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Nem sempre bem compreendidas, as regras do fair play financeiro da UEFA, que têm ajudado a equilibrar as contas dos clubes europeus, são frequentemente sujeitas a equívocos. O que é que conta, na verdade, para estas regras? E o que é que justifica uma sanção da UEFA? O que é que está definido agora, em contexto de pandemia? E estão os três grandes clubes portugueses em risco?
O arranque da época é, sem exceção, um dos momentos mais frenéticos para os plantéis de FC Porto, Benfica e Sporting, porque o mercado tem sido a principal ferramenta ao alcance dos três principais clubes portugueses para equilibrarem as contas e manterem-se afastados das sanções da UEFA.
As receitas televisivas em Portugal não têm comparação com as maiores ligas europeias, nem tão pouco a bilheteira, o merchandising ou os patrocínios, e os muitos milhões da Champions League, que não chegam a todos, fazem soar as campainhas quando fogem numa só mão — o Futebol Clube do Porto fica agora sozinho, depois da eliminação do Benfica em Salónica.
A pandemia veio colocar areia na engrenagem, e cada caso é um caso, mas, para cumprirem as regras, as Sociedades Anónimas Desportivas (SAD) dos três “grandes” estão condenadas a vender bem, rápido e sem parar.
Os “grandes” podem ficar em risco este ano?
Se é verdade que as contas dos grandes clubes portugueses têm apresentado desafios (já lá iremos), é preciso ter em conta que a pandemia não trouxe apenas quebra de receitas aos clubes europeus. Compreendendo o caráter muito particular do momento, a UEFA abriu uma exceção para a época que acabou e flexibilizou as regras do fair play financeiro, que só terão de ser verdadeiramente cumpridas no final desta época (2020/21).
O que é que significa na prática para quem já tinha problemas com estas regras é outra questão, que ainda está por responder, tendo em conta que a UEFA garantiu que vai “proteger o sistema contra potenciais abusos”.
Ou seja, quem não cumprir as regras não poderá usar a pandemia como pretexto para aumentar a despesa de forma descontrolada, tirando dessa forma vantagem sobre os rivais. Além de continuar a “garantir que os clubes continuam a cumprir os prazos das obrigações relativamente a transferências e salários”, a organização que manda no futebol europeu diz claramente que quer “manter o espírito e o objetivo do fair play financeiro”, prometendo “lidar com o verdadeiro problema, que é a quebra de receita por causa da Covid-19 e não a má gestão financeira”.
Além de não poderem ter pagamentos em atraso a trabalhadores e outros clubes (o que já valeu uma sanção no passado ao Sporting e ao Sporting de Braga), o fair play financeiro da UEFA implica um relativo equilíbrio entre receitas e despesas, de forma a evitar a acumulação de dívida e garantir que ela é sustentável. Os clubes não podem gastar muito mais do que as receitas que geram (o que, em momentos diferentes, tanto Sporting como FC Porto infringiram).
Na prática, esta regra de ouro da estabilidade financeira da UEFA — o break-even — permite apenas aos clubes perdas de cinco milhões de euros no acumulado de três épocas (embora despesas com estádios, campos de treino, formação e futebol feminino não contem para este efeito). E, no limite, o saldo pode ser negativo até 30 milhões de euros (sempre em três épocas), se essas perdas forem cobertas pelos principais acionistas.
As contas dos clubes são analisadas todos os anos e se entrarem no radar da UEFA podem incluir sanções, que vão de simples avisos a multas pesadas, ou mesmo a proibição de participar nas competições europeias. Só que as épocas da pandemia serão diferentes, com a flexibilização desta regra, que é aplicada desde 2013/14. Os relatórios e contas dos dois exercícios (2019/2020 e 2020/21) serão avaliados como se de um só se tratasse.
FC Porto tem novo balão de oxigénio?
Ao contrário de Benfica e de Sporting, as contas da SAD do Porto da época passada são uma incógnita. Sem ter apresentado ainda o relatório e contas, há alguma expectativa para perceber até que ponto é que as contas da administração divergiram ainda mais este ano das exigências da UEFA.
A SAD portista tem-se mantido sob monitorização das autoridades europeias desde que, em junho de 2017, o FC Porto chegou a acordo com a autoridade do futebol europeu para equilibrar as contas — uma prática comum no âmbito do fair play financeiro. Não foi conseguido o cumprimento das regras do break-even depois de apresentar 79 milhões de euros de perdas no conjunto de três épocas: 40,7 milhões de euros de prejuízos em 2013/14, seguidos de lucros de 19,9 milhões em 2014/15 e outros 58,4 milhões de perdas em 2015/16.
Por essa razão, teve de pagar uma multa simbólica (700 mil euros) e prometer à UEFA que “o resultado agregado do break even para as épocas 2017/18, 2018/19 e 2019/20 seja um excedente ou um défice dentro do desvio aceitável”, como se pode ler no relatório e contas anual da época passada.
Mas as implicações foram, na verdade, mais vastas, porque em algumas épocas o saldo entre compras e vendas de jogadores teria de ser positivo (o que levou o FC Porto a praticamente não contratar na primeira época de Sérgio Conceição); porque foram impostas restrições salariais (em função das receitas); e porque foi limitado o número de jogadores que podem ser inscritos em cada ano na Liga dos Campeões — em vez dos habituais 25, foram 22 em 2017/18 e 23 a partir de 2018/19. O acordo previu ainda que a multa pudesse ter um acréscimo de 1,5 milhões de euros, se o clube continuasse a não cumprir.
Três anos depois, a SAD portista ainda não conseguiu resolver o problema. O Comité de Controlo Financeiro de Clubes anunciou no mês passado que o FC Porto cumpriu “apenas parcialmente os objetivos definidos para a temporada de 2019/20”, e que, como tal, os “condicionamentos desportivos previstos no acordo estabelecido [em 2017], como a limitação do número de jogadores da Lista A [para a Liga dos Campeões] e as restrições a jogadores recém-transferidos, irão continuar a ser aplicadas em 2020/21”.
No mesmo comunicado, o organismo esclareceu que Galatasaray (Turquia), Kairat Almaty (Cazaquistão), Maccabi Tel Aviv (Israel) e Cluj (Roménia) cumpriram os objetivos acordados para a época de 2019/20” e que Lille (França), İstanbul Başakşehir (Turquia) e Wolverhampton (Inglaterra) falharam no cumprimento da regra do break-even. O FC Porto foi o único que ficou a meio caminho.
Para as contas da época que agora acabou, o FC Porto preferiu uma estratégia de risco. Após ter falhado os milhões da Champions na derrota contra o Krasnodar, que teriam representado mais de 40 milhões de euros, o FC Porto decidiu não vender jogadores no passado mercado de inverno, tornando-se inevitável o saldo bem negativo no final do primeiro semestre, de 52 milhões de euros. Se esse resultado fosse repetido na segunda parte da época, haveria cerca de 100 milhões de euros em prejuízos — mas nesta equação ainda não estão sequer as contas da pandemia.
Na altura, na sequência do relatório apresentado a 29 de fevereiro, adivinhava-se por isso uma pequena revolução no plantel (ou a venda precoce de “pérolas” da formação) ainda antes de a época fechar, para que o conjunto dos três anos batesse certo com o fair play financeiro.
Isto porque, nos dois exercícios anteriores, a SAD do FC Porto tinha já acumulado um total de 19 milhões de euros de prejuízo (saldo negativo de 28,4 milhões em 2017/18; e positivo de 9,5 milhões em 2018/19). Logo, nesta época, em condições normais, teria de apresentar lucros de aproximadamente 14 milhões de euros, para ter break-even no final dos três anos (tendo em conta o desvio de 5 milhões de euros admitido pela autoridade do futebol europeu). Ou, no caso de o clube (o principal acionista) injetar o dinheiro em falta na SAD, poderia apresentar prejuízos adicionais em torno dos 11 milhões de euros. Uma ressalva apenas para os gastos relacionados com o estádio ou a formação, por exemplo, que podem ser retirados da equação, mas que nunca terão um valor comparável ao problema identificado nas contas do FC Porto.
Em outubro do ano passado, quando apresentou o orçamento para a época, a administração da SAD do FC Porto previa lucros marginais, de 150 mil euros, contando com a contribuição de 77,9 milhões de euros em mais-valias na transferência de jogadores. E, embora o relatório do primeiro semestre não tenha atualizado esses valores, a sociedade voltaria a reconhecer o problema: “Apesar do resultado apresentado ao semestre não permitir a estimativa de fecho das contas anuais, devido à sazonalidade que se verifica no registo de diversos custos e proveitos, perspetiva-se a necessidade de efetuar um valor considerável de mais-valias de transferências para que a Sociedade consiga atingir um resultado positivo no final da época”.
As vendas de jogadores acabaram, no entanto, por não ser feitas até ao final da época. A transferência de Fábio Silva para o Wolverhampton por 40 milhões de euros, dos quais apenas 30 milhões em mais-valias, foi já feita em setembro, tal como a de Vítor Ferreira para o mesmo clube (que implicará uma verba de 20 milhões no final da época).
Sem vendas, o FC Porto não conseguirá fechar o conjunto das três épocas com um resultado financeiro que mereça a aprovação da UEFA. Só que, como o mundo mudou com a pandemia — que começou a ganhar forma apenas meio mês depois da apresentação do relatório e contas portista —, a UEFA anunciou a flexibilização das regras em meados de junho.
E o FC Porto deverá aproveitar a boleia. Fernando Gomes, administrador financeiro da SAD, deixou essa porta aberta já em abril, antes de a UEFA ter anunciado a flexibilização das regras. “Nos contactos que eu e o presidente vamos mantendo, e que vêm de antes da pandemia, foi-nos dito que não haverá alteração à legislação do fair play financeiro, mas que este contexto anormal será tido em consideração”, disse em entrevista ao jornal O Jogo. “Não corremos o risco de ser penalizados desde que provemos uma relação entre a pandemia e as nossas dificuldades, coisa que não será difícil”.
As certezas de Fernando Gomes podem, no entanto, esbarrar nos avisos da UEFA, que garantiu que o “desconto” seria dado quando os problemas fossem provocados pela quebra de receita no contexto da pandemia. No caso do FC Porto, as contas já vinham com desequilíbrio de épocas anteriores e, sobretudo, do primeiro semestre da última época, cujo relatório foi revelado ainda no final de fevereiro. Além disso, apesar de ser ainda desconhecido o efeito direto da pandemia nas receitas de bilheteira, de televisão e de merchandising da SAD do FC Porto, se se aproximar ao do Benfica estarão em causa não mais do que 15 milhões de euros, muito longe dos valores que seriam necessários para cumprir as regras.
Por outro lado, o FC Porto poderá sempre argumentar que a pandemia fez “congelar” em grande medida o mercado de transferências este verão, num contexto em que a época terminou muito mais tarde do que o habitual. Essa janela de transferências, que seria a derradeira oportunidade para equilibrar as contas antes do fecho da época — depois de uma estratégia de risco que deu frutos desportivos, com a conquista do campeonato em julho —, não pôde ser verdadeiramente aproveitada pelo FC Porto, o que poderá ser levado em conta pela UEFA.
Admitindo que a sociedade portista consiga que as duas épocas sejam analisadas em conjunto, terá sempre de fazer muitas mais-valias com jogadores para conseguir equilibrar as contas dos dois anos — e já tendo em conta que garantiu o “jackpot” da Liga dos Campeões desta nova época, com, pelo menos, perto de 50 milhões de euros.
Além das vendas de Fábio Silva e Vítor Ferreira, dois jogadores da formação, nos últimos tempos têm sido noticiadas as possíveis transferências de Alex Telles, de quase toda a frente de ataque da época passada (Tiquinho Soares, Zé Luís e Aboubakar — estes dois últimos nem sequer foram inscritos na Liga) e até de Corona, considerado o melhor jogador do campeonato no ano passado. Podem sair até 5 de outubro, a data tardia de fecho de mercado, por causa da pandemia.
O FC Porto até pode preferir esperar, nalguns casos, pela janela de janeiro ou mesmo de junho, no limite do fecho das contas, mas muitos dos dossiers têm de conhecer uma resolução rápida, como Alex Telles, Otávio, Sérgio Oliveira, Marega, Aboubakar e Tiquinho Soares, todos a um ano do fim do contrato.
Se o FC Porto não quiser que aconteça o mesmo que no verão passado, em que Brahimi, Herrera e outros jogadores saíram a custo zero, a SAD portista terá de conseguir renovar (sob pressão) ou vender para ter alguma rentabilização financeira. De acordo com o Transfermarkt, estes jogadores valem no total 100 milhões de euros, com destaque para Alex Telles (40 milhões), Marega (20 milhões) e Otávio (18 milhões).
Como venderá o Sporting sem Bruno Fernandes?
Embora sem tanta ambição no campeonato e na Europa, a situação do Sporting é bem mais tranquila do que a do FC Porto no capítulo do fair play financeiro. É verdade que o resultado positivo de 12,5 milhões de euros na última época não permite à SAD sportinguista evitar um acumulado de perdas no valor de 15 milhões de euros em três anos (se juntarmos os prejuízos de 7,8 milhões em 2018/19 e de 19,9 milhões de euros em 2017/18).
Só que, além dos resultados líquidos, a UEFA ainda permite descontar rubricas como o investimento em estádios, campos de treino, formação e futebol feminino, o que deverá deixar os leões em terreno seguro. A UEFA não considera estas rubricas para “encorajar investimento e gastos em infraestruturas ou atividades que beneficiem o clube a longo-prazo”. No caso do Sporting, em que os prejuízos acumulados ficam apenas a 10 milhões de euros do desvio aceitável, deverá fazer a diferença.
Há ainda o impacto da pandemia, que custou ao Sporting 6,9 milhões de euros na última época, entre direitos televisivos, bilhetes de época, camarotes, publicidade e merchandising, embora este valor tenha sido mitigado em mais de metade (3,9 milhões) pelo lay-off de funcionários e jogadores do clube e pelo corte em gastos de fornecedores.
Na última época, os resultados financeiros foram positivos graças à transferência de Bruno Fernandes para o Manchester United, a maior da história do clube (por 55 milhões de euros mais variáveis), a que se juntaram ainda as vendas de Raphinha e Thierry Correia, num total 107 milhões de euros de rendimento com transações de jogadores. Descontando comissões e outros gastos com essas vendas (-18 milhões), a amortização dos jogadores comprados (-23 milhões), o resultado normal da operação sem contar com compra e venda de jogadores (-39 milhões) e os juros com a dívida (-15 milhões), sobraram de lucro 12,5 milhões de euros.
Para esta época, condicionada pela pandemia, não se deverá esperar melhorias nas principais rubricas de receitas e gastos — só em bilheteira e lugares cativos, por exemplo, estão em xeque 15 milhões de euros. O Sporting deverá precisar, por isso, de vender pelo menos tanto como no ano passado, não tendo nenhum Bruno Fernandes nas suas fileiras. Os jogadores mais valorizados, segundo o Transfermarkt, são Wendel, Jovane Cabral e João Palhinha (que pode estar já de saída), mas com apostas em jogadores sub18 com potencial (como Nuno Mendes ou Eduardo Quaresma) e em jogadores como Pedro Gonçalves ou Nuno Santos, o Sporting poderá ter no final da época outras opções para equilibrar as finanças.
Para já, a SAD sublinha, no relatório e contas, que “não são percecionados riscos relevantes nesta área” do flair play financeiro, apontando como principais critérios monitorizados “a inexistência de dívidas vencidas e não pagas” a outros clubes no âmbito de transferências de jogadores, a trabalhadores, a jogadores e ao Estado.
Estas referências são feitas após o Sporting ter evitado recentemente um litígio com o Braga, por causa de dívidas em atraso relativas à transferência do treinador Ruben Amorim; e dois anos depois de ter tido atrasos em pagamentos de cerca de sete milhões de euros (cinco milhões ao Estado e outros dois a clubes).
Esse processo, de 2018, chegou a deixar em perigo a participação do clube nas competições europeias no ano seguinte — houve uma recomendação nesse sentido por parte do investigador do organismo de controlo financeiro da UEFA —, mas tudo acabou com uma multa de 50 mil euros.
Pelo meio, a SAD alegou motivos de “força maior” — o ataque de Alcochete — para não ter pago aquelas verbas em tempo útil. “O Sporting pediu para não ter qualquer sanção, invocando motivos de força maior, numa referência à invasão da academia do clube em maio de 2018”, pode ler-se na decisão do organismo de controlo financeiro da UEFA. Argumentos que foram rejeitados.
Três anos antes, em 2015, esteve em causa o break-even, com contornos semelhantes ao do FC Porto, com a limitação de jogadores nas competições europeias e a possibilidade de multa até 2 milhões de euros.
Vai o Benfica voltar a abdicar dos jovens?
Sem Liga dos Campeões pela primeira vez numa década, e com uma pandemia que roubará um pouco mais de receita, o Benfica trava a fundo, depois do maior investimento de que há memória no plantel — com Luca Waldschmidt (que custou 15 milhões de euros), Pedrinho (18 milhões), Everton Cebolinha (20 milhões) e Darwin Nunez (24 milhões euros), a maior contratação de sempre do futebol português. Aliás, todos eles entram para o top 10.
Em todo o caso, dificilmente a SAD benfiquista terá problemas com o fair play financeiro, quer na época que passou como naquela que está a começar. Uma análise aos relatórios e contas do Benfica permite concluir que o lucro acumulado nos últimos três anos atinge os 90 milhões de euros, com 20,3 milhões em 2017/18, outros 28 milhões em 2018/19 e ainda 41,7 milhões em 2019/20 (resultado que se aproxima do recorde de 44,4 milhões de euros de 2016/17). E nas contas para o fair play financeiro de 2020/21 o Benfica levará como almofada 69,7 milhões euros.
A questão é que o resultado do ano passado foi conseguido, em grande medida, porque o Benfica transferiu João Félix para o Atlético Madrid — e ainda Raul de Tomás (com passagem muito breve), Carrillo e Salvio (ambos no início da época, sem grande espaço no onze do Benfica). No total, os resultados com vendas de jogadores (já só tendo em conta mais-valias e descontando comissões) superaram os 121 milhões de euros.
Na última década, só é possível encontrar um resultado semelhante em 2016/17 (123 milhões de euros), mas nessa época saíram Gonçalo Guedes, Ederson e Lindelof (três titulares), e ainda Hélder Costa. O resultado com vendas que mais se aproxima depois daqueles dois exercícios rondou os 80 milhões de euros nas épocas de 14/15 e 15/16, ou seja, 40 milhões de euros a menos de mais-valias.
Sem espaço nas opções iniciais de Jorge Jesus, é Carlos Vinicius quem se perfila para ser transferido à primeira oportunidade. O melhor marcador do campeonato passado (com bem menos minutos do que os outros) terá mercado em várias ligas europeias, mas a expectativa de retorno gerada (para um jogador que custou 17 milhões de euros) não vai ao encontro dos apetites dos grandes clubes europeus em tempo de pandemia.
A imprensa desportiva noticia que Luís Filipe Vieira tem propostas de 45 milhões de euros em cima da mesa. Depois da hecatombe na Liga dos Campeões talvez não consiga recusar, porque o mercado está “congelado”, com poucos compradores disponíveis — pelo menos para já — a repetir os números astronómicos de há uns meses.
Dito isto, tendo em conta a escala de vendas necessárias, não deverá ser apenas Vinicius a sair, até porque o plantel dos encarnados é ainda muito extenso (e ainda mais sem Liga dos Campeões).
O que o Benfica perde este ano, ao cair na 3ª pré-eliminatória da Liga dos Campeões, corresponde essencialmente ao lucro do ano passado (se bem que uma boa campanha europeia poderia render muito mais dinheiro). Isto significa que continuaria a precisar de fazer um dos melhores resultados em vendas da sua história para não ter prejuízo esta época, mesmo se tivesse condições semelhantes às do ano passado, o que dificilmente será o caso — haverá perdas potencialmente maiores com a pandemia e, tendo em conta o investimento feito, um aumento com salários e das amortizações dos passes de jogadores.
Para atingir aquele resultado não faltam, no entanto, ativos com elevado valor no plantel do Benfica. Segundo o Transfermarkt, 16 jogadores valem pelo menos 10 milhões de euros (e destes, sete valem pelo menos 20 milhões). É aqui que entram também os jogadores da formação.
Primeiro, porque alguns deles, como Florentino ou Ferro foram valorizados na primeira equipa do Benfica (apesar de não terem garantido espaço no onze na época passada). O defesa central é avaliado pelo Transfermarkt em 11 milhões de euros e o médio em 18 milhões, mas, se acabarem por sair, será necessariamente por mais (assim as condições do mercado o venham a permitir até ao final da época, em junho do próximo ano).
Depois porque os jogadores da formação valem, de facto, tendencialmente mais do que os outros para a contabilidade dos clubes. Para compreender os valores das mais-valias de transferências, é necessário ter em atenção que não coincidem necessariamente com o preço a que os jogadores são vendidos. As mais-valias descontam não só percentagens do passe detidos por terceiros como também, entre outros, o valor contabilístico do jogador aquando da venda.
Quando é comprado, o passe de um jogador faz aumentar os ativos no exato valor de compra. Mas o valor contabilístico vai sendo amortizado de forma proporcional enquanto durar o contrato. Por exemplo, se tiver custado 10 milhões de euros, num contrato assinado a cinco cinco anos, vai desvalorizando dois milhões de euros por ano. E no momento da venda, ao valor bruto é descontado o montante que faltar amortizar.
Diferente é a circunstância da generalidade dos jogadores da formação, em que, no momento da transferência, não há normalmente lugar a descontos do valor contabilístico. Como não têm qualquer custo de compra associado, valem zero nas contas, tornando-se mais tentadora as suas vendas para as administrações das SAD.
Então e o Benfica não estava aflito com salários?
Muita tinta correu sobre o facto de o Benfica ter ficado no limite do rácio entre salários e receitas. No entanto, ao contrário do que foi amplamente referido nos media e nas redes sociais, esta é apenas uma recomendação da UEFA, não implicando uma intervenção como as regras do break-even e das dívidas em atraso. Serve de alerta para a UEFA, se ultrapassado, tal como a relação entre a dívida líquida e as receitas, mas nenhum clube europeu teve alguma vez problemas especificamente por causa desses dois rácios. Quando muito — e foi esse o caso do FC Porto — a UEFA pode obrigar os clubes a cumprirem esse indicador se já tiverem sido apanhados na malha disciplinadora das autoridades do futebol europeu.
Em causa está uma comparação entre os salários pagos pelo clube e as receitas operacionais que recebe, sem contar com transferências de jogadores. Deveria ser de 70% no máximo, pela bitola das autoridades do futebol europeu, e o Benfica ficou com 69%, mesmo no limite.
Isso não significa, no entanto, que seja um indicador irrelevante para a indústria do futebol. Pelo contrário, uma vez que são as receitas operacionais que — salvo hecatombes como esta pandemia — garantem estabilidade financeira dos clubes.
Em Portugal, segundo um relatório da Deloitte, este indicador rondava os 75% há duas épocas no conjunto dos clubes da Primeira Liga. E apesar de estar em patamares semelhantes de outras ligas europeias, como a Rússia (70%), a Suécia (71%), a Polónia (74%) ou a Turquia (79%), a liga portuguesa compara muito mal com belgas (49%), holandeses (57%), noruegueses (58%), austríacos (63%), escoceses (65%) e dinamarqueses (64%).
Já para não falar das maiores ligas europeias, com a Premier League inglesa (61%), a La Liga espanhola (62%), a Bundesliga alemã (54%) a darem o exemplo. No outro lado da moeda, os campeonatos de Itália (70%) e de França (73%) estão mais próximos de Portugal.
De Inglaterra também chegam maus exemplos, com o Everton a ter um rácio de 85% em 2018/19, o Leicester 83% e o Bournemouth 85%. Entre os gigantes da Premier League, apenas o Chelsea tocava no limite de 70%, com os restantes a ficarem entre 56% e 60%, à exceção do Tottenham, que teve um rácio impressionante de 39%, o mais baixo da liga, no ano em que chegou à final da Liga dos Campeões.
Fora da alta roda europeia, nada parece bater o caminho de descontrolo que leva a competitiva segunda liga inglesa. O Championship tem uma proporção de salários em função de receitas (sem vendas de jogadores) que atinge os 107%.
Podem os clubes ser menos “viciados” em transferências?
Em Portugal, o cumprimento das regras do fair play financeiro tem passado necessariamente pela venda de jogadores, mas, para todos os efeitos, esta deveria ser uma fonte de receita apenas complementar e não uma dependência. A sustentabilidade dos clubes deveria assentar em receitas estáveis e previsíveis.
Num mundo ideal — em que se vão exibindo algumas das principais ligas europeias — os gastos com salários, fornecimentos externos e outras rubricas são cobertos integralmente pela bilheteira, merchandising, patrocínios e outras receitas operacionais. Nesse cenário, o saldo das compras e vendas de jogadores até poderia ser negativo quando o dinheiro recebido na milionária Liga dos Campeões o permitisse.
Mas essa não é realidade portuguesa. Dependendo em grande medida de vendas de jogadores para equilibrar as contas, os três grandes — com diferenças substanciais entre cada um deles — praticam todos os anos uma desgastante “ginástica” financeira, com especial incidência nas janelas de transferência, tendo em vista a venda não só dos dispensáveis, mas também dos maiores craques do momento.
Assim “voaram” na última década — e a valores elevados — alguns dos melhores jogadores da liga portuguesa, como James Rodriguez, Hulk ou Falcao no FC Porto, João Félix, Ederson ou Di Maria no Benfica, Bruno Fernandes ou João Mário no Sporting, só para dar alguns exemplos entre os mais caros.
Tendo em conta a pouca capacidade para impulsionar outro tipo de receitas e o esforço salarial que os três grandes fazem para vencer o campeonato e tentar não descolar do pelotão europeu, não admira que a venda de jogadores esteja no centro do modelo de negócios dos três grandes. É esta a derradeira tábua de salvação que tem permitido aos grandes clubes não terem problemas (ainda) maiores com as regras do fair play financeiro.
Artigo atualizado segunda-feira, 21 de setembro