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“Fake News”. Depois dos EUA, o “rastilho de pólvora” chega às eleições no Brasil

As mentiras espalhadas na internet moldaram a eleição americana e ameaçam agora o Brasil. Imagens falsas e teorias da conspiração propagam-se à velocidade da luz na "caixa negra" que é o WhatsApp.

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“Ao completar 5 anos de idade, a criança passa a ser propriedade do Estado! Cabe a nós decidir se menino será menina e vice-versa! Aos pais cabe acatar nossa decisão respeitosamente! Sabemos o que é melhor para as crianças!” As frases, rematadas com pontos de exclamação, surgem por cima da cara de Fernando Haddad, o candidato do Partido dos Trabalhadores (PT) a esta eleição presidencial. A imagem foi partilhada no Facebook, tendo recebido milhares de comentários e ‘gostos’ e em apenas algumas horas tornou-se viral. O problema? Fernando Haddad nunca disse tal coisa.

Horas depois do ataque a Jair Bolsonaro, candidato de extrema-direita com vantagem nas sondagens, uma mensagem começou a circular no WhatsApp com um aviso: “Fato comprovado: Jair Bolsonaro FORJOU o atentado contra si mesmo para ganhar o coração dos eleitores indecisos. Os indivíduos envolvidos foram avisados, às 13:00 do dia 6 de Setembro (um dia antes da independência do Brasil para gerar mais comoção)”. Este era o início da mensagem, que passava depois a explicar todos os detalhes de como toda a farsa teria sido fabricada e de como Bolsonaro não estaria sequer ferido — algo que a realidade desmente claramente.

Estes são alguns dos exemplos mais mediáticos das histórias falsas que têm circulado na internet em vésperas da primeira volta da eleição presidencial. Mas estão longe de ser os únicos. Há a imagem alterada digitalmente para fazer a líder do Partido Comunista do Brasil, Manuela D’Ávila, ter tatuagens de Lenine e Che Guevara. Há a montagem com a cara de Flávio Bolsonaro, filho do candidato do Partido Social Liberal (PSL), e a frase “Se um pai tira a vida de um filho gay, é uma questão familiar. Não acho que o Estado se deva intrometer ou julgar a atitude de um pai desesperado”. E há até um post que utiliza uma imagem da líder do Bloco de Esquerda em Portugal, Catarina Martins, para ilustrar um suposto pedido da “Europa” à ONU para que ajude Lula da Silva — que nunca aconteceu.

“A lógica das redes está a ser tomada pela radicalidade”, resume ao Observador Amaro Grassi, analista da Diretoria de Análise de Políticas Públicas, da Fundação Getúlio Vargas, órgão que tem monitorizado atentamente as interações sobre política na internet. “Temos acompanhado bem de perto o que acontece nas redes em geral sobre as eleições, já há mais de dois meses. O que conseguimos afirmar por agora é que existe de facto muita informação falsa ou manipulada a circular pela web.”

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Brasil, terreno fértil para as fake news

O termo fake news popularizou-se após as eleições presidenciais norte-americanas de 2016 — as mesmas em que o Facebook se viu envolvido no escândalo da Cambridge Analytica, onde 50 milhões de perfis de utilizadores foram aparentemente utilizados para influenciar politicamente a eleição. A expressão é utilizada até por políticos como Donald Trump, com uma definição que engloba geralmente todas as notícias ou meios de comunicação com informação com que o Presidente não concorda ou que acha duvidosa; mas ficou também inevitavelmente ligado às informações comprovadamente falsas que circulavam nas redes com o objetivo de influenciar a eleição.

O caso da Cambridge Analytica levou à audição de Mark Zuckerberg, presidente do Facebook, no Congresso americano (SAUL LOEB/AFP/Getty Images)

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O fenómeno não é exclusivo dos Estados Unidos, como a eleição no Brasil comprova. Segundo um estudo da empresa de software brasileira PSafe, só no primeiro trimestre deste ano quase 9 milhões de brasileiros tiveram contacto com notícias ou informação falsa que circulava nas redes. Com o aproximar da data da eleição, esse número tem tendência a aumentar. Não é, por isso, de admirar que o Brasil surja em terceiro lugar no ranking dos países com mais exposição a notícias falsas, elaborado pelo Reuters Digital News Report, ficando apenas atrás da Turquia e dos EUA.

Maurício Moraes é jornalista e trabalha na Agência Pública, um site especializado em jornalismo de investigação, desde 2013. Um ano depois de se ter juntado ao projeto, a propósito das eleições presidenciais que deram a reeleição a Dilma Rousseff, a Agência decidiu criar o projeto Truco, especializado em fazer fact checking. Moraes foi escolhido para trabalhar como editor do projeto e não hesita em afirmar que nota um aumento da informação falsa a circular nesta eleição quando comparada com a de 2014: “É muito diferente. Naquela altura não se ligava tanto a conteúdos com desinformação como agora. Nós como site não nos especializamos tanto nos boatos, fazemos mais verificação das declarações dos candidatos, mas notamos um grande crescimento das notícias falsas”, afirma.

“Acho que este é um problema que acontece no mundo todo. Vimos isso nos EUA, no Reino Unido com o Brexit… Aqui está mais intensificado agora por causa do processo eleitoral. Nós temos uma situação específica de grande descrédito com a política que talvez favoreça esse processo”, admite o jornalista. Contudo, Maurício considera que o Brasil não é diferente dos outros processos. “As notícias falsas sempre existiram. Só que hoje é mais fácil disseminá-las rapidamente e pode ser mais fácil usá-las politicamente.”

O Brasil pode ser um país igual aos outros, mas não há dúvidas de que o tal descrédito político — agravado recentemente pelo processo Lava Jato, o impeachment de Dilma e a prisão de Lula da Silva — pode contribuir e muito para tornar o país terreno fértil para as fake news.  Segundo um estudo da Ipsos, o Brasil é o país do mundo, entre os 27 analisados, onde mais se acredita em notícias falsas. E mais: a grande maioria dos brasileiros interrogados tem receio de que o seu voto seja influenciado por este fenómeno.

Quem são os rostos por trás do fenómeno nas redes?

Oficialmente, todas as campanhas de candidatos políticos no Brasil negam estar envolvidas em fenómenos deste tipo. “O uso de bots, spam, etc., são coisas muito disseminadas em todos os cantos políticos. O que faz é diferença é que, como no caso da mensagens que circulam pelo WhatsApp, por exemplo, é tudo muito orgânico”, resume Grassi. “Não são grupos geridos pelas campanhas, mas sim por grupos de apoiantes. É muito descentralizado.”

Os apoiantes de Jair Bolsonaro, candidato da extrema-direita, são dos mais ativos nas redes sociais (CARL DE SOUZA/AFP/Getty Images)

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São o que Maurício chama de “grupos mobilizados”. “Há boatos vindos de todos os lados, mas pelo que observamos nas redes, vemos maior quantidade de informação falsa vindo do campo de Bolsonaro”, reconhece. O candidato que começou como piada e que agora segue à frente nas sondagens — e a crescer — goza do apoio de grupos de militantes altamente mobilizados, como concluiu o projeto Eleições Sem Fake, ligado à Universidade Federal de Minas Gerais. No estudo, o grupo observou a atividade de 272 grupos no WhatsApp que discutem política e concluiu que os apoiantes de Bolsonaro “monopolizam” muitos dos debates.

Bolsonaro, o militar que começou como piada e acabou como Presidente

“Bolsonaro compara-se a Donald Trump e também há semelhanças entre os seus apoiantes e os de Trump. Ambos usam este tipo de estratégia que usa emocionalmente as pessoas”, afirma Moraes, sublinhando no entanto que há apoiantes de todas as campanhas a produzir “conteúdo questionável”.

Empiricamente, parece haver mais conteúdo que visa manchar o candidato do PT, Gerald Alckmin ou Ciro Gomes, em vez de ataques a Bolsonaro. Mas eles também existem. No passado sábado, por exemplo, como conta a edição brasileira do El País, três apoiantes do PT invadiram o grupo público do WhatsApp chamado “Mulheres de Bem” (de simpatizantes do candidato do PSL) e enviaram 500 mensagens em quatro horas com imagens pornográficas e fotos de candidatos do PT. No dia seguinte, foram expulsos do grupo.

WhatsApp, a “caixa negra da informação” no Brasil

O padrão pode ser semelhante ao utilizado por alguns apoiantes de Donald Trump nos Estados Unidos, mas há um elemento no caso brasileiro que destoa por completo do cenário norte-americano: o principal veículo de divulgação da informação falsa não é o Facebook, nem sequer o Twitter. É o WhatsApp, que, no Brasil, conta com 120 milhões de utilizadores.

O aumento do uso de smartphones no país tem sido acompanhado por uma explosão de utilização da aplicação, sendo atualmente o Brasil o segundo país do mundo onde mais se utiliza o WhatsApp — 76% dos assinantes móveis conversam através da aplicação. O problema é que, com o crescimento da aplicação, cresceram também as fake news: segundo o estudo da PSafe, 96% das notícias falsas disseminadas no primeiro trimestre deste ano foram divulgadas através do WhatsApp.

“O WhatsApp é uma rede fechada, encriptada, e é simplesmente impossível monitorizá-la”, resume o investigador Grassi. “Conseguimos tomar conhecimento das coisas que circulam em alguns grupos ou porque fazemos parte deles, ou porque são abertos ou porque as notícias falsas são postas em canais de denúncias. Mas é tudo muito pontual, não dá para ter noção do universo.” É, como resume Maurício, “uma caixa negra da informação”.

Talvez por compreender isso, e para evitar a mesma má publicidade que o Facebook teve na sequência do escândalo da Cambridge Analytica, a empresa tem tentado tomar medidas para prevenir a disseminação de informação falsa através da aplicação. No dia 27 de setembro, a WhatsApp pagou um anúncio nos jornais Folha de S. Paulo, Globo e Metro com dicas sobre como reconhecer se uma notícia é falsa. “Não partilhe uma mensagem só porque alguém lhe pediu para partilhar”, remata o anúncio.

https://twitter.com/RaphaelChaia/status/1034062151391035393

O fenómeno, contudo, chegou ao Brasil para ficar. Em maio, uma greve de camionistas rebentou de surpresa, sem convocatória pública nem divulgação, cortando estradas e paralisando o país. O protesto foi todo convocado e organizado através do WhatsApp, num movimento de passa palavra. “Foi uma manifestação muito horizontal e rápida”, ilustra Grassi. “É o que se passa com estas eleições, onde temos rastilhos de pólvora que percorrem a rede a uma velocidade impressionante. E é muito difícil prever ou ter uma noção completa do que está a acontecer.”

Os instrumentos de confirmação

O debate provocado pelo tema da informação falsa na eleição americana levou a sociedade brasileira a reagir rapidamente ao problema — de tal forma que, atualmente, existem no Brasil pelo menos nove veículos de fact checking de informação, segundo contas da AFP. Há sites como o Comprova, que resulta de uma união de 17 redações de órgãos de comunicação social brasileiros, e também veículos de checkagem específicos como o Aos Fatos. Para além disso, muitos media brasileiros têm as suas próprias secções de fact-checking: é o caso da Lupa (Revista Piauí), do Fato ou Fake (G1) ou do Truco (Agência Pública), editado por Moraes.

O protesto de camionistas de maio, que paralisou o país, foi convocado através do WhatsApp (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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O dia-a-dia num órgão destes é cíclico. No Truco, a rotina é sempre a mesma: escolher uma frase de um candidato que possa levantar dúvidas, contactar a equipa do político para perguntar quais as fontes que sustentam a declaração e proceder à investigação para verificar o facto, “respeitando sempre a pluralidade e fazendo um ‘rodízio’ — se checkamos um candidato num dia, no dia seguinte seguimos outro”, explica Maurício. Em caso de falsidade, a assessoria do candidato volta a ser contactada para saber se quer retificar a informação. O Truco — que classifica as frases com selos que vão do “Verdadeiro” ao “Falso”, passando pelo “Discutível”, “Exagerado”, entre outros — raramente recebe resposta.

O órgão com a maior equipa, o Comprova, desmente uma média de 11 informações por semana, segundo a AFP. As agências de fact checking desmentem 7 boatos ou frases por semana.

O investigador Grassi considera que a grande quantidade de instrumentos deste tipo não só é positiva como pode servir de inspiração às sociedades civis de outros países, como forma de combater a desinformação nas redes: “Acreditamos que a experiência brasileira vai acabar por servir de referência a outros países. Vem aí a eleição da Argentina, onde se está a desenhar um cenário bem radicalizado também, por exemplo. Tudo indica que aquilo a que estamos a assistir no Brasil vai repetir-se noutros lugares. E a aprendizagem que estamos a ter também pode servir para os outros.

Mais uma volta, mais uma viagem: o papel da desinformação na segunda volta da eleição

Apesar de todos os esforços de combate, não há dúvidas de que, no Brasil, as fake news vieram para ficar, pelo menos no curto prazo. A grande questão é quão determinantes são as campanhas de desinformação e os exércitos de trolls nas redes sociais — são suficientes para influenciar uma eleição?

“Não temos provas disso, até ao momento. Para já, é um [movimento] subterrâneo de notícias falsas que circulam, mas que ainda não sabemos se impactaram de forma mais significativa o processo eleitoral”, resume o especialista da Fundação Getúlio Vargas, recorrendo aos dados científicos.

Num país onde 34% dos brasileiros ainda não têm acesso à internet e onde os que têm são maioritariamente homens dos grandes centros urbanos, a influência das redes sociais na política ainda não chega a todos. Mas há outras formas mais insidiosas de espalhar esta lógica: “As campanhas não usam de forma muito acintosa conteúdos falsos. Mas, por outro lado, temos um candidato que está a pôr em causa a credibilidade dos resultados”, alerta Grassi, referindo-se às declarações de Bolsonaro semelhantes às de Trump em vésperas da eleição. “Isto não é um conteúdo falso, mas é um conteúdo que retira credibilidade a uma eventual vitória de um adversário. Não é fake news, mas é uma narrativa que mina a credibilidade do processo.”

Fernando Haddad (ao centro), candidato do PT, culpa as "fake news" da sua descida nas sondagens (MAURO PIMENTEL/AFP/Getty Images)

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E alguns acontecimentos podem fazer toda a diferença, como alerta Moraes: “Sempre que acontece um fenómeno como o da facada [a Bolsonaro], circula imediatamente muita desinformação. Neste caso, poucas horas depois do atentado, já estava a circular desinformação [de ambos os lados], ou a dizer que não tinha acontecido ou a dizer que tinha sido responsabilidade de certos partidos políticos.” Os dados comprovam isso mesmo: uma semana depois do ataque ao candidato do PSL, o número de bots no Twitter duplicou. A medição sobre a discussão no WhatsApp, contudo, ainda não existe, pelas dificuldades de acesso da própria aplicação.

Quanto mais polarizado o debate, mais os bots e as fake news proliferam. “Favorece quem fala mais alto, quem consegue colocar a hashtag nos trending topics e o debate fica sequestrado”, reconhece Amaro Grassi. O investigador, que passa os dias a navegar entre bots no Twitter, imagens adulteradas no Facebook e teorias da conspiração partilhadas no WhatsApp, como cientista que é recusa-se a afirmar categoricamente que há uma influência direta de todo este fenómeno na eleição, pela falta de “evidência”. Mas não deixa de partilhar um receio: “Vamos entrar numa segunda volta extremamente radicalizada. Aí sim, as coisas podem ficar mais descontroladas”, reconhece, sobre o provável embate entre Haddad e Bolsonaro, de acordo com as sondagens.

O primeiro sinal pode já ter sido dado esta quarta-feira. Depois da divulgação das sondagens mais recentes, que dão conta de uma subida considerável da popularidade de Bolsonaro, contra um aumento significativo da taxa de rejeição de Haddad, o candidato do PT aproveitou uma ronda com jornalistas para explicar assim os resultados: “Há uma enorme campanha no WhatsApp contra mim e a minha família, usando mulheres e crianças, imagens muito vulgares, muito ofensivas. Pelo conteúdo, desconfiamos que seja oriunda de Jair Bolsonaro”, declarou, anunciado a criação de uma linha telefónica para denunciar notícias falsas.

https://www.youtube.com/watch?v=flsXy7TMQ8M

À beira de uma segunda volta com potencial explosivo, Haddad pode ter dado o tiro de partida. Agora, de uma coisa já não parece haver dúvidas: as fake news já são mais do que uma nota de rodapé nesta campanha.

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