Em 1949 o sociólogo Samuel Stouffer cunhou o termo “privação relativa” para descrever o sentimento de frustração do indivíduo por não ter acesso ao mesmo nível de bem estar do que aqueles que o rodeiam. No século XX, os ganhos de produtividade das revoluções agrícola e industrial tinham finalmente retirado o ocidente de uma economia da sobrevivência. Libertos da tirania da sobrevivência, os indivíduos começaram a preocupar-se mais com a sua posição relativa na sociedade. Essa posição relativa passou a ser um factor determinante no seu bem-estar. O crescimento económico e o bem-estar deixaram assim de ter uma relação directa e linear.
A percepção de inferioridade perante os outros afecta o bem-estar do indivíduo, mesmo que as suas necessidades básicas estejam satisfeitas. As últimas décadas são um bom exemplo disso. Em termos materiais, a vida nunca foi tão boa para as classes mais baixas nos países desenvolvidos. Uma família pobre num país desenvolvido típico tem hoje acesso a habitação, alimentação, electrodomésticos básicos e serviços de telecomunicações. Em termos absolutos, está bem acima do que qualquer família de classe média-alta poderia aspirar há poucas décadas.
Apesar disso, nunca os movimentos sociais contra a desigualdade foram tão activos e visíveis. Por isso, o livro de Thomas Piketty [O Capital no Século XXI, edição da Temas & Debates, Círculo dos Leitores] surge na altura certa. Mais do que o ano ou a década certa, o livro surge na geração certa. Esta é uma geração que na sua maioria nunca viveu a tirania da sobrevivência e cujos pais e avós apenas a sentiram de forma tangencial. É por isso uma geração que se pode dar ao “luxo” de ter a desigualdade como problema central nas suas vidas.
Apesar da sua crescente importância, a desigualdade é um tema difícil de tratar para os economistas no actual paradigma académico. Numa disciplina excessivamente focada na representação matemática e na situação de equilíbrio, é complicado introduzir nos modelos uma variável difícil de medir (como o próprio Thomas Piketty assume no seu livro) e cujo valor de equilíbrio é complicado de conceber à priori.
À dificuldade em tratar do tema, soma-se um problema de selecção adversa. Os economistas que aceitam tratar do tema da desigualdade acabam por ser aqueles que, tendencialmente, têm mais ideias preconcebidas sobre o tema. O trabalho académico sobre a desigualdade transforma-se assim num exercício de racionalização de ideias preconcebidas. Este dificilmente será o melhor ponto de partida para um tema tão importante.
Porventura consciente disto, Piketty passa uma boa parte da introdução do livro a tentar afastar essa imagem. Para aqueles que começam a ler o livro na perspectiva de encontrar um tratado ideológico, a desilusão vem logo nas primeiras páginas, quando Piketty afirma taxativamente que a desigualdade não é um mal em si mesmo desde que seja justificada. Piketty não desenvolve o conceito, deixando ao leitor a liberdade de definir qual o nível de desigualdade que pode ser justificado.
O livro expõe depois um extraordinário trabalho de 15 anos de pesquisa sobre a evolução da desigualdade e do stock de capital ao longo de 3 séculos. Os dados demonstram como a concentração de riqueza cresceu ao longo do século XIX, caindo depois abruptamente no período entre as duas grandes guerras, voltando a subir após os anos 70, para níveis semelhantes aos do século XIX. Os dados contam uma história intuitiva e as justificações dadas são convincentes.
Menos convincente é a definição de capital que Piketty utiliza nas suas séries, limitando-se a contabilizar activos transacionáveis. Esta definição deixa de fora, entre outros, o capital humano e os “direitos adquiridos”. A exclusão do capital humano retira da análise uma parte do capital não só substancial (a educação tende a consumir 5 a 10% do PIB nos países desenvolvidos) como relativamente bem distribuída. As exclusões são atendíveis por razões metodológicas, mas ficamos sem saber qual teria sido o efeito da sua inclusão, tanto na análise da evolução dos níveis de riqueza como a sua concentração.
A inclusão do capital humano teria sido também útil na análise sobre a evolução da composição de capital. Nesta interessante análise, Piketty explica como o perfil da riqueza se alterou ao longo do século XX: de maioritariamente composta por terrenos agrícolas no século XIX, hoje é essencialmente composta por habitação e activos empresariais e financeiros. A exclusão do capital humano e dos direitos adquiridos dos cálculos pode ter impedido o autor de atingir conclusões ainda mais interessantes sobre a evolução dessa composição.
A tese central do livro é a de que não existe nenhum mecanismo endógeno no capitalismo de correcção da desigualdade. Antes pelo contrário: sem qualquer evento disruptivo como uma guerra e sem políticas activas de redistribuição, o capital tenderá a acumular-se, ganhando um crescente peso na distribuição de rendimentos. A desaceleração do crescimento económico tenderá a amplificar ainda mais esse efeito (embora o autor pareça prestar pouca atenção à ligação entre o retorno de capital e o desenvolvimento económico). Piketty apresenta ainda dados que parecem confirmar a noção intuitiva de que grandes fortunas conseguem atingir retornos de capital superiores à média.
Todos estes factores somados levarão ao que Piketty chama uma “economia de herdeiros”, em que o capital herdado terá uma importância cada vez maior. Apesar de ter uma certa lógica interna, estas conclusões não encontram eco na realidade. Contradizendo a teoria do livro, nos EUA apenas um décimo das 400 maiores fortunas da década de 1982 se mantinham nessa lista em 2012. As grandes fortunas, principalmente as herdadas, tendem a diminuir, dividir-se ou extinguir-se com alguma facilidade (como os eventos recentes em Portugal demonstram).
Para evitar uma “economia de herdeiros”, que o autor considera o oposto do que se pretende de uma sociedade moderna meritocrática, Piketty sugere algumas políticas activas de redistribuição. As recomendações de política económica na quarta e última parte do livro pecam por ser pouco fundamentadas. O leitor não deixará de reparar na profunda diferença de rigor analítico entre esta parte e o resto do livro. Para além de serem extremamente difíceis de aplicar, como o próprio admite, Piketty falha ao não considerar os efeitos negativos das medidas propostas. É difícil afastar a sensação de que estas recomendações já estavam pensadas à priori, e que seriam encaixadas no final do livro, independentemente dos resultados da análise nos capítulos anteriores.
Muitas pessoas irão comprar o livro “O Capital no século XXI” à procura de respostas, mas o livro deixa, acima de tudo, muitas questões em aberto. A justificação para a evolução dos níveis de desigualdade baseada na diferença entre retornos de capital e crescimento económico deixa dúvidas importantes. Os teóricos da Economia Austríaca terão uma palavra a dizer no que toca ao contributo das políticas monetárias das últimas décadas para a concentração do capital financeiro. O facto de os dados recolhidos se terem limitado a países desenvolvidos deixou também grandes dúvidas, nomeadamente a de saber o que aconteceu no resto dos países e no Mundo como um todo. Importa também entender de que forma é que políticas de combate à desigualdade como as que Piketty sugere interferem no crescimento económico.
Um estudo recente da OCDE/Universidade de Utrecht começou a dar respostas a algumas destas questões, lançando uma explicação alternativa para o aumento da desigualdade nos países desenvolvidos: a globalização. O estudo, que inclui dados sobre a desigualdade desde 1820 em todo o Mundo, confirma a visão de Piketty de que a desigualdade cresceu nas últimas décadas nos países desenvolvidos, mas conta uma história diferente para o Mundo.
Desde os anos 70, os níveis de desigualdade a nível mundial estagnaram, colocando fim a um período de aumento contínuo que durava desde 1820. A globalização é factor de desigualde interna nos países desenvolvidos, mas de convergência a nível mundial. A tendência igualitária entre as guerras mundiais identificada por Piketty terá sido causada em boa parte pelo declínio no comércio internacional nesse período.
Assim, a política mais efectiva de combate à desigualdade nos países desenvolvidos poderá ser o levantamento de barreiras ao comércio internacional, que invertam os efeitos da globalização. Mas estas medidas teriam enormes custos em termos de crescimento económico, para além de agravarem o problema de desigualdade a nível mundial. Este é um bom exemplo da necessidade de pensar bem e medir todos os custos antes de lançar políticas activas de combate à desigualdade. Podemos acabar mais iguais, mas mais pobres e desligados do Mundo.
A contribuição da investigação liderada por Thomas Piketty, apesar das falhas que se possam apontar, é extraordinária no detalhe e chega no momento certo. As questões levantadas são uma chamada de atenção para a necessidade de economistas de todos os campos ideológicos se debruçarem sobre um dos principais problemas económicos deste século: a desigualdade.
Carlos Guimarães Pinto é economista
Sobre este livro e este tema, ver também: Vítor Gaspar esmiúça “O Capital”