A ex-secretária de Estado do Turismo, Rita Marques, vai ser a administradora de uma empresa privada, a The Fladgate Partnership, e gerir o quarteirão cultural WOW, ao qual tinha concedido estatuto definitivo de utilidade turística há menos de um ano, como comprova um despacho que assinou a 21 de janeiro de 2022. A ida para a holding privada do setor do turismo acontece apenas 38 dias após Rita Marques ter sido exonerada como governante na área do Turismo, o que contraria o que está estabelecido na lei.
O regime de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, a célebre Lei nº 52/2019, diz que os governantes “não podem exercer nos três anos seguintes” à cessação do mandato “funções em empresas privadas que prossigam atividades no setor por eles diretamente tutelado” e “relativamente às quais se tenha verificado uma intervenção direta do titular de cargo político.”
A exceção que existe e que dispensa este obrigatório “período de nojo” previsto na lei é quando o governante regressa “à empresa ou atividade exercida à data da investidura do cargo”. Antes de ser secretária de Estado do Turismo, Rita Marques era CEO da Portugal Ventures, uma sociedade gestora de fundos de capital de risco público. Ou seja: não trabalhava na holding The Fladgate Partnership, nem em nenhuma das suas participadas.
Contactada pelo Observador, Rita Marques não comenta o facto de a sua escolha ir contra a lei, mas destaca que não teve atividade política nem exerceu qualquer cargo político até 2019 altura em que lhe foi “dirigido um convite para ser Secretária de Estado do Turismo”. A antiga governante considera assim legítimo assumir agora o cargo na Fladgate Partnership: “Tendo desenvolvido toda a minha atividade profissional no setor privado, era para mim evidente que esta exoneração implicava o regresso ao mundo empresarial. Assim acontece.”
O despacho de Rita Marques permite que a proprietária e exploradora do WOW (sigla de World of Wine) fique isenta das taxas devidas à Inspeção Geral das Atividades Culturais. A sociedade à qual é atribuído o benefício (a HILODI – Historic Lodges & Discoveries) é uma das empresas do Grupo The Fladgate Partnership, a holding que detém diversas empresas do setor do turismo.
Foi uma nota da própria Fladgate Partnership a revelar que a ex-secretária de Estado fica com a gestão do projeto ao qual deu utilidade turística definitiva em janeiro de 2022. Diz o comunicado: “”[Rita Marques assume] a partir do dia 16 de janeiro, funções como membro do Conselho de Administração da The Fladgate Partnership com a responsabilidade sobre a divisão dos Hotéis e do Turismo”. E acrescenta: “A cargo de Rita Marques vai ficar a direção do WOW, o quarteirão cultural de Gaia, as caves da Taylor’s e da Fonseca, o hotel The Yeatman, o Vintage House no Douro, o Hotel da Estrela e o Palacete Chafariz d’El Rei em Lisboa, ainda o Museu do Vitral, o Ferry no rio Douro e os 20 restaurantes do grupo”.
O estatuto atribuído por Rita Marques ao quarteirão cultural que agora vai gerir abre a porta ainda, como tem publicitado o Turismo de Portugal, a benefícios como: “Isenção do IMT em aquisições de prédios ou frações com vista à instalação de empreendimentos qualificados de utilidade turística; redução de Imposto do Selo a um quinto em aquisições de prédios ou frações com vista à instalação de empreendimentos Isenção de Imposto Municipal sobre Imóveis (IMI) durante sete anos; admissibilidade de expropriação por utilidade pública de imóveis (e direitos) necessários à construção e ampliação de empreendimentos ; e possibilidade de constituição de servidões sobre prédios vizinhos.”
Sobre o despacho, Rita Marques diz ao Observador que este “limita-se a confirmar o estatuto de utilidade turística da empresa em causa, que já havia sido decidido em 2018”. E acrescenta: “A minha intervenção ocorre depois de o Turismo de Portugal apreciar o pedido e reconfirmar que todos os requisitos da utilidade turística se mantinham. Assim se passa em todos os casos similares.”
O estatuto atribuído em 2018 era, no entanto, apenas “prévio”. E, mesmo que tenha passado pelo Turismo de Portugal, quem torna o estatuto “definitivo” formal e legalmente é a própria Rita Marques. O despacho está, de resto, assinado pela própria, em quem o ministro da Economia tinha delegado competência para atribuição deste estatuto.
Rita Marques recebeu subsídio de alojamento quatro dias antes de ser exonerada
Esta não é a primeira polémica que envolve Rita Marques. Apesar de ter sido demitida a 29 de novembro de 2022, quatro dias antes (a 25 de novembro) o primeiro-ministro António Costa atribuiu-lhe um subsídio de alojamento com “efeitos a partir da data da sua tomada de posse e pelo período de duração das respetivas funções governativas, em março de 2022”, noticiou o jornal Eco.
Na altura, em resposta ao Eco, o gabinete de António Costa limitou-se a responder o seguinte: “A integralidade do procedimento de reconhecimento do direito ao subsídio de alojamento apenas ficou concluído na data do despacho, contudo esse direito reporta-se sempre à data da tomada de posse enquanto governante”. Na mesma declaração, São Bento acrescentava: “O membro do Governo em causa tem direito a receber esse valor legal para o período total em que exerceu essas funções”.
A fórmula de cálculo do subsídio de alojamento — aplicado a membros do Governo sem casa em Lisboa e que morem a mais de 150 quilómetros — fez com que, com este despacho, Rita Marques tenha recebido 6 mil euros que lhe eram devidos quatro dias antes de ser exonerada do cargo.
A guerra com o “chefe” que culminou na saída do Governo
Rita Marques, que já era secretária de Estado no tempo em que o ministro da Economia era Pedro Siza Vieira, manteve-se no cargo com o novo ministro da Economia e do Mar, António Costa Silva. No entanto, a relação nunca teria sido boa. A “gota de água” foi quando a secretária de Estado fez declarações sobre o IRC em sentido contrário ao do ministro (Costa Silva sugeria redução transversal, Rita Marques era contra a descida dessa forma).
A então secretária de Estado do Turismo chegou a dizer, em entrevista à Lusa, que quem decidia sobre assuntos como a redução IRC era António Costa — o que, de certa forma, desautorizava o seu ministro: “Estas matérias são discutidas de forma coletiva, em sede própria, no Conselho de Ministros. O senhor primeiro-ministro há de ter a última palavra, aliás, tem a primeira, a última, sempre.”
Rita Marques afrontaria ainda mais a autoridade do ministro quando disse que o seu trabalho seria feito “em função das orientações” recebidas do primeiro-ministro. Já antes dessa entrevista, a secretária de Estado tinha comentado uma publicação de Pedro Siza Vieira no Linkedin, onde se podia ler que, apesar de ser a favor de uma descida do IRC, olhava para “o aumento da dedução de lucros retidos e reinvestidos” como uma alternativa. Escrevia Rita Marques que é preciso “trabalhar para reforçar os capitais próprios das empresas e melhorar o autofinanciamento”. E acrescentava: “Que o OE2023 seja claro nessa ambição”.
Perante isto, o ministro terá dito (tal como fez com João Neves) que: ou saiam os secretários de Estado ou saía ele. António Costa Silva ganhou o braço de ferro e Rita Marques, tal como o outro secretário de Estado da tutela, acabou exonerada.
O assunto ainda não está bem resolvido. Na resposta enviada ao Observador sobre este caso, Rita Marques reforçou que foi demitida por “telefone”: “Como é do conhecimento público, fui exonerada de Secretária de Estado do Turismo, Comércio e Serviços a 2 de dezembro, tendo sido informada dessa decisão pelo Senhor Ministro da Economia e do Mar, por telefone, no dia 29 de novembro, quando me encontrava em missão na Arábia Saudita, a representar o Estado Português num encontro do WTTC – World Travel & Tourism Council.”