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(Este texto saiu no Observador a 19 de setembro de 2019 para assinalar os 500 anos do início da circum-navegação. Voltamos a publicá-lo nesta quarta-feira, dia 21 de outubro de 2020, quando se assinala o V centenário do estreito de Magalhães)
A vida de Fernão de Magalhães — que há exatamente 500 anos partiu para a sua viagem de circum-navegação — é um exemplo perfeito do tipo de mobilidade social que a sociedade portuguesa de quatrocentos e quinhentos oferecia. Contra as ficções históricas que acantonam de um lado nobres e do outro populares, num sistema de castas fechado e impenetrável, as várias gerações de capitães e exploradores portugueses oferecem um quadro muito mais incerto. Da mesma maneira que Afonso de Albuquerque sentiu na pele a desgraça do seu nome de família (Gomide) e teve de subir com esforço até aos lugares mais altos da sociedade, Fernão de Magalhães também não é propriamente um grande do reino.
Vindo de Sabrosa, de uma família da pequena nobreza, Fernão de Magalhães foi educado na corte desde os doze anos, no tempo em que o entusiasmo da coroa pelas expedições marítimas é maior. Magalhães vive no Paço a última década do reinado de D. João II, em que a ambição de chegar à Índia está no auge e em que grande parte dos esforços portugueses se concentram nos Descobrimentos. Ora, o entusiasmo pela chegada à Índia não se reflete apenas no erário público. Este é o tempo dos grandes matemáticos e cosmógrafos, da Aula da Esfera e da cartografia, de tal maneira que o próprio ensino no Paço está voltado para os Descobrimentos. Não é estranho que um moço-fidalgo chegue à maioridade com certa experiência do mundo das expedições e veja o embarque como um destino natural. As provisões de navios, os pormenores práticos e a técnica náutica fazem parte do dia-a-dia de uma geração educada num país que concentrou grande parte dos seus esforços na sua epopeia de expansão.
Vários biógrafos de Fernão de Magalhães, confundindo um feito heroico com um feitio igual, têm sublinhado a injustiça de Fernão de Magalhães não se ter tornado também ele, cedo, um capitão português. É certo que a ambição de Magalhães via tal honra como um destino inevitável, e o atraso na sua chegada como uma desconsideração por ele. No entanto, além de o posto de capitão ser muito cobiçado pelas recompensas e riquezas que lhe estavam associadas, Fernão de Magalhães teria uma preparação nem mais nem menos assinalável do que qualquer fidalgo educado da mesma maneira.
É certo que a falta de meios do Império faria de quase todos os fidalgos instruídos na ciência náutica figuras de relevo nos Descobrimentos; no entanto, o processo era longo (ou, pelo menos, mais longo do que aquilo que Magalhães parecia disposto a esperar) e, em todo o trato necessário para ganhar a benevolência dos decisores, o futuro capitão do Trinidad revelou-se bastante inepto.
Coimbra e Viseu: a disputa de poder
Uma das grandes controvérsias políticas do tempo de Fernão de Magalhães prende-se com a sucessão de D. João II. Como é sabido, D. Manuel era, à data do seu nascimento, apenas o oitavo na linha de sucessão. Como é óbvio, a distância enfraquecia a legitimidade do Duque de Viseu, D. Manuel, principalmente quando D. João II tinha um filho ilegítimo, D. Jorge, Duque de Coimbra. Ora, por muito que o inegável direito de D. Manuel ao trono fosse fortalecido por uma classe aristocrática pouco satisfeita com os planos centralizadores de D. João II, a verdade é que uma parte da máquina estatal ligada aos Descobrimentos estava próxima do rei que tanto a alimentara e, consequentemente, do seu filho ilegítimo, em quem viam um sucessor político de D. João II.
A chegada de D. Manuel ao trono é, então, marcada por uma tensão entre as fações de Coimbra e Viseu, que resultam numa disputa cuidada pelos cargos de poder. Magalhães, criado entre os homens de D. João II, é provavelmente uma vítima deste equilíbrio de poderes. As perspetivas de chefiar uma expedição, se já seriam difíceis com D. João II, eram absurdas com D. Manuel. A chegada de D. Manuel ao trono traz para a epopeia das Descobertas várias das grandes famílias tradicionais portuguesas, o que limita ainda mais as hipóteses de Fernão de Magalhães capitanear uma expedição de monta.
Tanto que, dez anos depois da morte de D. João II, tem finalmente a primeira experiência marítima, embora numa posição algo subalterna.
Primeiro contacto com a Índia
Na frota de 22 navios que D. Francisco de Almeida leva até à Índia, está não apenas Fernão de Magalhães, mas também o seu irmão Diogo. Ora, esta, mais do que uma expedição de Descoberta, é uma expedição de controlo. Destinada a estabelecer-se no Índico para controlar as rotas comerciais, a frota de D. Francisco de Almeida oferece, apesar de tudo, possibilidades interessantes para um navegador ambicioso. Não apenas pelas lucrativas atividades de pirataria ou de corso, nem pela sempre prometedora ação guerreira, que tanto fazia pelo prestígio dos fidalgos, mas principalmente porque o comércio não estava ainda organizado como Afonso de Albuquerque o viria a organizar, o que dava aos exploradores uma liberdade muito maior para agir por conta própria, contando apenas com uma tímida proteção portuguesa, mas também com lucros muito maiores.
Fernão de Magalhães e a história de uma viagem que Portugal tentou impedir
Esta, que seria sempre a grande tensão da primeira fase do Império, a tensão entre Albuquerque e Soares de Albergaria ou Tristão da Cunha, entre um Império comercial organizado a partir da coroa ou deixado à iniciativa individual, também teria o seu peso em Fernão de Magalhães. Ganhou bastante dinheiro nos seus primeiros anos na Índia; no entanto, viria a investi-lo numa exploração mal-sucedida, em que os barcos naufragaram e afundaram consigo a fortuna que lhe pertencia. Este ainda tentou pedir a restituição dos seus bens â coroa, argumentando que o seu investimento era do interesse da coroa, mas o seu requerimento foi, obviamente, indeferido. Parte importante do risco e da razão por que a coroa permitia as expedições particulares era o facto de não arcar com os custos.
Esta, porém, parece ter sido sempre uma lógica difícil de aceitar para Fernão de Magalhães.
Azamor e a saída de Portugal
Quando voltou para Lisboa, Fernão de Magalhães ainda participou numas campanhas no Norte de África. A lógica da guerra, para um fidalgo, acabava por ser parecida com a das descobertas; o cavaleiro investia no armamento, nas provisões, e até em armas, com a perspetiva de um saque lucrativo. A guerra, como os Descobrimentos, vivia neste limbo entre o controlo da coroa e a iniciativa de homens ambiciosos, que beneficiavam de bastantes liberdades na hora das recompensas. Acontece que Magalhães, mais uma vez, deu-se mal em Azamor, acabando por perder a montada, que mais uma vez não foi paga como Magalhães julgava que merecia.
Para mais, Magalhães acabou por se envolver num processo confuso de venda dos despojos de guerra, que pouco fez pelo seu prestígio. É, então, natural que, quando apresenta a D. Manuel a sua ideia de chegar pelo Ocidente às Ilhas das Especiarias, o Rei recuse. Tem diante dele um fidalgo truculento, arruinado, com queixas de todos os lugares por onde passou; a ideia de financiar uma expedição dispendiosa que, para mais, não tem imensa utilidade já que os portugueses conseguem, de Malaca, chegar às Ilhas das Especiarias, não é propriamente entusiasmante. D. Manuel recusa e Magalhães volta-se então para o Rei de Espanha. É certo que esta decisão acaba por se revelar um erro para Portugal; no entanto, é possível que D. Manuel não medisse até que ponto é que o projeto de chegar às Ilhas das Especiarias, ou Molucas, podia ser importante para os espanhóis.
Aprovação da viagem
A navegação portuguesa era bastante diferente da espanhola. Enquanto Portugal montou um Império baseado no comércio, Espanha montou um Império baseado na posse. Daí que, enquanto para os portugueses era conveniente o segredo, quer dos locais onde as especiarias eram mais abundantes, como daqueles em que o comércio estava estabelecido, para Espanha a notícia era uma forma de confirmação da posse. A navegação portuguesa é, por isso, muito mais secreta. A perspetiva de um navegador português ao serviço de Espanha é, assim, para os espanhóis, muito mais aliciante e significativa do que a perspetiva contrária.
Além do mais, como Magalhães explica na reunião que teve com Las Casas para apresentar o seu projeto, é difícil, pelo Tratado de Tordesilhas, saber em que lado do globo se encontram as Molucas. Só a circum-navegação permitirá verdadeiramente conhecer a precisão do Tratado de Tordesilhas – para o globo estar dividido ao meio, convém conhecer de facto a extensão do globo. A viagem de Magalhães permite, assim, disputar um território rico que, à luz dos conhecimentos da época, estaria em território português. A perspetiva de entrar nas Índias Ocidentais acaba por ser, então, fundamental para Carlos V.
Fernão de Magalhães não terá a vida facilitada para montar a sua expedição, que partiu a 20 de setembro de 1519. Desde o enlouquecimento do seu cosmógrafo Rui Faleiro, à intromissão constante da Casa de la Contratación, todo o processo foi difícil. Magalhães também se envolveu em todo o tipo de questiúnculas (a mais famosa prende-se com o hastear de uma bandeira com as armas da sua família, que muito indignou os espanhóis, a ponto de provocar uma rixa em que um dos seus pilotos foi esfaqueado) que se revelariam fatais no seu destino; o destino da expedição é conhecido: apesar de não ter chegado ao seu objetivo, excedeu-o; também a fama de Magalhães transcende, em muito, o seu desejo de uma glória demasiado pequena para ele.
A chegada às Filipinas parecia um dos grandes feitos da viagem. Já passado o estreito de Magalhães, a chegada a um porto seguro, numa terra rica dominada por um povo que se revelou acolhedor, deve ter parecido a Magalhães uma bênção divina.
Os cronistas criticam a sua decisão de combater em Mactan, numa batalha contra Lapu-Lapu que se revelaria fatal para o capitão da armada. A tripulação tinha acabado de converter uma grande parte da população de Cebu e tinha até indícios de que, dali, poderia chegar às Molucas; quase todas as Ilhas de Lázaro (nome que Magalhães deu às Filipinas) prestaram vassalagem a Magalhães e converteram-se, emocionadas, ao cristianismo. Que Magalhães tenha arriscado a sua vida na luta contra uma pequena tribo, apenas para mostrar a um chefe rival o poderio espanhol, é de uma ironia raramente vista.
A batalha resultou numa chacina da tripulação cansada e doente que, mesmo com armamento superior, não conseguiu resistir ao muito maior número de guerreiros de Lapu-Lapu. Com Magalhães morreu o seu filho ilegítimo, que também estava na armada e mais umas dezenas de tripulantes penhorados na malograda exibição da força espanhola.
Magalhães morreu humilhado e derrotado, e nem por isso a sua glória póstuma sofreu. A insignificância da derrota no seu destino póstumo prova a pouca importância que a vitória teria tido. Mas Magalhães, mais uma vez, mostrou que nem ele próprio estava à altura daquilo que alcançou.