O diploma para a despenalização da eutanásia foi aprovado esta sexta-feira, mas ainda faltam muitos passos até entrar em vigor. Marcelo Rebelo de Sousa, que tem sempre oportunidade de vetar, ainda se pode pronunciar.
Ainda assim, se fora aprovado tal como está, a lei prevê a eutanásia em que circunstâncias? Qual é o papel dos médicos em todo o processo? E é possível ao doente reverter a decisão? As perguntas e respostas sobre a despenalização da morte assistida.
Em que condições é possível pedir eutanásia?
O presente diploma admite a aplicação da morte medicamente assistida em duas circunstâncias: em caso de “lesão definitiva de gravidade extrema” e de “doença grave e incurável”. A primeira versão do diploma exigia que o paciente tivesse uma “doença fatal”, termo que caiu na redação do texto final.
Ora, a ausência do conceito de “doença fatal” já motivou avisos de Marcelo Rebelo de Sousa, que considera que se pode estar a abrir o leque de circunstâncias em que a eutanásia pode acontecer, traduzindo, como escreveu o Presidente da República, uma visão “mais radical ou drástica” que não corresponderia ao “sentimento dominante na sociedade portuguesa.
Os proponentes da lei estão cientes das reservas de Marcelo Rebelo de Sousa, como explicava aqui o Observador, mas decidiram ir ao choque por entenderem que esta distinção não esbarrará na trave do Tribunal Constitucional.
Como se definem estes conceitos?
É uma das questões mais delicadas do diploma, pela difícil delimitação do que pode constituir uma “lesão definitiva de gravidade extrema” ou uma “doença grave e incurável”. Ainda assim, os proponentes da lei tentam estabelecer os vários conceitos:
“Doença grave e incurável: doença que ameaça a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”;
“Lesão definitiva de gravidade extrema: lesão grave, definitiva e amplamente incapacitante que coloca a pessoa em situação de dependência de terceiro ou de apoio tecnológico para a realização das atividades elementares da vida diária, existindo certeza ou probabilidade muito elevada de que tais limitações venham a persistir no tempo sem possibilidade de cura ou de melhoria significativa”;
“Sofrimento de grande intensidade: sofrimento físico, psicológico e espiritual, decorrente de doença grave e incurável ou de lesão definitiva de gravidade extrema, com grande intensidade, persistente, continuado ou permanente e considerado intolerável pela própria pessoa”.
De que forma é que se poderá concretizar?
Há dois conceitos previstos para que alguém, a seu pedido, possa pôr termo à vida. São eles o “suicídio medicamente assistido”, onde deverá existir a autoadministração de fármacos letais pelo próprio doente, sob supervisão médica” e a eutanásia, onde pode acontecer a “administração de fármacos letais, pelo médico ou profissional de saúde devidamente habilitado para o efeito”.
Quem pode pedir eutanásia?
O recurso à morte medicamente assistida só pode ser apresentado apresentado “por cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território nacional”. A decisão do doente em qualquer fase do processo é “estritamente pessoal e indelegável”.
No caso de a pessoa em concreto não saber ou estar impossibilitada de fisicamente de escrever e assinar pode “fazer-se substituir por pessoa da sua confiança, por si designada apenas para esse efeito, aplicando-se as regras do reconhecimento de assinatura a rogo na presença de profissional legalmente competente, devendo a assinatura ser efetuada na presença do médico orientador, com referência expressa a essa circunstância, e na presença de uma ou mais testemunhas”.
Qual é a intervenção médica no processo?
Assim que o doente anuncia a vontade de recorrer à eutanásia, o processo é entregue ao médico orientador escolhido por si para o efeito. O médico orientador deve emitir, no prazo de 20 dias a contar da abertura do procedimento, um parecer sobre o pedido do doente. Em caso negativo, “o procedimento em curso é cancelado e dado por encerrado e o doente é informado dessa decisão e dos seus fundamentos pelo médico orientador, podendo o procedimento ser reiniciado com novo pedido de abertura”.
Em caso de parecer favorável, o doente é depois avaliado por um especialista da patologia em causa, que deve emitir um parecer num prazo máximo de 15 dias. Se rejeitado, o caso volta à estaca zero, podendo o doente pedir reabertura do processo.
“É obrigatório o parecer de um médico especialista em psiquiatria, sempre que ocorra uma das seguintes situações:
a) O médico orientador e ou o médico especialista tenham dúvidas sobre a capacidade da pessoa para solicitar a morte medicamente assistida revelando uma vontade séria, livre e esclarecida;
b) O médico orientador e ou o médico especialista admitam que a pessoa seja portadora de perturbação psíquica ou condição médica que afete a sua capacidade de tomar decisões”.
O psiquiatra tem então 15 dias no máximo para emitir um parecer. Em caso negativo, o processo volta ao início, podendo o doente pedir ou não reabertura.
A seguir, o paciente passará pelo crivo da Comissão de Verificação e Avaliação dos Procedimentos Clínicos de Morte Medicamente Assistida (CVA), que tem cinco dias para se pronunciar.
Esta comissão deve ser composta por um jurista indicado pelo Conselho Superior da Magistratura, um jurista indicado pelo Conselho Superior do Ministério Público, um médico indicado pela Ordem dos Médicos, um enfermeiro indicado pela Ordem dos Enfermeiros e um especialista em bioética indicado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida.
Mais: “Quando a CVA tiver dúvidas sobre se estão reunidas as condições previstas (…) deve convocar os médicos envolvidos no procedimento para prestar declarações, podendo ainda solicitar a remessa de documentos adicionais que considere necessários. Em caso de parecer desfavorável da CVA, o procedimento em curso é cancelado”.
Só cumpridos todos estes pressupostos é que é possível avançar para a parte final do processo.
O doente pode mudar de opinião?
Mesmo cumpridos todos os pressupostos, o doente tem sempre a decisão final e pode pedir a interrupção do processo a qualquer momento.
No limite, se o doente ficar inconsciente antes da data marcada para a realização do procedimento de morte medicamente assistida, o procedimento é interrompido e não se realiza, salvo se o doente recuperar a consciência e mantiver a sua decisão”.
Onde pode ser concretizada a eutanásia?
O doente pode escolher o local onde quer que seja concretizada a eutanásia. No limite, se quiser que seja em casa, deve ter a certificação do médico orientador.
Nos restantes casos, “o procedimento de morte medicamente assistida pode ser praticado nos estabelecimentos de saúde do Serviço Nacional de Saúde e dos setores privado e social que estejam devidamente licenciados e autorizados para a prática de cuidados de saúde, disponham de internamento e de local adequado e com acesso reservado”.
A lei tem efeito a partir de hoje?
Não. Para já, a lei tem de seguir para Marcelo Rebelo de Sousa. De acordo com o calendário sugerido pelo Presidente da República, o diploma deve antes chegar do Natal e tem depois 20 dias para se pronunciar.
É possível (e expectável) que Marcelo envie o diploma para o Tribunal Constitucional. Se os juízes do Palácio Ratton derem luz verde à lei (e os deputados procuram aproximar-se das conclusões dos juízes), Marcelo ainda terá uma palavra a dizer, podendo vetar o diploma. Ora, nesse cenário, os deputados podem 1) apresentar o mesmo diploma e Marcelo é obrigado a aprovar; 2) mudar o diploma, reiniciado todo o processo; ou 3) desistir da lei.