Era uma vez um poeta desconhecido, de melhores relações com o álcool do que com as finanças e que, numa cidade pobre na periferia da Europa, foi cair doente na cama de um hospital privado francês que não tinha sequer como pagar. Ali morreu na madrugada de 30 de novembro de 1935, deixando rabiscado num papel uma frase em inglês: “I know not what tomorrow will bring”. O homem franzino atravessou este mundo em modo tão solitário e esquivo que poucos deram pela sua existência. Até a conta do hospital foi paga pelo patrão. Esse morto quase anónimo era Fernando Nogueira Pessoa, que viria a ser reconhecido como um dos mais geniais poetas do mundo moderno. Sobre ele muito se escreveu e pensou, criaram-se instituições, escreveram-se romances. Em 2008, um grupo de habitantes do Bairro Alto, liderados pelo cineasta José Fonseca e Costa, propôs que a autarquia e o hospital St. Louis dos Franceses colocassem no muro exterior do edifício — um antigo palácio do século XVI — uma placa que indicava aquele lugar como o último da geografia pessoana na cidade de Lisboa.
Em 2008, fez-se a placa, inscreveu-se a última frase do poeta, a data de nascimento e a da morte. Fez-se a festa e, como conta Paulo Ferrero, do Fórum Cidadania LX, que esteve ligado à criação desta homenagem simbólica à memória do poeta, “na festa apareceu muita gente, mesmo aqueles que não se associaram à luta pela placa, como a Casa Fernando Pessoa. Estiveram autarcas, políticos, figuras públicas”, recorda o mesmo cidadão que, no final de novembro de 2023, se deu conta que a placa tinha desaparecido, que ninguém sabia porquê e ninguém parecia incomodado com isso. “Não deixa de ser uma curiosa coincidência que, no momento em que instituições municipais comemoravam os 88 anos da morte do poeta, a placa desapareça e ninguém saiba o que lhe aconteceu”, desabafou.
O hospital St. Louis, ao cimo da rua Luz Soriano, no Bairro Alto, o mais antigo hospital privado em Portugal, pertencia a uma associação de beneficência francesa, que se instalou ali no século XVIII, ocupando o palácio que fora do rabi-mor de Lisboa, Guedelha Palaçano, e depois da família do 29.º vice-rei da Índia, Mello e Castro. Em 2022, o edifício foi vendido à empresa canadiana Mercan, mais precisamente ao seu braço português, a Mercan Properties Bairro Alto, Lda., detida por cerca de 150 investidores estrangeiros, como o Observador apurou no registo predial. Desde então, a empresa tem vindo a submeter vários projetos arquitetónicos junto da Câmara Municipal de Lisboa e da ex-Direção Geral do Património Cultural, atual Instituto do Património, que visam transformar o edifício num hotel de luxo.
Nenhum dos projetos foi ainda aprovado, como confirmaram ao Observador estas duas instituições. Sobre a placa e o seu desaparecimento, no final de dezembro, ambas declararam não ter conhecimento de nada e a autarquia disse inclusive: “A Câmara Municipal de Lisboa não foi consultada quanto à remoção da placa evocativa da morte de Fernando Pessoa, mas terá como princípio de aprovação de qualquer licenciamento a reposição da placa”.
Já a ex-DGPC confirmou que, desde 2022, têm havido vários pedidos para a reestruturação do antigo hospital: “Sobre o pedido para a realização de obras de ampliação e alteração do imóvel tendo sido, até ao presente, emitidos despachos ‘Não Favoráveis’, em 12.12.2022 e 22.02.2023. Entretanto, no passado dia 07.12.2023 foi submetido a consulta da DGPC novo aditamento ao processo que se encontra em fase de apreciação (…). A DGPC desconhecia a intenção de remoção da referida placa evocativa porquanto, no projeto de arquitetura que instruiu, está prevista a preservação do muro onde a mesma se encontra”. Já a Casa Fernando Pessoa disse não ter “nada a comentar”.
Só em janeiro foi possível entrar em contacto com a Mercan Properties. Embora seja a atual detentora do edifício, o facto de este fazer parte de numa área classificada como Património Histórico — o Bairro Alto — impede a retirada da placa sem o conhecimento da Câmara. A resposta da Mercan chegou ao Observador por intermédio de uma agência de comunicação e dá a seguinte explicação: “A placa referente à morte do poeta Fernando Pessoa foi retirada do local e guardada em local próprio, por questões de proteção e preservação, uma vez que foram realizados trabalhos de sondagens arqueológicas de solo e parietais no âmbito de licenciamento do projeto (…). À semelhança de todos os projetos do Grupo Mercan Properties, todos os trabalhos efetuados são sempre realizados em conformidade com a legislação em vigor e após todas as aprovações das entidades competentes”.
Paulo Ferrero reconhece sentir-se “aliviado” pois estava “com medo que a tivessem destruído”. Porém, a resposta da Mercan só dá um desfecho à história se não olharmos com atenção para as contradições com as respostas da CML e da ex-DGPC.
Segundo a ex-Direção Geral do Património Cultural, “o hospital de St. Louis dos Franceses integra o conjunto do Bairro Alto, classificado como Conjunto de Interesse Público (CIP), conforme Portaria n.º 398/2010″, o que, por princípio, impede qualquer mexida em qualquer elemento do seu património sem o aval desta entidade estatal, e isto inclui a placa relativa ao poeta”.
Porém a Mercan alega que retirou a placa “devido a trabalhos de sondagens arqueológicas”. Estes trabalhos são obrigatórios por lei em qualquer edifício histórico que pretenda ser submetido a intervenções. No entanto, contactada novamente a ex-DGPC e confrontada com as explicações da Mercan, foi-nos dito que “de acordo com o informado pela equipa responsável pelos trabalhos arqueológicos, a retirada da referida placa não teve qualquer enquadramento/necessidade logística na preparação dos trabalhos arqueológicos realizados”.
Já a Câmara Municipal de Lisboa, que numa primeira resposta garantiu que “faria depender a aprovação do projeto da reposição na placa”, confrontada com a retirada da placa pela Mercan sem consultar qualquer das entidades responsáveis pela proteção patrimonial portuguesa, defendeu depois, num segundo momento, que “apesar de a placa ser um elemento de espaço público, não existe obrigatoriedade de submissão de pedido de remoção ou emissão de autorização de remoção por parte da Câmara Municipal de Lisboa, por estar instalada em propriedade privada”.
Uma “confusão”, diz Paulo Ferrero (numa opinião que seria mais tarde corroborada pelo historiador de arte e arquiteto especializado neste bairro renascentista Helder Carita), “simbólica do que está a acontecer ao património histórico de Lisboa, onde os negócios se sobrepõem a tudo”.
De palácios a hotéis de luxo: as muitas vidas do Bairro Alto
A Mercan Properties Bairro Alto, Lda., um braço da gigante canadiana Mercan, chegou a Portugal e fez furor mediático pelo forte investimento na criação de hotéis de luxo no Porto, Lisboa, Santiago do Cacém e Algarve. E embora tanto a autarquia lisboeta como a ex-DGPC afirmem que ainda não deram aval a qualquer projeto de alteração arquitetónica do antigo palácio, a verdade é que no site da Mercan o hotel que para ali se projeta já é tido como uma realidade, publicitado e detalhadamente descrito. Sobre esta publicidade a um hotel que as entidades negam estar aprovado, nem a ex-DGPC nem a autarquia Lisboeta fazem comentários.
Fica por explicar que intervenção será autorizada e realizada na edificação do século XVI, também conhecida como Palácio do Cunhal das Bolas, que, como explicou o historiador de arte e docente da Universidade Nova de Lisboa, Hélder Carita, “tem detalhes arquitetónicos raríssimos na Europa seiscentista, como um cunhal [esquina] feito com duas grandes bolas de pedra ligadas a uma lenda mística, um jardim interior elevado, uma entrada por um ‘pátio de recebimento’, além de toda a fachada manuelina”.
O antigo hospital St. Louis dos Franceses funcionou ali durante cerca de dois séculos até, em 2022, ter sido vendido pela Société Française de Bienfaisance en Portugal à Mercan Properties. No entanto, a construção inicial do palácio remonta ao século XVI e deve-se ao rabi-mor de Lisboa, Guedelha Palaçano, que era o detentor daquelas terras exteriores à muralha da cidade. Guedelha Palaçano conta-se entre os descendentes do famoso Mestre Guedelha, físico e astrónomo do rei D. Duarte, uma família de judeus com longa tradição junto à corte portuguesa. A história do palácio está indelevelmente ligada à origem do próprio bairro, considerado o primeiro bairro moderno português, já com um traçado retilíneo e legislação própria, modelo que será depois replicado na Índia e no Brasil, explica Hélder Carita.
Não tendo o Observador tido acesso ao projeto da nova proprietária, não pudemos determinar até que ponto este respeitará as características do originais do prédio, que ao longo dos séculos já sofreu várias alterações, nomeadamente para ser transformado em hospital para as Filles de la Charité darem assistência aos marinheiros franceses que aportavam em Lisboa. O St. Louis foi o primeiro hospital privado fundado em Portugal e, apesar de lá ter morrido, Fernando Pessoa não teria dinheiro para cobrir a conta do seu internamento, pelo que esta foi paga pelo seu patrão, o senhor Vasques, um importador têxtil, imortalizado no Livro do Desassossego como o “patrão Vasques”.
Hélder Carita, profundo conhecedor da história do bairro, autor de um livro sobre o mesmo, que é uma referência no estudo da arquitetura deste conjunto renascentista, concorda com a gravidade da retirada da placa relativa a Fernando Pessoa e lembra que “sobretudo nos séculos XIX e XX já era paragem de muitos intelectuais e escritores e que essa história deveria ser conhecida e contada”. Tendo trabalhado na reabilitação da também renascentista Casa dos Bicos, o historiador considera que o palácio ser transformado em hotel “é o menor dos males”: no bairro, tudo está sempre na iminência de “ser mais um bar para vender cerveja a adolescentes e turistas”, diz.
Bairro Alto, um tesouro à mercê de todos os corsários
A retirada da placa relativa ao poeta Fernando Pessoa, cujo destino no futuro hotel desconhecemos, levanta o véu sobre um bairro histórico, que sobreviveu ao terramoto e cuja existência acompanha e traduz as mudanças da história do país e da cidade ao longo dos séculos. O palácio construido por um judeu endinheirado, em torno do qual nasceu a lenda mística de que no interior das bolas de pedra estariam escondidas bolas de ouro, terá sido a primeira edificação nobre fora da muralha que percorria toda a atual Rua do Alecrim, até à Rua da Misericórdia e que terá dado origem ao Bairro Alto.
Junto ao palácio de Guedelha Palaçano, tornado propriedade do vice-rei da Índia, António Mello e Castro, nasceriam depois outras casas nobres e mais tarde um bairro de artífices, muitos deles ligados ao fabrico de materiais para as caravelas e outras embarcações, bairro que ficará conhecido como Bairro Alto. É o grande bairro renascentista de Lisboa e o palácio onde morreu Pessoa é a construção que ocupa o seu ponto mais elevado.
De área fulgurante nas Descobertas segue-se o declínio a partir do grande terramoto e, como conta o historiador Hélder Carita, no século XIX, mesmo com a instalação dos jornais e da boémia artística, aquela já era uma zona muito pobre, com muita prostituição, algo que só mudou nos anos 80 e 90 quando o bairro se tornou o coração da vida noturna lisboeta. “A Câmara Municipal, independentemente do partido que lá está, não tem feito qualquer intervenção inteligente no bairro, que estava a cair de podre até estar agora a ser reabilitado para hotéis. Mas não há qualquer pensamento estratégico, que vise tornar isto habitável e com uma dinâmica que atraia gente, comércio que não se reduza à venda de bugigangas a turistas. A história deste bairro único deveria ser conhecida e usada a seu favor, mas a Câmara tudo o que faz é entregar os espaços para bares, tornando impossível a vida de quem o habita. Até me admira que um hotel de luxo se queira instalar aqui”, desabafa o historiador que vive nesta zona da cidade desde a infância.
Em conversa com o Observador, este professor lamenta ainda que as únicas intervenções da autarquia na preservação do bairro “sejam piroseiras, como pendurar vasos de flores nos candeeiros da rua, quando há aqui um verdadeiro problema de lixo, falta de policiamento e aplicação da legislação relativa ao ruído, coisas que todos fingem não ver”. “A história da placa é só mais um exemplo de que o problema deste bairro é que ninguém parece reconhecer o seu imenso valor para a história e a cultura portuguesas”, afirma.