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Daryan Dornelles

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Fado Bicha: silêncio que se vai dançar para sempre

Cinco anos e muitas canções depois, é editado "Ocupação", o primeiro álbum da dupla Lila Tiago e João Caçador. Em entrevista, explicam como o fado foi o ponto de partida para um "novo lugar criativo".

A canção abriu um espaço e Valentim de Barros pôde finalmente voltar a dançar. Foi-lhe devolvido o que sempre foi seu por direito, o seu amor à dança, a sua paixão pela vida. Valentim de Barros já morreu. Os estigmas sociais perante a sua fome de liberdade e a sua homossexualidade assumida levaram-no ao encarceramento. Esteve mais de quatro décadas internado no hospital psiquiátrico Miguel Bombarda, em Lisboa. Fizeram-lhe uma lobotomia. Considerado o primeiro bailarino internacional português – dançou em Espanha, fez parte do corpo de baile do teatro da ópera de Estugarda na Alemanha nazi –, morreu aos 69 anos no hospital psiquiátrico, até porque nos últimos anos não tinha já para onde ir. Morreu quatro anos antes de a Organização Mundial de Saúde ter deixado de considerar, em 1990, que a homossexualidade é uma doença.

“Requiem para Valentim” é a primeira canção de Ocupação, o primeiro álbum das Fado Bicha, editado esta sexta-feira, 3 de junho, e que reúne doze canções do repertório de cinco anos de trabalho deste duo de voz (Lila Fadista/ Lila Tiago) e guitarra (João Caçador), que desde 2017 deu mais de 200 concertos em oito países e se assume como um projeto musical, performativo e ativista. “Contava isto ontem à Lila. Comoveu-me muito a gravação desta música”, revelou João Caçador ao Observador, via videochamada, com Lila Fadista conectada a partir de um terminal de aeroporto. Luís Clara Gomes, conhecido pelo epíteto musical de Moullinex, foi o produtor do álbum.

“Estávamos a acabar de gravar a música e sentimos que faltava alguma coisa. Perguntámos ao Luís se ele podia fazer uma espécie de beat, uma coisa dançável, como arranjo final, e ele em 15 minutos montou aquela estrutura toda. A Lila gravou ‘chora e dança’ e, de repente, tínhamos criado um espaço onde pudemos convocar essa ancestralidade e essa violência sobre a nossa comunidade”, LGBTI+ e queer. As Fado Bicha devolveram, com esta canção, o lugar devido a Valentim de Barros no panorama artístico português. Deram-lhe, em 2022, a imortalidade, “um espaço onde pode dançar para sempre”, livre.

[“Crónica do Maxo Discreto”:]

“É um fado que toco há muito tempo e é muito emblemático da história do fado. Dos mais fortes e dos mais pesados”, concretizou João Caçador, referindo-se a “Fado Cravo”, cuja música e interpretação são de Alfredo Marceneiro, e em que “Requiem para Valentim” se inspirou. Foi das poucas canções em que lhes foi dada autorização para gravarem. A dada altura, Lila Fadista canta “tentaram esvair a cor/ que sangravas de paixão”. Está aqui resumido o âmago de todo este disco, senão de todo este projeto: a imensa cor, alegria, voragem, aprendizagem pelo erro, são figuras de vitalidade que logo se veem ensombradas por um vasto manto de negro que claramente só faz sentido porque se chama preconceito.

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Depois de “ESTOURADA”, a segunda canção, que se assume como anti-touradas, vem o tema mais difícil de ouvir de todo este álbum, “1997”. Trata-se de uma pequena história narrada por uma criança de 12 anos, uma espécie de diário íntimo que Lila Tiago escreveu em diferido, 24 anos depois. É sobre si própria, quando um dia estava sentada no sofá da sala da avó a comer cereais e na televisão estava a dar o funeral da princesa Diana. As imagens dos dois filhos da princesa do povo, William e Harry, a caminharem atrás do caixão correram mundo. Interpretada pelo jovem poeta e diseur Bernardo Araújo, há uma passagem que diz: “Eu sou um maricas./ E sou gordo./ Nunca poderia ser um príncipe./ A quem é que interessa a minha tristeza?” Mais à frente: “Não quero que tenham vergonha disto que eu sou. De ser tão fraco que não respondo aos rapazes que gozam comigo na escola e na rua. Nem levanto a cabeça”.

“Quando as Fado Bicha começaram, a Lila nunca tinha cantado fado nem cantado profissionalmente. Eu tinha acabado o curso de música, de guitarra, havia muito pouco tempo. Então, é uma espécie de necessidade pessoal, a de criarmos um lugar onde pudéssemos existir.”

É deste contrapeso de uma leveza sempre arrastada por uma força opressora que resulta também a importância, inclusive formal, da edição deste disco. Não só para o mundo, como para as próprias Fado Bicha. “O nosso projeto começou de uma forma muito despretensiosa”, esclareceu Lila Tiago. “Não começámos logo com a intenção de criar uma banda ou até de virmos a viver exclusivamente da Fado Bicha e de fazer música. Atualmente, é o que fazemos.” Lila Tiago explicou ainda que o projeto começou por ser uma exploração pessoal sua com a qual João Caçador se identificou e acabou por juntar-se. Foram descobrindo e criando o projeto à medida que acontecia. “Por um lado, este álbum dá-me algum sentido de legitimação. Eu sentia falta de termos um disco porque acho que é um trabalho específico na vida de qualquer banda que não tínhamos ainda concretizado”, acrescentou. Ocupação teria saído em 2020 não fosse a pandemia. “Por outro lado, a forma como este álbum acontece acaba por refletir uma série de constrangimentos e de potencialidades.”

A primeira intenção era a de registar todas as canções cantadas em concerto. “A grande maioria dos pedidos que fizemos em termos de direitos de autor foi-nos recusada. Foi-nos negado o acesso a esse património e, portanto, tivemos de alterar a ideia do álbum”, confessou Lila Tiago. “Ocupação integra algumas das canções que cantamos desde muito cedo, como ‘Lila Fadista’ ou ‘Crónica do Maxo Discreto’. Para esta última, tivemos de criar uma nova melodia, porque a que utilizávamos para cantar em palco – de ‘Nem às Paredes Confesso’ – não nos autorizaram gravar.”

"Depois de cinco anos de percurso – das coisas que temos conquistado, pensado, errado, feito de diferente –, temos um disco que reúne as nossas potencialidades e as de várias pessoas à nossa volta"

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Lila Tiago encara ainda este álbum como um ponto de alavancagem entre passado e futuro. “Isso para mim acaba por ter um significado muito especial”, referiu. “Depois de cinco anos de percurso – das coisas que temos conquistado, pensado, errado, feito de diferente –, temos um disco que reúne as nossas potencialidades e as de várias pessoas à nossa volta, como as do Luís [Clara Gomes] e de outras – creditadas ou não creditadas.”

Em Ocupação, participaram várias artistas da cena queer portuguesa, como Symone de la Dragma, passarumacaco, Labaq e Trypas Corassão. Trypas Corassão interpreta a letra gutural – “Eu sou a monstra/ Do que odeias e temes, te dá nojo e faz rir” – do tema “Medusa-me”, dedicado à transexual Gisberta Salce Júnior, morta há 16 anos à pedrada por um grupo de adolescentes, no Porto.

“Acho muito comovente esta ideia do álbum, porque tanto o disco como as Fado Bicha nascem desta atitude de ‘levantados do chão’”, complementou João Caçador acerca da importância da edição de Ocupação nesta fase da carreira das Fado Bicha. “Quando as Fado Bicha começaram, a Lila nunca tinha cantado fado nem cantado profissionalmente. Eu tinha acabado o curso de música, de guitarra, havia muito pouco tempo. Então, é uma espécie de necessidade pessoal, a de criarmos um lugar onde pudéssemos existir.” João Caçador referiu ainda um depoimento que Lila Tiago deu numa outra ocasião, em que explicava que, se houvesse muitos fadistas e músicos LGBTI+, muita cultura LGBTI+, no panorama nacional, muito provavelmente elas nunca teriam formado as Fado Bicha.

“Todos os desafios de quando crias um lugar artístico novo, em que não há regras, não há cânone, ao mesmo tempo que te dá liberdade total para criares, também te dá uma responsabilidade acrescida nas escolhas, que têm de ser plenamente conscientes daquilo que se quer e não quer fazer”, defendeu João Caçador.

“É um disco, físico e simbólico, sobre as nossas histórias. Vem ocupar este lugar, daí Ocupação – é um processo que não pede licença”, explicitou João Caçador. “Fazemo-lo para podermos existir num lugar artístico, para além do espaço público, que é a nossa existência na sociedade fora dos armários.”

Lila Tiago estudou psicologia, nunca estudou música, e fez teatro durante muitos anos. Chegou inclusive a delinear um caminho profissional na área das Organizações Não Governamentais. Viveu na Grécia. Desde a adolescência que ouve muito fado, nomeadamente Amália Rodrigues. “A música sempre teve um papel muito importante no meu crescimento”, salientou Lila Tiago. “Não só o papel mais clássico de fazer companhia à minha solidão – não tenho irmãos nem irmãs, a minha mãe ficou doente muito cedo na minha vida.” Viria a morrer um ano depois da princesa Diana, pode ler-se na nota explicativa do tema “1997” existente no press kit.

Lila Tiago, assim como Tiago Caçador, sofreu de violência física e psicológica, na qualidade de criança que não correspondia aos dogmas normativos da sociedade. “Através da música, talvez mais do que com qualquer outra arte – não tinha acesso a muitas –, consegui experimentar uma série de possibilidades em termos de feminilidade, motivo pelo qual recebia muita violência em todos os contextos”, admitiu Lila. “Assim, a música feita por mulheres sempre teve um papel muito importante para eu me encontrar.”

[a participação das Fado Bicha no Festival da Canção deste ano:]

O fado imortalizado por Amália, “Nem às Paredes Confesso”, sempre emprestou a melodia a “Crónica do Maxo Discreto”, que é agora o single do disco. A dupla interpreta-a em palco desde o início da sua formação. Com letra de Lila Tiago, uma crítica mordaz a uma das formas de machismo – “De quem eu gosto é da minha namorada/ Vá lá, entende/ Ela não pode saber de nada” –, a melodia teve se ser alterada porque os herdeiros dos direitos do compositor, Ferrer Trindade, não autorizaram a gravação.

O facto de verem negados muitos dos pedidos de autorização para gravar melodias clássicas do fado acabou por ser um dos fatores que ajudou a permeabilizar a estética das Fado Bicha a outras sonoridades, mais pop, mais indie, mais dança. A aura de António Variações, ele que era igualmente um amante de Amália Rodrigues, está presente em todo o disco. “É prática artística os fadistas pegarem no cancioneiro do fado tradicional, mudarem os poemas e reciclarem”, contextualizou João Caçador. “A rejeição é muito pouco comum no fado.”

“Como é que duas pessoas que não entendem nada daquilo que estão a fazer têm a coragem e a ousadia de têm a ousadia de se meterem num palco e dizerem que cantam fado, bicha ainda por cima?"

Daryan Dornelles

O fado tem regras muito rígidas do que se pode e não pode fazer, admitiu João Caçador. “Todos os desafios de quando crias um lugar artístico novo, em que não há regras, não há cânone, ao mesmo tempo que te dá liberdade total para criares, também te dá uma responsabilidade acrescida nas escolhas, que têm de ser plenamente conscientes daquilo que se quer e não quer fazer”, defendeu João Caçador. “É uma forma de funcionamento que choca de frente com a auto-sabotagem, de sermos uma farsa total. Como é que duas pessoas, que não entendem nada daquilo que estão a fazer, têm a coragem e a ousadia de se meterem num palco e dizerem que cantam fado, bicha ainda por cima?” Para Caçador, esta força advém-lhes em parte do facto de a comunidade LGBTI+ sempre ter sido forçada a existir em não-lugares: na escola, nos locais de trabalho, na rua, nas instituições. Em cinco anos de trabalho, as Fado Bicha dizem ter sido convidadas apenas uma vez para irem à rádio, pela Antena 3.

O não-saber fazer ganhou premência com a gravação em estúdio. Este ano, as Fado Bicha foram uma das concorrentes portuguesas do Festival da Canção, com “Povo Pequenino”, que integra também o disco. “Tenho uma abordagem absolutamente leiga à música. O João é mais profissional, estudou música e toca vários instrumentos”, explicou Lila Fadista. “Para mim, o ato de gravar em estúdio é um lugar bastante agri-doce. Contacto com as minhas limitações de forma muito crua e não é sempre fácil.” Lila retira também potencialidades dessa fragilidade que é também do duo: ambas apoiam-se mais, preenchem em palco as debilidades uma da outra.

Agora, têm em palco um terceiro elemento, a Lary. “O João estava a falar com a Lary e dizia-lhe uma coisa que nunca me tinha dito diretamente: sentia que eu tinha uma sensibilidade musical muito grande e que, para ele, que tinha um olhar mais treinado sobre a música”, contou Lila Tiago. “Havia emoções e texturas que ele não tinha tanta sensibilidade para entender, porque estava mais conectado com a parte técnica, com os acordes, com as escalas. Achei bonito.”

Almeida disse que Elza Soares tinha respondido, assim – pôs um áudio no telemóvel a tocar –, aos vídeos das atuações que ele lhe tinha mandado: “Lila, João, meu chão não é nada além de Carnaval, é lágrima de samba na ponta dos pés. A multidão avança como um vendaval. Me joga na avenida, que eu não sei qual é. Mas vocês sabem.”

Bonita foi também a mensagem de voz que Elza Soares gravou para as Fado Bicha. Um dos produtores da diva brasileira, que morreu no início do ano, tinha ido assistir a um dos concertos que o duo deu em São Paulo, no final de 2019. Depois da atuação, Juliano Almeida foi falar com Lila Tiago e João Caçador. Em todos os concertos, tinham cantado a canção, dela, “A Mulher do Fim do Mundo”. “Veio ter connosco e disse-nos que tinha feito vários vídeos. Estava muito emocionado”, contou Lila Tiago, de telemóvel na mão a deslocar-se no aeroporto. “Num dos concertos que demos no Rio, ele foi ver outra vez.”

No Rio de Janeiro, Juliano Almeida foi ter de novo com as Fado Bicha e deu-lhes dois discos autografados da mulher-furacão que sempre advogou pela liberdade sexual da mulher e do ser humano, cujos libretos tinham inclusive beijos seus dados com batom vermelho. Almeida disse que ela tinha respondido, assim – pôs um áudio no telemóvel a tocar –, aos vídeos das atuações que ele lhe tinha mandado: “Lila, João, meu chão não é nada além de Carnaval, é lágrima de samba na ponta dos pés. A multidão avança como um vendaval. Me joga na avenida, que eu não sei qual é. Mas vocês sabem.”

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