mais tempo. A logística que existia foi interrompida, agora no regresso há muitas empresas que não existem, voltam de outra forma, têm outros preços.

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Se não estivesse hoje aqui o que estaria a fazer?
Gostava muito de ter sido médico, mas depois era tanto tempo a estudar, e comecei cedo a querer conhecer o mundo e a querer sair de casa dos meus pais e viver na moda. Nasci em Angola e vim viver para São João da Madeira, para casa dos meus avós, com 10 anos. Os meus pais foram para Ovar e eu aos 17 anos fui viver para o Porto. Fiquei lá até aos 23, depois vim para a tropa para Lisboa e voltei para o Porto. Depois vim trabalhar à noite para Lisboa e fiquei por cá, mas continuava à mesma na moda. Trabalhava com designers em lojas de design no Porto. Continuei no Porto, já era manequim ao mesmo tempo.

A moda apareceu na sua vida na década de 1980. Como é que isso aconteceu?
Toda a gente me dizia “com a tua altura e com a tua cara podias ser manequim”. Era muito assim, não havia agências, havia os contactos de casa de cada um. Era assim que se contactava as pessoas. Comecei a ser produtor e coordenador, porque me convidavam para manequim e também organizava a parte de bastidores, com o José Manuel Trindade, que também era um ex manequim. A partir daí foi de boca em boca: “chama o Luís”. Eu era assistente de coreógrafos [de moda] que eram concorrentes uns dos outros. Quando estou a trabalhar com um, quero que aquele evento ou trabalho para que ele me contratou funcione bem. Antigamente, cada coreógrafo contratava a sua equipa

Quem são os coreógrafos da moda?
Antigamente os desfiles eram todos coreografados e em grupos. Avançava-se com a música, tinha de se parar com um determinado pé, num determinado degrau, avançam todos ao mesmo tempo… hoje as manequins só têm de andar para a frente. Havia muitas horas de ensaios e cursos de manequins. Eu decorava as coreografias todas e ajudava as modelos. As coisas estão a mudar. Estou a sentir no resto do mundo que, além dos cenários gigantescos e uma grande quantidade de manequins, a parte encenada vai regressar e juntar-se à história. E para isso a nova geração de modelos tem de aprender muito.

Luis Pereira a desfilar quando era modelo, no início da sua carreira.

Um país com duas semanas de moda

Explique-nos o sítio onde estamos.
A Factory Lisbon. É o próximo cenário da ModaLisboa.

Esta edição já vai ser um regresso à normalidade?
Não vai ser um regresso totalmente ao normal, mas se calhar as coisas também não vão ficar como eram.

O que é que esta edição vai ter de diferente?
São as coisas que vão acontecer todos os dias, não vão ser só desfiles. É importante ver o público, na última edição já se viu isso. Só o facto de ter aquela luz natural e vista para o rio já é fantástico. A estrutura da sala de desfiles é completamente diferente do que nós temos feito, são salas seguidas e não se vê de umas para as outras. A ModaLisboa já tentou fazer aqui coisas no passado, mas estava em obras e voltamos agora para o lançamento do Factory Lisbon. Os sítios onde a ModaLisboa acontece renascem porque chama lá pessoas que não os conhecem. E também mostra a cidade além da moda à imprensa internacional. Há programas com o Turismo de Lisboa.

De onde vem a imprensa internacional?
Espanha, França, Brasil. Às vezes é conforme o mercado de que Portugal quer ir à procura. O Brasil já se percebeu que é difícil em termos de negócio, porque fecha a porta a tudo o que venha de fora, com muitos impostos.

Quando começou a trabalhar na ModaLisboa?
Entrei na segunda edição da ModaLisboa [o início foi em 1991]. A ModaLisboa parou [em 1993], quando não se entenderam por causa da vinda do [John] Galliano. Quando se recomeçou [em 1996] já foi com outro formato, com tecnologia e foi na Cordoaria. Nessa altura eu comecei a organizar a parte de bastidores. Era tudo um começo da moda em Portugal. Não havia agências de manequins, ateliers… começou tudo a partir daí. Na altura fazia parte da equipa de bastidores, trabalhava muito com o Mário Matos [Ribeiro], o Paulo Gomes tratava da parte criativa. Depois a ModaLisboa saiu de Lisboa e foi para Cascais. A organização mudou, a Eduarda [Abbondanza] continuou. E convidaram-me para fazer a direção de casting e hoje faço a organização de bastidores, a gestão da parte de desfiles e a direção de casting. Ao longo dos anos a ModaLisboa começou a crescer, os patrocinadores, os desfiles, os dias… e Portugal começou a estar comparado com as semanas de moda lá de fora. Os números são muito diferentes, mas acho que a nova geração já está a trabalhar nisso: tem de se vender, isto é um negócio.

O que é que havia antes da ModaLisboa aparecer?
Havia desfiles, a Filmoda era uma feira e faziam-se os desfiles nos stands. Alguns designers gostavam de moda e faziam desfiles.

Quando é que o Portugal Fashion entrou na sua vida?
Quando houve um incêndio no Coliseu do Porto, em setembro de 1996. Foi no primeiro dia [dessa edição] e os outros já não se realizaram, foram adiados um mês e foi montado um cenário no Palácio de Cristal. Quem tratava de tudo era a Dalila Martins, que foi uma das primeiras manequins a existir nos anos 80, ela organizava alguns desfiles, era coreógrafa. Chamou-me para eu trabalhar com ela e sentiu-se muito à vontade comigo porque eu a ajudava com tudo na organização. Mas eu disse-lhe que para ser um bom assistente tinha de comandar a equipa de bastidores e comecei a formar uma equipa minha. O Portugal Fashion quando começou não tinha nada a ver com o que é hoje em dia.

Estando por dentro das duas semanas de moda nacionais, explique-nos em que é que elas são diferentes uma da outra.
Há uma diferença muito grande logo a começar, a organização da ModaLisboa é, desde o início, feita por pessoas da área da moda. É uma associação que trabalha o ano todo para ajudar os designers a crescer e na sua comunicação. O Portugal Fashion nasceu de outra forma, com os industriais a quererem ser conhecidos. No início gastavam milhões a trazer tops [models] para chamar público. Depois começaram a apoiar idas lá fora [internacionalização de designers]. A separação no início era: o Portugal Fashion apoiava a indústria, que está toda no Porto, e a ModaLisboa apoiava os designers. Só que a indústria não chama imprensa e não tem o glamour e o nome que os designers têm.

Justifica-se haver duas semanas de moda?
Justifica-se se as coisas forem separadas. Designers de autor e indústria. A indústria pode não ter glamour, mas pode-se fazer por isso, com quem vai lá desfilar e quem se vai chamar, ajudar as marcas a evoluírem a focarem-se no que vão apresentar.

Houve muitos criadores que saíram de um lado para ir para o outro lado.
Porque o Portugal Fashion apoiava a internacionalização em quando alguns designers quiseram isso, apresentavam primeiro lá fora e depois cá, na ModaLisboa. O Portugal Fashion muda de quatro em quatro anos de presidente da Associação Nacional de Jovens Empresários [ANJE], só isso muda tudo. Houve um presidente que exigiu que quem fosse apoiado a nível internacional não podia apresentar na ModaLisboa, tinha de apresentar no Portugal Fashion, porque havia quem apresentasse nos dois sítios. O Governo também tentou juntar os dois para trabalharem em conjunto.

Porquê o Governo?
Por causa dos apoios. Quem está à frente do Portugal Fashion está sempre a mudar. Uns sabem, outros não, como funciona a moda em Portugal, o que é moda de autor, como vivem os designers portugueses, como é o negócio deles. Mas o Portugal Fashion conseguiu ter sítios diferentes, havia mais dinheiro para trazer manequins internacionais, mostrar vários cenários, acho que a moda deve ser assim e não estar tudo no mesmo sítio. Para os designers é ótimo. Nós [na ModaLisboa] tentamos fazer o melhor com o dinheiro que há.

  • Entrevista com Luis Pereira, fundador da Showpress e Coordenador dos bastidores da ModaLisboa e do Portugal Fashion. A entrevista decorreu no local onde está a ser contruida o novo espaço para a ModaLisboa, no Hub Criativo do Beato. 24 de Fevereiro de 2022 Hub CrIativo do Beato, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
    © TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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  • Entrevista com Luis Pereira, fundador da Showpress e Coordenador dos bastidores da ModaLisboa e do Portugal Fashion. A entrevista decorreu no local onde está a ser contruida o novo espaço para a ModaLisboa, no Hub Criativo do Beato. 24 de Fevereiro de 2022 Hub CrIativo do Beato, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Um olhar sobre a moda em Portugal

As plataformas como a ModaLisboa e o Portugal Fashion são a principal plataforma para os designers em Portugal?
São o principal. Eu vi o começo destas associações que apoiam os designers, se não existissem seria muito difícil. O nível de negócio em Portugal não dá. Mesmo tendo uns preços muito diferentes do resto da Europa, em termos de cachets e de orçamentos, é difícil conseguirem juntar tudo e ter um valor de seis em seis meses. Não vendem para isso.

Como é que isso se pode mudar?
Começa pela venda de produto. Portugal é muito pequenino e os designers cada vez mais têm de ter uma ajuda para se suportarem, mas também têm de se organizar cá. Não interessa ir a feiras, ter encomendas e depois não as entregar, a produção tem de acompanhar. É uma máquina gigante. Os designers portugueses já venderam muito em Portugal. A nova geração não conhece, mas houve muitas lojas de norte a sul do país que vendia moda portuguesa. Só que foram fechando e começaram a vir as marcas internacionais, que conseguem ter valores mais baixos pela quantidade que mandam fazer.

O trabalho dos portugueses é bem recebido nas feiras internacionais?
É muito bem recebido. Continuam a ver que o têxtil e o calçado tem qualidade em Portugal. Começaram foi a aparecer países com valores de mão de obra mais baixos. Lógico que Portugal tem qualidade, mas é para um nicho.

Como tem evoluído a relação entre os portugueses e a moda?
Antigamente as pessoas queriam vestir português. As pessoas que iam assistir à ModaLisboa, nos anos 90 quando começou, iam vestidas de designers portugueses. Na plateia da Ana Salazar num desfile da ModaLisboa via-se logo que eram os clientes dela. Antigamente as pessoas de várias áreas importantes em Portugal iam à ModaLisboa apoiar a moda nacional. Por isso é que havia muitos pontos de venda. Depois começou a reduzir e a aparecer uma nova geração que gostava, seguia e queria ver os desfiles, mas já não tinha dinheiro. O número de pessoas nos desfiles começou a aumentar e as pessoas que iam no início deixaram de ir porque achavam que se tinha tornado um circo. Antigamente não havia redes sociais, as pessoas que iam ver os desfiles era para comprar. O país é tão pequeno que os designers não podem estar limitados a Portugal. Mas precisam saber escolher onde ir.

Onde é que a moda portuguesa funciona bem fora de Portugal?
Em Itália funciona, vão lá compradores chineses e japoneses. Por exemplo, quando Carlos Gil tinha desfiles em Milão, a seguir estava num showroom de vendas onde tinha uma agente com clientes que vendia para a China e entregava.

Como se entra na dinâmica de uma feira?
Não é fácil, uma feira é muito cara. Não se trata só do espaço e do aluguer, é toda a máquina: os hotéis, as viagens, a alimentação. Se não tiverem muitas vendas, não compensa. Uma feira dura dois, três ou quatro dias e há vários tipos de feiras. As marcas para serem conhecidas convém serem vistas e é num stand que mostram a sua imagem. Nas feiras também há agentes que querem ficar a comunicar as marcas. Com a pandemia algumas pararam.

Do universo todo da moda, em que é que os portugueses são realmente bons?
No têxtil e no calçado. Somos ótimos. E estamos a evoluir. As roupas trocam-se com mais facilidade, mas no calçado, as pessoas andam em cima dele e, quando não é bom, as pessoas não voltam ao mesmo.

Os segredos dos bastidores

Como é que aprendeu a gerir bastidores?
Aprendi muito a observar e a trabalhar em mercados diferentes e a perceber como é que eles trabalhavam. Viajava muito com a Isabel Branco quando íamos fazer o Portugal Fashion, em Paris e em Milão. Dizíamos que tínhamos de ter sempre um dia “de compras”, que na realidade era para vermos o movimento das cidades, as pessoas a consumirem, como se vestem. Aí é que se aprende. É muito importante viajar e ver as pessoas. Também tem muito a ver com a minha maneira de ser, quando há uma falha, na próxima edição ela não se repete. Eu vou estar em cima. Fui arranjando pessoas para me tirar trabalho de cima. Quando um designer chega com a coleção há um chefe de camarim que lhe vai dar assistência até ao final do desfile. Antigamente não havia isto.

Vai aos sítios e fica a observar?
Sempre observei muito. Uma produção em Paris é muito diferente de uma produção no Brasil ou em Itália, quanto à forma de se organizarem. Paris sempre foi o top, eles têm as pessoas certas, fazem tudo com dias de antecedência. Nós aqui fazemos os fittings, o casting, tudo com quatro horas de antecedência e estamos habituados a fazer tudo. Eu estou habituado a abrir caixas, mas no Brasil dizem-nos que há pessoas para fazer isso, porque lá há muita mão de obra. Quando vamos lá é para dar assistência aos designers portugueses e é isso que temos de fazer. Ajudar, dar opiniões no casting, na ordem do desfile, nas escolhas, nas provas. No Brasil cada um tem de investir na sua apresentação e comunicação e tem de pagar tudo.

E em Itália? Será mais parecido com Portugal?
É. Também tem as equipas, são parecidos com os franceses. Mas a “máquina” em Itália está muito focada em vender e não só na imagem. O italiano vive  muito a moda, a arte, o consumo. Gosta! Eles querem mostrar. Em Paris são muito mais fashion. Às vezes gostava de ver a imprensa e o público a entrar. Está tudo muito bem dividido, a imprensa, os compradores… Aqui, lógico que há compradores e clientes, mas é tão pequeno. É muito mais o fluir das pessoas que vão ver, o futuro cliente que segue o designer porque gosta ou porque tem pessoas conhecidas a desfilar. Há interesses muito pessoais em vez do negócio.

O desfile continua a ser o momento mais importante de uma estação para o designer?
É aí que se lança o que é uma tendência, uma história. Para haver conteúdos, hoje em dia, os designers aproveitam o casting, as provas, tem de haver conteúdos até chegar à parte final. Quando os desfiles passaram [a formato digital, durante a pandemia], é completamente diferente de ter público. Para se fazer um desfile tem de se pensar nas pessoas que estão a ver num telemóvel ou num iPad, ou num computador. Não é [tão importante] o glamour da sala, as coisas têm de ser mais focadas. Mas acho que não tem nada a ver com o desfile presencial.

Como gere este universo de criativos e de egos?
Os designers estão todos um nervo porque vão apresentar uma coisa nova. Querem que as coisas corram bem. Eu consigo apoiá-los, ouço-os e tento que tudo corra bem. Nós todos trabalhamos para eles e não para nós. É como com os manequins. Eu faço uma seleção de manequins para vários designers.

Quando modelos gere numa edição normal da ModaLisboa?
80.

E pessoas nos bastidores?
Para aí umas 100. Entre 30 a 40 aderecistas [pessoas que ajudam as modelos a vestir], depende do dia, mais 20 a 30 maquilhadores, cabeleireiros e mais as equipas dos designers.

Nos bastidores. "Se os bastidores não forem organizados, para quem está a ver à frente não vai funcionar", Luís Pereira

Descodificando o trabalho de quem escolhe modelos

O que é que um diretor de casting faz?
Eu reúno os vários estilos de manequins para os vários estilos de designers. Depois faço uma escala com o calendário de desfiles, porque as manequins têm de ter tempo [para maquilhagem e cabelos]. E tenho de gerir um orçamento, porque não é só escolher. Quem me dera poder trazer [modelos] internacionais e ter sempre caras diferentes. A moda está sempre a mudar e os próprios designers têm temas diferentes. Eles vão atrás do mundo. E a escolha dos manequins também tem de ir um bocado por aí. Eu não trabalho sozinho, trabalho com um grupo de agências.

Quais os critérios de escolha?
Como a moda começou a mudar, os manequins não têm todos 1’80 metros e as mesmas medidas. Temos muitos manequins homens em Portugal. Mais do que mulheres, porque as mulheres não aparecem com as medidas certas. Porque eu escolho [manequins] pelas medidas, pela beleza, pelo andar e pelo estilo. Tem muito a ver com a fisionomia, as medidas, o desfilar, porque estou a fazer um casting para desfile e não para fotografia. Quando estou a ver uma imagem não sei como é a manequim, mas depois de conhecer, o feitio também é tido em conta. Se a pessoa não tiver bom feitio, até pode ter beleza, mas o feitio fala sempre.

Porque é que as medidas são tão importantes?
Para as manequins caberem na roupa dos designers.

As medidas estão relacionadas com um ideal de beleza?
Cada uma tem a sua forma e o seu corpo, não são todas iguais. Para o comum das pessoas uma mulher com um bom corpo tem peito, cintura, anca. Não são as manequins. Elas não têm peito, porque marca muito a roupa. São poucos os designers que preferem manequins com peito, só se tiverem um estilo festivo e decotes, o peito aí é importante. A anca tem de ter, no máximo, 89/90 [cm], porque depois passa do tamanho de roupa que os designers fazem, que normalmente é um 34/36. A moda tem vindo a mudar e, como está agora, com novas medidas, já tenho nos desfiles pessoas normais. As marcas estão a procurar o seu público alvo, eu acho que, muitas vezes, têm vários. Num desfile vê-se isso, com o tipo de manequins. Em Portugal temos várias pessoas de pele negra a desfilar e agora já se veem muitos asiáticos nas semanas de moda. [As marcas] vão atrás do seu público.

A diversidade é uma preocupação que tem neste trabalho?
Sim. Tento sempre ter diversidade de raças, cada vez mais, não só estilos e tamanho de corpo. Estou sempre a tentar ter asiáticos, indianos. Estava a tentar que este ano algum designer quisesse o casting todo com pessoas de pele negra. Nós temos muitos, e giros! Vão lá para fora e trabalham lindamente. Há uns tempos perguntaram-me se os portugueses já aceitam mais a raça negra. Eu disse que já e que não deviam ter esse problema. Deviam era pensar na coleção, em que pele fica melhor. Também há as brasileiras morenas, há muita gente que não gosta, prefere peles brancas e loiras. Às vezes tem muito a ver com a coleção e não com a pele da pessoa.

Entrevista com Luis Pereira, fundador da Showpress e Coordenador dos bastidores da ModaLisboa e do Portugal Fashion. A entrevista decorreu no local onde está a ser contruida o novo espaço para a ModaLisboa, no Hub Criativo do Beato. 24 de Fevereiro de 2022 Hub CrIativo do Beato, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Luís Pereira no Hub Criativo do Beato, em Lisboa.

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Como é que funciona com as modelos internacionais?
Para trazer modelos internacionais as agências portuguesas investem, falam com as agências mães e depois propõem-me. Às vezes, o problema [das modelos asiáticas] é o visto, porque cobre as semanas da moda, mas não chega para vir até Portugal. Elas até querem vir, porque quando vêm cá a primeira vez querem voltar. As manequins internacionais adoram vir a Portugal, adoram a comida, a forma de tratar. Para elas [lá fora] é uma luta constante para ir aos castings que são em sítios diferentes, aqui é tudo no mesmo sítio e muito mais fácil.

Há modelos conhecidas com quem tenha trabalhado?
Trabalhei com a Claudia Schiffer no Portugal Fashion. Com a Carla Bruni. Com a Eva [Herzigova], mais tarde. Quando ela veio a Portugal os designers não tinham sapatos para ela, já calçava 41/42, houve desfiles em que foi descalça ou com sapatos de homem. A Linda Evangelista, quando já não estava assim tão bem, a roupa dos designers portugueses não lhe servia. Eu sempre adorei a Linda Evangelista, foi aquela musa que mudava a cada fotografia. Não veio para os desfiles, foi para uma gala num programa de televisão na Sic. Algumas pessoas não a reconheceram. As outras estavam todas ótimas, em fim de carreira, mas ótimas.

Eram divas ou super profissionais?
Foram tratadas como divas, com conferência de imprensa, motorista, um carro para cada. Mas elas nos bastidores perguntavam “porque é que eu estou aqui sozinha e não no meio das outras?”. As agências antigamente viam Portugal como terceiro mundo e punham logo no contrato uma série de coisas. Elas quando chegavam viam que Portugal era como outro país qualquer.

Comunicar a moda como profissão

Como surgiu a Showpress?
Eu trabalhava com o Paulo Gomes, era assistente, no “86-60-86”, o programa de televisão apresentado pela Sofia Aparício. Foi um programa que puxou muito pela moda portuguesa, as pessoas adoravam. Eu fazia shopping todas as semanas nas lojas, só havia gabinetes de imprensa para eventos, não havia showroom de marcas e com produtos. Eu conhecia representantes de marcas de nome no Porto, falei com eles e abri um showroom cá [em Lisboa]. Não fazia comunicação, tinha só produto e entrei em contacto com as stylists das revistas. Foi assim que começou a Showpress há 18 anos. A agência Best do Porto tinha filial cá em Lisboa, na Avenida da Liberdade, num andar e só utilizavam metade. Então fiquei com a parte de trás do andar deles. Fiz obras, chamei a Mariama [Barbosa] e começamos a trabalhar. De seis em seis meses tínhamos mostruários, as stylists levavam, na altura havia muitas revistas.

Atualmente também tem muitos criadores nacionais.
Os portugueses são uma forma de apoio à moda portuguesa. Como trabalhava na ModaLisboa e no Portugal Fashion, comecei a ajudá-los e a ter a roupa deles disponível para a imprensa fotografar.

Porquê o nome Showpress?
Antigamente as agências tinham os nomes das pessoas, mas quando comecei disse “eu trabalho as marcas” e é isso que interessa, não é a minha vida pessoal. Não quero que as pessoas saibam quem é o Luís Pereira, mas sim quem é a Showpress, que marcas trabalha e que trabalha bem as marcas. As pessoas que trabalham na Showpress estão lá há anos e gostam do que fazem, mas quando querem mudar de vida eu acho muito bem. Toda a gente que saiu continua a lá ir e continuo a dar-me lindamente com todos. Acho bem que queiram mudar e conhecer outras coisas.

O que tem mudado na comunicação de moda?
As marcas de moda mudaram tudo. Mudaram a sua comunicação. Eu acho que a comunicação hoje é global e depois cada marca adapta-se ao seu país. As redes sociais contribuíram para a mudança. Já não se investe em imprensa e investe-se muito mais em redes sociais e no seu público alvo. Acho que é em todo o mundo, mas em Portugal sente-se muito.

Esse investimento tem lógica?
Hoje em dia é tudo mais imediato. Antigamente, na imprensa trabalhávamos a 30 ou a 60 dias. Agora é tudo hora a hora. As marcas começaram a encontrar o seu novo cliente. Tem de se estar sempre em evolução, porque há muitas marcas. E dizem que têm muitos clientes, mas esses vão desaparecer e há que arranjar novos. As pessoas cansam-se muito rápido e querem coisas novas muito rápido. As marcas tiveram de se modificar e organizar para encontrar o seu público e tentar vender. As redes sociais vendem muito. Antigamente faziam-se desfiles de seis em seis meses. Agora tem que se lançar coisas todas as semanas. Isto vai ter de mudar, porque não é suportável. Ninguém trabalha sozinho. A agência de comunicação sem as marcas e sem a imprensa não é nada.

  • Entrevista com Luis Pereira, fundador da Showpress e Coordenador dos bastidores da ModaLisboa e do Portugal Fashion. A entrevista decorreu no local onde está a ser contruida o novo espaço para a ModaLisboa, no Hub Criativo do Beato. 24 de Fevereiro de 2022 Hub CrIativo do Beato, Lisboa TOMÁS SILVA/OBSERVADOR
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Que regras e que valores é que regem a sua vida e o seu trabalho?
Estou sempre focado em trabalhar bem, em equipa e em que o resultado seja positivo. Adoro trabalhar em sítios diferentes, que haja coisas novas a acontecer. Gosto de pensar como nos vamos adaptar. Não gosto de coisas muito repetidas.

Ainda não está cansado deste trabalho?
Não. Eu adoro trabalhar com pessoas novas. Perguntam-me se não tenho medo da nova geração. Não, faz parte. Cada pessoa trabalha de uma maneira diferente. Eu trabalho para o futuro. O que passou eu apago com muita facilidade e sempre foi assim.

Qual a chave do seu sucesso?
O profissionalismo, tentar sempre não haver falhas e apoiar sempre quem estava acima de mim e me contratava. Eu nunca quis estar no lugar deles, quis estar atrás, nos bastidores. Se os bastidores não forem organizados, para quem está a ver à frente não vai funcionar. Tem de haver bases. Eu varria, montava, carregava, fui crescendo aos poucos e as pessoas que trabalhavam comigo viam que não tenho problemas de fazer nada e começaram a ter respeito por mim.

A pandemia e o futuro

O que é que a pandemia mudou na sua vida?
Eu tenho as vacinas todas e o que eu quero é andar para a frente, não é ficar parado. Em termos de negócio mudou. Saímos da Avenida da Liberdade. Estivemos sempre a trabalhar, porque houve coisas que não pararam, como as televisões. Tive de mudar de espaço, porque depois de pararmos, as marcas começaram a desistir da comunicação. Tudo ficou assustado. Os designers foram os primeiros a parar com a agência. Muita gente só pensou em si e não pensou que estamos todos no mesmo barco e se calhar é melhor reduzirmos todos e não virar costas aos parceiros de uma vida inteira. Todos tivemos os mesmos problemas, não ter clientes, não entrar dinheiro, não vender, não trabalhar…

Arranjou uma solução?
Sim, porque houve quem não nos deixasse. Compreenderam o meu problema e eu compreendi o problema deles. Nós não parámos para eles e eles não nos viraram costas. A minha equipa ficou do meu lado. Eu trato toda a gente de forma igual, sempre foi assim e é o que ensino à nova geração.

O novo espaço foi também um sinal de mudança?
Eu já queria mudar de conceito e arranjámos um espaço novo, é tudo amplo e no rés do chão. A mudança é importante, mas também fomos um bocado obrigados. Isto é como um aviso às pessoas, é preciso mudar de vez em quando. É lógico que muita gente morreu e passou  mal, mas isto também nos fez pensar que de um momento para o outro tudo pára e que sozinhos não somos nada.

Uma pessoa tão curiosa como o Luís, já ambicionou ir trabalhar para fora?
Já. No início queria ir e voltar, não ir para ficar. Quando comecei como produtor queria ir para Barcelona viver. Achava uma cidade muito parecida com Lisboa, mas muito mais movimentada. Tinha mar e eu adoro mar. O único país para onde me mudava era para o Brasil. Quando era pequeno perguntava aos meus “porque não vamos para o Brasil em vez de irmos para Portugal” e respondiam-me “porque a nossa família está em Portugal”. Houve pessoas em Angola que quando foram embora na altura da guerra foram para o Brasil.

Em férias, gosta de desligar ou está sempre ligado?
Hoje em dia é difícil [desligar]. E a agência fica sempre a funcionar. Tento sempre que a minha equipa consiga decidir.

Não gosta de ser imprescindível?
Não. Gosto muito de passar. Delego muito.

Mas sabe sempre o que se está a passar?
Tenho sempre as antenas no ar. Houve uma altura em que trabalhei à noite no Kremlin. Trabalhava no bar, mas nunca gostei de álcool. Eu decorava tudo o que os clientes bebiam, quando os via entrar já estava a preparar a bebida. Eu era a única pessoa que vestia diferente. Vinha do Porto, estava na área da moda e sempre vesti roupa de designers, quando era modelo ofereciam-me para eu usar. Começaram a perguntar-me de onde eram as minhas roupas. Lisboa era mais cinzenta do que o Porto na altura. Aqui toda a gente olhava para mim na rua. Quando as pessoas vêm do Porto nota-se logo, ainda hoje. O lisboeta é mais prático, liga mais a jantar fora, sair, ter coisas na casa, fazer viagens. No norte era muito mais a imagem, a tendência, ir ao shopping. Ainda é assim.

O que ainda lhe falta fazer?
Tudo teve o seu tempo, agora gostava de desenvolver as áreas em que gosto de trabalhar e de ensinar à nova geração. Estudar o que é português, descobrir coisas portuguesas que, se calhar o mundo precisa de conhecer, trabalhar mais as marcas portuguesas, os designers e artistas. Depois, quando estiver cansado de tanta gente, vou para o Alentejo. Sempre gostei muito do Alentejo. Tive um monte lá durante anos, mas não havia luz, tinha um poço, a casa estava toda montada com velas, bateria do carro… Para tomar banho, tinha sacos do campismo que punha na rua a aquecer durante o dia ou aquecia no fogão a gás. Era tão engraçado, porque era chegar lá e adaptar aquela realidade.

Continua a ir para o Alentejo?
Continuo, mas já vou para outros sítios porque o Alentejo também mudou muito. Começou a haver muito novo rico e muito casal jovem com crianças e o sossego começou a mudar. Para as praias com difícil acesso, para onde não ia quase ninguém, começaram a ir famílias. Continuo a levar lá amigos que não conhecem e alugo montes como antigamente, mas agora já há luz e internet, mas está-se no monte sossegado.

Investe nas redes sociais?
Não, mas tenho. Não quero que as pessoas saibam onde vou e onde estou. Diziam-me que as pessoas queriam saber do meu trabalho. O que eu faço profissionalmente, sim, mas a minha vida pessoal, não. Eu sou gay assumido desde sempre. Quando estava a trabalhar à noite era o único gay na equipa toda e souberam isso desde o início. E tinha muitas mulheres interessadas em mim ao balcão, até me traziam flores. Elas gostavam de mim como pessoa. Começaram a ver-me de outra forma. Foi também uma altura em que as pessoas começaram mais a assumir-se e começou a ser uma coisa mais normal. Ainda hoje tenho clientes do Kremlin de há vinte e tal anos que me cumprimentam, e sempre gostaram da minha postura. Eu não quero esconder e não tenho problemas de dizer, mas é para as pessoas que têm que saber e não para espalhar. Tenho amigos um pouco mais novos que ainda não têm redes sociais hoje e há uns anos diziam “vocês não sabem onde se vão meter, a vossa vida vai ficar em todo o lado”, eu dizia “mas vocês são maluquinhos?” Agora já penso nisso.

Já teve desilusões grandes na moda, no trabalho ou na vida?
Olha que não. Como não ligo ao que passou e não fico com pesos, as coisas correm-me bem. Na minha vida também sou assim.

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