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É uma data importante para todos os tímidos, os inseguros, os melancólicos, os que não são ou não foram o mais popular da turma nem o capitão da equipa de futebol: nasceu há cem anos (a 26 de novembro de 1922), no frio e nortenho estado do Minnesota, Charles Monroe “Sparky” Schulz, criador de Charlie Brown, de Snoopy e talvez da primeira galeria de adoráveis falhados da história dos desenhos.
Como talvez já saiba ou pressinta, não foi fácil a vida do senhor Schulz. Filho de um barbeiro alemão e de uma dona de casa de origem norueguesa, era o mais novo e, portanto, o mais pequenino e, portanto, também o elo mais fraco e alvo mais fácil na escola. Cresceu como um adolescente tímido e solitário que se refugiou nos seus desenhos como Snoopy escapava à banalidade da sua existência canina para um imenso mundo fantástico interior, onde podia ser um piloto-aviador inglês combatendo o inimigo, aos comandos do seu avião disfarçado de casota de cão.
Na realidade, o amor pela banda desenhada sempre tinha estado lá. A alcunha de “Sparky”, dada por um tio, vinha do cavalo Spark Plug da tira diária “Barney Google”, criada por Billy DeBeck’s e que o pequeno Schulz adorava ler. E foi como Sparky que assinou o primeiro desenho que publicou, aos 14 anos, no suplemento “Ripley’s Believe it or Not!”: um cão chamado Spike que, inspirado no homónimo canídeo da família, comia alfinetes, lâminas de barbear e outros petiscos improváveis (e que ainda pouco ou nada tinha de Snoopy).
Mas esta pequena conquista ainda não significava nada. Como um Cézanne que desencadearia toda a pintura contemporânea, mas era chumbado na escola, naquela mesma época Schulz via os seus desenhos ficarem fora do álbum do liceu, o mesmo liceu que hoje exibe à porta uma estátua de metro e meio Snoopy (curiosa esta tendência para lugares e instituições quererem rentabilizar algo para o qual não só não deram qualquer espécie de contributo como, frequentemente, até desprezaram).
Um cartunista tímido vai à guerra
Mas os grandes turning points desta história só viriam a seguir: a morte da mãe, de quem Schulz era muito próximo, tinha ele apenas 20 anos; o alistamento no Exército pouco depois; a vinda para a Europa para combater os nazis na Segunda Guerra Mundial. E eis que, de repente, o tímido e frágil Sparky liderava a esquadra de infantaria da 20.ª divisão blindada dos Estados Unidos da América. É verdade que nunca disparou um tiro e que, segundo o próprio, na única oportunidade que teve para o fazer, descobriu que se tinha esquecido de carregar a arma. Mas o alemão que estava diante dele não sabia e rendeu-se prontamente, poupando Schulz – que, como vimos, até era filho de um alemão – a um trauma de que, certamente, ouviríamos falar mais tarde nas suas tiras.
Regressado a casa no fim da guerra e condecorado por ter estado debaixo de fogo, Schulz vinha pronto para o novo mundo que ajudara a salvar. Começa a dar aulas no Art Instruction, Inc. e a publicar a sua primeira tira de quadradinhos regular: a série “Li’l Folks”, saída nas páginas do St. Paul Pioneer Press entre 1947 e Janeiro de 1950 e onde, mais uma vez, figurava um cão, mas este um parente já bem mais próximo de Snoopy, entre outras personagens que facilmente reconhecemos nas que, depois, se tornaram celebridades mundiais. Em simultâneo, tinha já passado a colaborar também com o The Saturday Evening Post. No final daquele mesmo ano, começava a publicar a série “Peanuts” em sete jornais diferentes. E o resto é história.
Ingénuo e provocador
“Peanuts” é uma das tiras de quadradinhos mais famosas de sempre. Um grupo de crianças de idade indeterminada (talvez pelos seus sete, oito anos) e um cão que não falava como os da Disney, mas cheio de sonhos e pensamentos, deitado sobre o telhado da casota, debaixo da grande e eternamente inquisitiva abóboda celeste.
Sem gags fáceis; pelo contrário, frequentemente sem sequer caminhar para punchlines, vivia no quotidiano, no nada, no tédio da repetição, no absurdo das pequenas coisas. Falava de fracasso, de bullying, de inseguranças, e fazia-nos rir disso, de nós próprios, desde pequenos. Tudo num traço muito simples, quase bidimensional, tão ingénuo como provocador perante as leis da física (que criança não queria saber o truque da casota do Snoopy, pequena por fora e imensa por dentro?).
Schulz escreveu e desenhou exatamente 17.897 tiras de “Peanuts”, ao longo de 49 anos e 4 meses. A última, em que se despede das suas personagens, saiu, como combinado com os editores, dois dias depois da sua morte, em Fevereiro de 2000. Também escreveu e supervisionou muitas animações para a televisão, mas aí admitia a colaboração de outros autores, ao contrário da prancha de B.D., que nunca autorizou a mudar de mãos, mesmo quando as suas já tremiam de mais e o resultado final denunciasse o tremor postural de que sofria.
No auge, os “Peanuts” eram publicados em 2600 jornais, 75 países e 21 línguas. Diariamente. E só por uma vez, em vida de Schulz, foram publicadas tiras repetidas: um louco período de cinco semanas em 1997, quando a família lá convenceu Sparky a tirar férias pela primeira e única vez na vida, para celebrarem os seus 75 anos.
Uma vida aos quadradinhos
Não é apenas o beagle Snoopy que descende vagamente do pointer Spike. Como muitos outros grandes criadores, Schulz cultivou a arte de transformar as dores pessoais em entretimento universal. “Charlie” Brown é, obviamente, uma versão do pequeno Charles Schulz, mais um apelido tomado de empréstimo a um antigo colega do Art Instruction, Inc.. Com o cabelo bastante mais ralo e menos opções de pullovers do que Schulz, mas o mesmo pai barbeiro alemão, a mesma mãe dona de casa, a mesma falta de jeito para o desporto e as raparigas, o mesmo pessimismo, mas, apesar de tudo, a mesma determinação em jamais desistir.
O Linus ficcional deriva de Linus Maurer, o melhor amigo do autor na vida real. Chuchando no dedo e agarrado ao seu cobertor para se defender das suas perturbações de ansiedade, Linus era, ao mesmo tempo, o mais intelectual, o mais brilhante e o mais culto dos amigos (um combo nada estranho, nada inocente e, seguramente, nada habitual numa tira de “bonecos”). Peppermint Patty era inspirada na prima Patricia que detestava ordens e adorava rebuçados de hortelã-pimenta. Shermy inspirava-se no amigo Sherman Plepler e Schroeder, sempre curvado sobre o seu pequeno piano, no mínimo no amor do autor por Beethoven.
Mas era nas personagens femininas que talvez se acentuasse mais o carácter verdadeiramente autobiográfico de “Peanuts”: a autoritária, impaciente e rainha do bullying Lucy van Pelt. A Lucy que, uma e outra e outra vez, convidava Charlie Brown a chutar a bola, mas que, depois, sempre a tirava do lugar, deixando-o chutar na atmosfera, cair e humilhar-se, era inspirada, nem mais, nem menos, do que na primeira mulher de Schulz, Joyce Halverson, com quem viveu 21 anos, até 1972 (mimetizada, entre outras, na tira em que Lucy monta um “quiosque de psiquiatria”, depois de Joyce, na vida real, ter sugerido ao marido que procurasse tratamento psicológico. Ou quando estraga ao irmãozinho “Citizen Kane”, que Schulz viu mais de 40 vezes, contando-lhe como acaba).
E havia ainda a Pequena Rapariga Ruiva, aliás, Donna Mae Wold, uma jovem contabilista do Art Instruction, Inc., e que representava a miúda inatingível. A mulher que recusou o pedido de casamento do Schulz em Junho de 1950, isto é, quatro meses antes do nascimento de “Peanuts”, mas que lhe permitiria brincar com a timidez e a falta de confiança de Charlie Brown como um gato solitário com a própria cauda (a história só seria revelada em 1989, na biografia autorizada, escrita por Rheta Grimsley Johnson).
Este é o teu legado, Charlie Brown
Com a sua melancolia, a sua ironia, a sua honestidade emocional, o seu fraquinho pelos inadaptados num mundo deleitado em celebrar apenas os vencedores, “Peanuts”, Snoopy, Charlie Brown, influenciariam toda a banda desenhada e animação seguintes e são citados como referências para Bill Watterson, criador de Calvin & Hobbes, Jim Davis, de Garfield, ou Matt Groening, dos Simpons e de Futurama.
Em vida, Charlie Schulz foi homenageado com uma estrela no Passeio da Fama, em Hollywood, mesmo ao lado da de Walt Disney, e, postumamente, com a medalha de ouro do Congresso, a mais alta distinção civil dos Estados Unidos da América. Em Maio de 2000, três meses depois da morte, foi celebrado por mais de 100 cartunistas que, no mesmo dia, incorporaram as personagens de “Peanuts” nas suas tiras, um pouco por todo o mundo.
Deu nome a um sem-fim de coisas, de pavilhões desportivos a módulos espaciais. E tem um museu em Santa Rosa, na soalheira Califórnia, onde viveu boa parte da segunda metade da vida – a partir de 1973, já com a segunda mulher, Jean Clyde, que o acompanharia até à morte e que não consta que alguma vez tenha roubado a bola pelo prazer de o ver falhar.