20h: Duas coisas sobrevivem à passagem do tempo nesta noite de quinta feira: o genérico da Eurovisão e Catarina Furtado. Celebremos.
20h01: Um vídeo promocional mostra-nos pessoas em movimento na cidade a dirigirem-se de forma decidida para locais. Temos mobilidade, arte urbana, esplanadas, temos uma ruiva a olhar fixamente para a câmara, uma série de artifícios que tornaram este filme demasiado caro para os bolsos de quem os pagou, e não digo apenas por termos sido nós. A sequência épica finaliza com planos fechados de rostos de diferentes etnias mostrando que Lisboa é uma cidade culturalmente diversa. Duas das pessoas filmadas têm cara de quem gere meia dúzia de apartamentos com Airbnb. Não sei se é este vídeo que fará um lituano reservar um voo para Lisboa, mas agora a fatura já foi emitida.
20h02: Uma nota para o quarteto de apresentadoras. Não via quatro pessoas com tão pouco talento para dizerem piadas desde que visitei uma casa de espelhos. Gabo-lhes a coragem de avançarem sem medos frente a milhares de pessoas. Ainda assim, quero acreditar que boa parte das pessoas que se deslocaram ao recinto para assistir a isto estão alcoolizadas e/ou a serem pagas como aqueles figurantes dos programas da manhã.
Noruega
Alexander Rybak, “That’s How You Write A Song”
A primeira canção chama-se “That’s How You Write A Song” e arranca com o vocalista a tocar air violin, uma ideia de sequela que certamente ficará na gaveta dos criadores de Guitar Hero. O título da canção parece ser a primeira bofetada de luva branca a Diogo Piçarra. O narrador Nuno Galopim, que tem de pagar contas como todos nós, faz uma de muitas incursões pouco felizes pelo trocadilho e diz, a propósito da sonoridade disco que abriu as festividades, que “começamos com alguém que tem Saturday Night Fever no seu DNA”. Por acaso é quinta-feira e não, não tem.
Já agora, se quiserem saber como se escreve uma canção segundo o autor Rybak:
- “Acredita.”
- “Passa o dia a cantar.”
- “Deixa-te ir.”
Roménia
The Humans, “Goodbye”
Um colectivo de nome The Humans entra em palco, com uma vocalista loira que canta de forma condoída. Ninguém percebe o que a apoquenta, até que surgem dois homens por trás dela, vestidos de branco da cabeça aos pés. Um deles parece querer apertar-lhe o pescoço, ficando a dúvida se se tratou de uma carícia ou de uma agressão. À falta de VAR, a canção prossegue com uma coreografia que parece ter sido treinada mas não pensada. Os dois homens de macacão branco lá tiram as mãos da mulher. É pior a emenda que o soneto. Umas guitarras a puxar ao épico lá nos ajudam a perceber que tudo isto se trata de um exercício auto-referencial. A canção intitulada “Goodbye” será coroada, muito justamente, com uma despedida já hoje.
Sérvia
Sanja Ilić & Balkanika, “Nova Deca”
Enigmático. Uma das actuações mais surpreendentes da noite. Começa com uma voz feminina que deve ser a Dulce Pontes lá do sítio. Logo depois surge um homem atrás de si e é o conhecido escritor Afonso Cruz. Antes que consigamos perceber o que está a acontecer, já a canção evoluiu para um espectáculo dos Santamaria na Fatacil de 1998. Ok, já percebemos o que está a acontecer. É a Eurovisão.
San Marino
Jessika feat. Jenifer Brening, “Who We Are”
Explicam os apresentadores que não é a primeira vez que Jennifer tenta entrar na Eurovisão. A canção de San Marino soa a algo que poderia acompanhar o anúncio de um novo Dacia e inclui robôs na coreografia. Não tenham medo deles. Aliás, fica uma sugestão ou uma súplica: por favor ensinem-nos a cantar e deixem-nos ficar com os empregos desta gente toda.
Dinamarca
Rasmussen, “Higher Ground”
O que é que veio primeiro? O azeite ou o festival da Eurovisão? Dizem os apresentadores, sempre oportunos, que a Dinamarca é o país mais feliz do mundo segundo a ONU. Nada o faz crer nesta canção cheia de harmonias vocais e vagar tribal interpretada por um tipo que parece um viking com cartão de cliente da Bershka. Sejam felizes e desapareçam. Sinto que já ouvi esta canção várias vezes antes na Eurovisão, mas foi a primeira vez que cheguei ao fim.
Rússia
Julia Samoylova, “I Won’t Break”
A intérprete russa canta mas não encantou numa canção pop com momentos interessantes que falhou apenas no refrão. Imaginem um bife tártaro feito com tofu.
20h32: Daniela Ruah pergunta em tom estridente: “And now, who wants to hear some more Eurovision music?” Para desgosto de alguns, a pergunta é meramente retórica.
Moldávia
DoReDoS, “My Lucky Day”
“My Lucky Day” é uma canção estranhamente divertida, alegre até, com uma pop balcânica à qual só falta um “M” no respectivo hashtag do país #MDA. É o tipo de canção que levará pessoas por quem temos consideração intelectual a elogiarem este evento, como se a Eurovisão fosse de facto uma oportunidade para nos entregarmos à descoberta musical transgénero e não apenas um lagar do mais refinado azeite auditivo que existe. Não me admirava nada se ganhassem isto.
20h36: Eurovisão em números: o dinheiro gasto em filmagens aéreas da cidade de Lisboa daria para pagar a rescisão de contrato de Rui Vitória.
Holanda
Waylon, “Outlaw In ‘Em”
Um tipo com ar de rocker e cartão de cidadão da Holanda surge num palco elevado. É rodeado por uma suposta banda rock que subitamente se transforma numa reaparição dos Batoto Yetu.
Austrália
Jessica Mauboy, “We Got Love”
“O pai é timorenses, a mãe é de origem tribal, está explicada a beleza”, diz Hélder Reis. Não quero ofender ninguém, mas acho que ainda não chegámos a nenhum consenso estético que nos permita afirmar peremptoriamente, em directo na televisão portuguesa, que um cruzamento entre um timorense e uma mulher tribal só podia resultar em mulher bonita. Fica para reflexão. A canção da Austrália é pop feita à medida desta brincadeira. Tem um dos melhores instrumentais da noite, tem uma das melhores vozes e grande presença em palco. Tem tanto atributo que chega a fazer isto parecer uma coisa séria. É uma canção que tem tudo menos a nacionalidade certa. Se a Austrália ganha isto, os portugueses são gente para impugnar o resultado e pedir o dinheiro dos bilhetes de volta. Vá lá, no mínimo passam o resto da noite de sábado a dizer mal da vida nas redes sociais.
Geórgia
Iriao, “For You”
Nuno Galopim demonstra que está para as ocorrências desta noite como Hélder Conduto para os jogos do Benfica na BTV, afirmando que os “sons da Geórgia somam mais uma parcela de diversidade à Eurovisão”. Não há canção esta noite que não saia daqui com 12 pontos de Nuno Galopim. Numa escala de 0 a “canções que jamais ouviríamos de livre vontade a não ser nesta circunstância”, o tema da Geórgia leva um sólido “quanto tempo falta para isto acabar?”.
Polónia
Gromee feat. Lukas Meijer, “Light Me Up”
Segundo me diz a Internet, trata-se de uma dupla com credenciais na música pop. Ainda não cheguei ao refrão e já só me lembro da primeira canção da noite, que nos explica como escrever uma canção:
- “Acredita.”
- “Passa o dia a cantar.”
- “Deixa-te ir.”
É muito isto. O intérprete polaco avança destemidamente e percebe-se porquê. A pen USB que contém o instrumental da canção está seguríssima de si. Se prestarmos atenção, ouvimos de facto uma composição pop bem conseguida que preenche todos os requisitos de um êxito de discoteca ou do palco secundário do festival Marés Vivas – todos os requisitos excepto a voz, que se recusa a acompanhar o encademaneot sonoro saído da pen USB. E só por isso não ganhará.
Malta
Christabelle, “Taboo”
Eurovisão em números: o consumo de energia da Altice Arena durante a canção de Malta permitiria abastecer o concelho de Santa Marta Penaguião durante um mês.
Hungria
AWS, “Viszlát Nyár”
Os AWS entram em palco para nos dar aquela dose bem servida de nu-metal húngaro. É como se me servissem dobrada ao pequeno-almoço e a despejassem em cima de mim. “Viszlat Nyar” é uma canção que chega a dar-nos esperança quando vemos o vocalista passear descalço por entre um corredor de chamas. Infelizmente, estas nunca chegam a apanhá-lo e a banda tem assim possibilidade de terminar a sua actuação. Hélder Conduto aka Nuno Galopim quase interrompe o último grito gutural do vocalista para relembrar os espectadores mais susceptíveis que um dos valores da Eurovisão é “ser inclusivo e o apelo à diversidade”, como quem pede um pouco de paciência.
Letónia
Laura Rizzotto, “Funny Girl”
Dizia o Observador num artigo publicado hoje: “Nasceu no Brasil, vive em Nova Iorque e chegou a Lisboa para representar a Letónia na 63ª edição da Eurovisão.” A história de Laura Rizzotto confunde-se com um novo esquema de fuga de capitais e a sua fisicalidade em palco distrai-nos o suficiente para pagar as contas a todas as famílias do clã Espírito Santo. E por fisicalidade leia-se mulherão.
Suécia
Benjamin Ingrosso, “Dance You Off”
A canção da Suécia é a melhor ideia da noite e quase fez valer a pena os minutos passados a ouvir o tema da Hungria. Uma canção pop sem grandes salamaleques que deve tudo às melhores canções pop, saída de um país que tem os melhores produtores pop da actualidade, cantada por um tipo muito competente, tudo isto acompanhado de uma cenografia que transformou a actuação ao vivo num vídeoclipe. Estranharia muito se não ficasse nos primeiros lugares. Compreenderei perfeitamente se ganhar.
Montenegro
Vanja Radovanović, “Inje”
Podia dizer que tiveram azar em actuar imediatamente a seguir à Suécia, mas acho que seria uma análise algo simplista da canção de Montenegro. Nuno Galopim prossegue indiferente à catástrofe humana e explica-nos que “esta é uma canção que traduz verdades da folk local e é importante que isso aconteça”. Talvez seja, Nuno. Talvez seja.
Eslovénia
Lea Sirk, “Hvala, ne!”
Quem diz que a música é uma linguagem universal nunca tentou acompanhar uma canção pop em esloveno. Felizmente para a intérprete vocal, a produção que a acompanha tem os ingredientes certos para grandes arenas e chega mesmo a agradar. Só falta à menina ficar calada.
Ucrânia
MELOVIN, “Under The Ladder”
Hélder Reis apresenta o tema e diz “Under The Leader” em vez de “Under The Ladder”, obrigando o intérprete Melovin a começar debaixo de um líder e não debaixo de uma escada como o título original da canção sugeria. Felizmente para o jovem ucraniano, a lição ia bem estudada. No final, vingou uma composição forte suficientemente parecida com algo que já ouvimos antes, mas não ao ponto de ser desqualificada. É a segunda bofetada da noite para Diogo Piçarra, o tal rapaz enxovalhado pelas redes sociais que ganharia isto com uma perna às costas e uma bronquiolite.
21h25: Eurovisão em números: o festival tem quatro apresentadoras mas apenas 1.75 certificações Proficiency.
21h33: Procede-se ao proverbial enchimento de chouriços necessário enquanto as pessoas votam. Uma peça bem intencionada parece contar a história da Eurovisão, mas torna-se muito difícil acompanhar em fast forward.
21h38: É a primeira e última vez que me convencem a ver a Filomena Cautela dançar ao som de música celta.
21h57: Daniela Ruah veste Tom Ford e Sílvia Alberto veste Desconforto.
21h58: Fala-se agora dos países de primeiro mundo, com presença ja garantida na final. Franceses, alemães e italianos competem pela minha atenção como três distribuidores de flyers de um restaurante indiano/italiano. Desvio-me graciosamente mas não deixo de reparar que a canção alemã e francesa são orelhudas quanto baste para ganhar.
22h09: Apuram-se para a final: Sérvia, Moldávia, Hungria, Ucrânia, Suécia, Austrália, Noruega, Dinamarca, Eslovénia e Holanda. Aceita-se perfeitamente, até porque a noite já vai longa.
Fotografia de Andres Putting/Eurovision Song Contest