A carta era anónima, mas vinha assinada com o nome “Carlos Dengue”. Chegou ao Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP) a 11 de julho de 2014 e dava conta de um procurador do Ministério Público (MP), de nome Orlando Figueira, que tinha um “emprego fingido” no departamento de Compliance do banco Millennium BCP. Referia que o procurador era conhecido pelas suas “falcatruas” e por receber dinheiro de “grandes figurões angolanos” que chegara a investigar, tendo mesmo recebido dinheiro de uma empresa ligada à Sonangol (Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola), de nome Primagest.
A denúncia caiu no DCIAP dois anos depois de Orlando Figueira ter pedido uma licença sem vencimento e ter sido alvo de várias notícias que davam conta de que iria trabalhar para o BIC, ligado a Isabel dos Santos. Na altura, a procuradora a quem foi atribuído o processo pediu que fosse feito um levantamento de todos os inquéritos relativos à elite angolana que tinham passado pelas mãos do magistrado. Mas a PJ acabou a focar-se num processo arquivado em janeiro de 2012 relativo a Manuel Vicente, o vice-Presidente angolano, deixando de parte os restantes “figurões” — como se pode concluir no relatório da PJ de janeiro de 2016, que pedia mandados de busca e detenção. Figueira foi detido uma semana depois.
A acusação formal seria proferida em fevereiro de 2017. Segundo o MP, Orlando Figueira tinha sido corrompido por Manuel Vicente para arquivar dois processos que tinha em mãos contra ele. Para o alegado crime teriam contribuído o advogado Paulo Blanco, que normalmente representava o Estado angolano, mas que acabou constituído advogado do governante, e Armindo Pires, um empresário português amigo de Manuel Vicente há mais de 30 anos e com poderes para representá-lo nos seus negócios em Portugal.
Os quatro foram acusados dos crimes de corrupção, branqueamento, violação do segredo de justiça e falsificação de documentos. Mas o caso tão explosivo acabaria com Manuel Vicente afastado do banco dos réus logo no início do julgamento, avançando apenas com três arguidos. No final de seis meses de sessões, o MP acabou a pedir envergonhadas penas de cadeia suspensas até cinco anos para o procurador e para o advogado e uma absolvição para o empresário. A decisão só será conhecida a 8 de outubro, mas já é possível tentar perceber o que aconteceu entre o primeiro momento e o final.
O processo melindrou as relações diplomáticas entre Portugal e Angola e levou mesmo o governo de Luanda a mandar recados para Lisboa. A Procuradoria Geral angolana recusara à procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, notificar Manuel Vicente da constituição de arguido e da acusação. Tudo por considerar que ele gozava de imunidade. Mesmo assim, o processo avançara para instrução. Terminada a fase instrutória, o Ministério das Relações Exteriores de Angola ameaçava avançar com uma queixa por violação do direito internacional. Num comunicado, referia considerar o processo “um ato inamistoso que lesa a soberania angolana”.
A dias de o processo chegar a tribunal, novo aviso: caso fosse emitido um mandado de captura em nome de Vicente ou se o tribunal decidisse julgar o governante, a consequência podia refletir-se num corte nas importações. E Portugal sofreria consequências diplomáticas e económicas com essa “ferida política” , informava o Jornal de Negócios.
O tribunal também chegou a enviar uma carta rogatória às autoridades angolanas nas mesmas condições. Mas a resposta só chegaria a 22 de janeiro, no dia em que arrancou o julgamento: não podiam notificar Manuel Vicente da constituição de arguido, da acusação ou do debate instrutório porque ele gozava de imunidade. O mesmo tinha sido invocado ao Tribunal da Relação de Lisboa pela defesa do governante, assegurada pelos advogados Rui Patrício e João Lima Cluny, mas a resposta ainda não tinha chegado.
Logo nessa primeira sessão, o coletivo de juízes presidido por Alfredo Costa acabaria por decidir separar os factos relativos a Vicente num processo à parte. Era o primeiro golpe à investigação liderada pelas procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão. À data, Orlando Figueira estava ainda em prisão domiciliária, depois de ter sido preso preventivamente na cadeia de Évora — e o processo não podia arrastar-se e prejudicar os arguidos. A decisão de entregar o inquérito relativo a Vicente às autoridades angolanas só foi tomada pelo tribunal superior, o da Relação, em maio — já a prova em julgamento tinha sido quase toda produzida. Nesta fase, a acusação tinha sido praticamente desmontada, com novos intervenientes a serem chamados e que serão alvo de outros inquéritos, como o banqueiro Carlos Silva e o advogado Daniel Proença de Carvalho. Mas já lá vamos.
Corria o ano de 2009 e era comum ver o advogado Paulo Blanco circular com à vontade nos corredores do DCIAP, ainda este funcionava num prédio da Rua Alexandre Herculano, em Lisboa. Todos o conheciam como o advogado dos angolanos, por representar o regime de Luanda e outras individualidades em vários processos que corriam termos naquele departamento. E era normal vê-lo entrar e sair do escritório do procurador Orlando Figueira, que ali trabalhava há já um ano numa equipa escolhida a dedo pela então diretora Cândida Almeida.
Segundo a acusação do MP, se a “relação de amizade” entre Blanco e Figueira foi cultivada nos corredores do DCIAP, a relação entre os arguidos Blanco, Manuel Vicente e Armindo Pires nasceu das suas constantes viagens a Luanda. E foi neste cenário, avança o MP, que o advogado terá convidado Figueira, em abril de 2011, a integrar o painel de oradores da Semana da Legalidade que assinalou o 32.º aniversário da Procuradoria-Geral angolana, em Luanda
O MP acredita que essa viagem de Figueira a Angola foi fundamental para estabelecer o plano que se seguiu. E foi depois disso, já de regresso a Portugal, em maio daquele ano, que Figueira e Blanco acabariam a almoçar com o banqueiro angolano Carlos Silva. A conversa fluiu até o procurador se queixar dos cortes salariais e do então magro ordenado de magistrado, a juntar a um processo de divórcio que enfrentava, mostrando abertura para trabalhar em Angola. Na acusação lê-se que essa “vontade” foi transmitida a Manuel Vicente e que, daqui, partiu o acordo: como Figueira tinha em mãos dois processos contra Vicente, Paulo Blanco e Armindo Pires iriam propor-lhe um contrato de trabalho em troca do arquivamentos desses casos.
O MP acusa os arguidos de terem firmado esse acordo “em data anterior a 4 de outubro de 2011”, precisamente o dia em que Figueira abriu conta no Banco Privado Atlântico Europa (BPAE) do banqueiro angolano Carlos Silva, para receber o alegado suborno. Mas esse acordo acabaria derrubado pela defesa já em tribunal. É que, dizem, nessa data Paulo Blanco nem sequer conhecia Armindo Pires (só o conheceu depois de novembro de 2011), muito menos Manuel Vicente — com quem, aliás, nunca esteve ou falou. Também Orlando Figueira só terá conhecido Armindo Pires no debate instrutório. O empresário que representa Vicente foi constituído arguido no processo em janeiro de 2017, já o inquérito contava com 17 volumes. Um mês depois foi proferida a acusação.
Um pormenor que o advogado de Armindo Pires, Rui Patrício, fez questão de sublinhar, já em alegações finais, lembrando um email que as autoridades confiscaram quando fizeram buscas no escritório de Paulo Blanco. “Não é possível que tenham firmado um acordo porque há dois emails que destroem esta tese: um apreendido dentro do escritório do Paulo Blanco em que a esposa do Paulo Blanco [também advogada] diz que se este senhor ligar para cá para dizerem que Paulo Blanco está em Angola” (a 21 de novembro de 2011). “Mostra que ambos não se conheciam e que o senhor engenheiro Armindo Pires andava a tentar contactar o engenheiro Paulo Blanco, como tinham então firmado o acordo?”, interroga.
O segundo email, enviado por Armindo Pires a Manuel Vicente, está parcialmente reproduzido na acusação. O empresário escreve ao amigo que o “assunto do Estoril” — referindo-se à compra de um apartamento no Estoril Sol que deu origem a uma investigação — “pode vir a complicar-se”. E que, de acordo com os advogados que contactou, um deles Paulo Blanco, “introduzido pelo C. Silva”, Vicente deve entregar uma declaração de rendimentos. Remata avisando para terem cuidado em falar do tema por telefone, porque “pode haver escutas”. Na altura, lembra a acusação, aproximava-se a data das eleições em Angola. “Se tivesse havido um acordo [para arquivar o processo] porque é que o assunto se ia complicar e eram precisos documentos?”, interrogou Rui Patrício.
Da parte não reproduzida no despacho de acusação, mas lida em sede de julgamento, consta também uma informação importante. Armindo Pires diz a Vicente que o assunto que se pode complicar “tem que ver com os valores pagos por alguém antes da escritura que são 3 parcelas de mais ou menos 380.000,00 euros que foram pagos por entidades que desconheço nomeadamente Portmill e Damer, empresas offshore?”. E mostra que estaria alheio ao objeto de um dos processos pelo qual é acusado de corromper Figueira para arquivar.
Uma tese que acabaria abraçada pela procuradora de julgamento, Leonor Machado, que no final constatou que a prova produzida contra o empresário português Armindo Pires assentava em dois emails. E não era suficiente para o condenar. Nem pelo crime de corrupção ativa, nem pelo de branqueamento, muito menos pelo de falsificação de documento.
Chamada ao tribunal, também a então diretora do DCIAP veio dar um contributo para derrubar a acusação, desmistificando o à vontade de Blanco. Até porque, disse, sempre promoveu um departamento “aberto” em que os advogados podiam circular e tratar das suas questões diretamente com os magistrados. Mais: Orlando Figueira sempre foi um profissional “exemplar”.
A viagem a Luanda, tão importante para o MP, foi outro dos temas mais esmiuçados ao longo das 50 sessões de julgamento. Isto porque Paulo Blanco e Orlando Figueira vieram, a escassos meses do julgamento, contar um episódio que até então não tinham revelado: um encontro no Hotel Trópico em Luanda com o banqueiro Carlos Silva. Blanco diz que estavam ali hospedados para a Semana da Legalidade e combinou beber um café com Carlos Silva, ao qual Figueira acabou por juntar-se. Esta não era a primeira vez que o magistrado se encontrava com o banqueiro. Já antes o tinha inquirido na sequência de um processo-crime que tinha em mãos. Mas, na versão do banqueiro, que se deslocou a Portugal para depor, este encontro nunca aconteceu. E será apenas uma fantasia dos dois arguidos.
O MP acredita também que foi Paulo Blanco quem convidou os magistrados Orlando Figueira e Vítor Magalhães a participarem na Semana da Legalidade, mas o advogado deixou claro que esse desafio partiu do organizador do evento, a Procuradoria-Geral angolana. Ainda assim, foi ele quem tratou dos vistos, “por uma questão de celeridade”. Um pormenor que, de certa forma, corrobora o dito por Cândida Almeida, a propósito da estreita colaboração entre as procuradorias angolana e portuguesa, mesmo ao nível da formação, em que Figueira chegou a participar como formador. Aliás, um ano antes da visita de Figueira a Luanda, ela própria tinha viajado a Angola numa visita oficial.
Mas não se pense que a procuradora, que sempre acompanhou os processos dos seus procuradores de perto, foi uma testemunha fundamental para a defesa. A magistrada disse que não podia confirmar certas informações relativas ao arquivamento do processo que envolvia Manuel Vicente, porque o dossier onde fazia esses apontamentos tinha desaparecido quando as instalações do DCIAP mudaram para a Rua Gomes Freire. E deixou claro que não era comum destruírem-se documentos de prova, como Figueira mandou fazer às 22 folhas que comprovavam os rendimentos de Manuel Vicente.
Figueira tinha alegado que, para reserva da vida do ex-vice-Presidente angolano, mandara devolver os documentos que ele entregou no processo do Estoril Sol. Também dera ordens à funcionária judicial para “apagar o seu nome” desse processo, tendo aberto um outro para arquivar os factos relativos a Manuel Vicente. No entanto, nas buscas à sua casa, a PJ encontrou uma cópia dessa documentação.
Cândida Almeida diz que era comum guardar cópias num cofre no DCIAP, mas nunca em casa, até porque essas provas podiam vir a ser necessárias. “Não, não era normal desaparecerem documentos. O que entendo é que não devem ficar lá porque violam a reserva da vida privada, mas também não podem ser destruídos porque são meios de prova”. Mas Figueira alegou que era frequente desaparecerem documentos e, por precaução, optou por levá-los para casa. A diretora refutou sempre essa informação e o arguido acabou por juntar ao processo um relatório do DCIAP que dava conta do “desaparecimento” de documentos.
As contradições levaram a defesa a pedir uma acareação entre ambos, a primeira do julgamento. Mas a acareação foi feita de costas. Com Cândida Almeida a manter a sua versão e Figueira a dele.
De referir que, ao longo de todo este processo, que acabou agora em julgamento e que chegou a ter Manuel Vicente como arguido, as procuradoras Inês Bonina e Patrícia Barão também mandaram devolver e destruir documentos que se encontravam no processo usando o mesmo argumento que Figueira usou no processo contra Vicente. Fizeram-no com documentos apreendidos no escritório de Angélica Conchinha, representante da Primagest em Portugal, e mandaram, também, destruir uma notícia de um jornal angolano que constava no processo. A funcionária judicial cumpriu as ordens na máquina trituradora de papel.
Depois do acordo, o contrato. Segundo o MP, Figueira terá assinado um contrato para ser diretor jurídico de uma empresa angolana de nome Primagest a ganhar 15 mil dólares líquidos por mês. Esta empresa, aos olhos da acusação, está ligada à Sonangol de Manuel Vicente e seria uma forma de justificar os pagamentos de luvas que ascenderam os 760 mil euros entre 2012 e 2015. Por isto os crimes de corrupção e de falsificação de documento.
Logo na primeira sessão de julgamento, Figueira tentou convencer os juízes de que este contrato era, na realidade, verdadeiro. Embora por trás estivesse o banqueiro Carlos Silva, e não Manuel Vicente. Esmiuçando o que disse: o arguido explicou que em 2012 assinou um contrato-promessa de trabalho, que só em 2014 assinou o contrato definitivo e que, um ano depois, acabou a assinar a revogação do contrato. Durante este período não chegou sequer a ir trabalhar para Angola, mas mesmo assim foi pago.
Mal se viu em licença sem vencimento, em outubro de 2012, e percebendo que teria de esperar até apanhar o avião para Luanda, o magistrado diz ter sido contactado pelo departamento de compliance do Millennium BCP e, depois, pelo do ActivoBank. Nunca chegou a ir para Angola, mas continuou a receber o dinheiro. “Pensei que pudesse ter sido Carlos Silva a sugerir, uma vez que ele é vice-presidente do BCP”, afirmou Figueira. Mas em tribunal ninguém veio corroborar esta versão.
“Não faz qualquer sentido a Primagest manter um contrato nestas circunstâncias. Peço que reflitam sobre este absurdo”, disse ao coletivo de juízes em alegações finais a procuradora Leonor Machado.
“Como é fácil de compreender, Orlando Figueira não tinha saído da magistratura, abandonando uma carreira de 24 anos imaculados de serviço e onde auferia a retribuição mensal líquida de cerca de 4 mil euros para assumir as funções de assessor no compliance de um banco, auferindo mensalmente a quantia de 3500″, defendeu, nas suas alegações, a advogada Carla Marinho.
Orlando Figueira recebeu nas suas contas no Banco Privado Atlântico Europa e em Andorra um total de 760 mil euros em luvas que chegaram em várias tranches ao longo de três anos, defende o Ministério Público. Valores que o MP acredita serem pagamentos dos processos contra Manuel Vicente que arquivou.
A primeira tranche, diz o MP, foi de 130 mil euros em forma de um crédito, logo em janeiro de 2012. E foi concedido pelo BPAE, em que a Sonangol tem mais de 20% de participação, por ordens de Manuel Vicente. Em tribunal, a versão do MP acabou também por ser desconstruída. Orlando Figueira admitiu ter contraído aquele crédito, mas para pagar as tornas do divórcio à ex-mulher, uma vez que ficou ele com a casa de família. O juiz Alfredo Costa perguntou-lhe o que fez, então, ao remanescente, uma vez que as tornas rondavam os 43.600 euros. Figueira lembrou que à data enfrentava muitas despesas, com um filho a estudar medicina nos Estados Unidos, e pediu um valor superior. “Ficava com o meu filho a meu cargo, que queria ir fazer estágios para o estrangeiro, e eu tinha que lhe dar as ferramentas que ele precisava”, precisou logo na segunda sessão.
O seu gestor de conta, Vítor Barosa, acabaria por corroborar, confirmando em tribunal que este tipo de crédito era comum à data, e que o contrato de trabalho em Angola era suficiente como garantia. Mais. Que tinham sido estabelecidas obrigações: tinha que avisar o banco caso vendesse a sua casa, “tinha uma transferência de 65 mil euros, a carteira de títulos e os 30 mil dólares, e isso é uma garantia que quase perfazia o valor total do crédito”, explicou o gestor, que afirmou ter sido André Navarro, vice-presidente do BPAE, a trazer aquele cliente. Já Navarro disse ter sido precisamente Paulo Blanco, conhecido advogado do Estado angolano, quem lhe trouxe Figueira. Curiosamente, o crédito foi aprovado pela filha de Daniel Proença de Carvalho, Graça Proença de Carvalho, responsável pelo gabinete de risco do banco.
O que ninguém conseguiu explicar à procuradora do MP foi porque é que a minuta do crédito enviado pelo BPAE para o email da procuradoria de Figueira era um rascunho de uma minuta em que consta a morada de Manuel Vicente, como reparou Leonor Machado. “Há casos para dizer que há coisas do arco da velha”, considerou. Veio, depois, a constatar-se tratar-se de um “draft”, sim, da minuta de um crédito de 14,7 milhões de euros pedido pelo enteado de Manuel Vicente para um investimento da sua empresa, a Edimo.
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Aquela que o MP refere como segunda tranche de um suborno, no valor de 210 mil dólares, é, na versão de Orlando Figueira, o adiantamento do primeiro ano de trabalho em Angola, referente a 2013, que foi pago numa conta aberta no BPAE. Orlando Figueira explicou que o valor pago à cabeça quando assinou o contrato promessa em 2012 servia como garantia para deixar o emprego na Função Pública. Mas o amigo e juiz Carlos Alexandre, que testemunhou em tribunal, chegou a avisá-lo que este adiantamento podia trazer-lhe transtornos e vir a ser considerado crime. Figueira referiu que não declarou o valor às Finanças porque não tendo, efetivamente, trabalhado, considerou uma violação do contrato com perda de sinal. E o sinal não tinha que ser comunicado em sede de IRS. Mas, aos olhos da acusação, ele não declarou o que recebeu porque este dinheiro era um suborno.
O contrato definitivo só seria assinado, no entanto, já em inícios de 2014, quando recebeu outros 265 mil dólares numa conta que abriu em Andorra. Este valor, alega, seria correspondente ao ano de trabalho (entre setembro de 2013 e setembro de 2014) que era suposto ter prestado em Angola. Mas que não prestou, mantendo-se a trabalhar como advogado e no compliance de um banco. Perante o insólito da situação, Figueira contou que neste tempo todo pensou que a demora se devia às “idiossincrasias angolanas”. Uma justificação que não convenceu o Ministério Público. Quanto à conta aberta em Andorra, teria sido uma resposta ao pedido do administrador da Primagest, Paulo Marques, e em representação de Carlos Silva, para receber aqueles valores. Mais: diz que, se quisesse esconder alguma coisa, não tinha aberto a conta em nome dele e do filho.
O nome de Paulo Marques foi também referido por diversas vezes em tribunal. Figueira afirmou que o iria substituir em Angola, uma informação depois completamente recusada por Carlos Silva. Marques trabalhava no departamento jurídico do Banco Privado Atlântico, em Angola, e terá sido um dos fundadores da Primagest com Manuel António Costa. Vinha regularmente a Portugal. Ainda assim, nunca foi ouvido ao longo da investigação. Em 2015 acabou por sofrer uma doença e morrer.
Nesse ano, depois de saber que estava a ser investigado e temendo ser acusado de fraude fiscal por não ter declarado estes valores, Figueira acabaria por decidir-se pela revogação do contrato. E foi dessa cessação contratual que tratou no escritório do advogado Proença de Carvalho, segundo ambos confirmaram em tribunal — uma informação que só foi partilhada com os procuradores que o investigaram já em novembro de 2017. Depois de várias reuniões com o advogado para acertar as questões do contrato assinado com o administrador da Primagest, Manuel António Costa, Figueira recebeu na sua conta, a 25 de junho, 114 mil euros e a 20 de julho de 2015, 79.500 euros a título de indemnização. Os 150 mil euros para pagar os impostos às Finanças foram pagos com um cheque do BPA. Valores estes que o MP acredita serem pagamentos de Vicente.
O nome do banqueiro Carlos Silva vem algumas vezes referido no despacho de acusação como ligado a Manuel Vicente, mas nunca chegou a ser considerado pela investigação um suspeito de corrupção. Só em novembro de 2017, já encerrada a instrução, Orlando Figueira viria a chamá-lo ao processo com uma intervenção bem diferente: tinha sido ele a contratá-lo e a levá-lo a abandonar a magistratura. No entanto, como parte do valor que lhe pagou fora recebido num paraíso fiscal, em Andorra, para contornar os impostos, o banqueiro ter-lhe-ia pedido silêncio quanto à sua intervenção em todo este processo. “Um acordo de cavalheiros em que o único cavalheiro fui eu”, chegou a dizer Orlando Figueira em tribunal.
Esse acordo teria sido feito já em 2015, depois de Figueira saber que o dinheiro que recebeu estava sob suspeita e debaixo de fogo. E o advogado Proença de Carvalho saberia disso tudo. Nem Carlos Silva, nem Proença de Carvalho confirmaram esta tese em tribunal. O banqueiro diz que nunca o contratou nem sequer falou de qualquer proposta de trabalho com o magistrado. “Mente com os dentes todos”, respondeu-lhe Figueira. Por seu turno, Proença de Carvalho diz que, de facto, tratou da revogação do contrato de trabalho, mas que este tinha sido celebrado com um advogado, de nome Manuel António Costa, que administrava aquela empresa. Ambos falaram em “fantasia”. E houve nova acareação. Desta vez o juiz insistiu que olhassem uns para os outros, mas as teses de cada um mantiveram-se.
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Esta nova versão dos factos levou mesmo a procuradora do julgamento, Leonor Machado, a pedir que fossem analisados vários emails que constavam no processo e que não tinham sido tidos em conta em fase de inquérito. Na caixa de correio eletrónico de Paulo Blanco foram encontrados dois emails que, em janeiro de 2012, o advogado Paulo Blanco enviou a Carlos Silva com uma minuta de um contrato de trabalho em anexo. Esse contrato promessa seguiu para Angola com o nome da empresa Finicapital, mas regressou com o nome de Primagest. Quando chegou às mãos do procurador Orlando Figueira para assinar, esse pormenor chamou-lhe à atenção. “Pesquisei na net e encontrei a ligação à Sonangol no Google, foi o que a acusação fez”, disse.
Uma informação mais uma vez recusada pelo banqueiro Carlos Silva, nas declarações que prestou presencialmente em maio. O banqueiro, que admitiu andar sempre com um iPad atrás, como aliás se conclui num dos emails trocados com Paulo Blanco, afastou qualquer relação próxima de Blanco e negou até ter lido esses emails. A maior parte da caixa de correio eletrónica era vista pela sua secretária. “Era a minha assistente que filtrava”, garantiu.
A acusação do MP precisa dois inquéritos, e um terceiro que nasce de um deles, arquivados por Figueira alegadamenge a troco de “luvas” e refere que todos os procedimentos assinados pelo procurador coincidiram com aberturas de contas e pagamentos que o levaram a trabalhar no setor privado como contrapartida.
O processo com o número 246/11.6 foi aberto em junho de 2011 após um alerta da CMVM relativamente à compra de apartamentos no condomínio Estoril Sol por várias individualidades angolanas, entre elas Manuel Vicente, por crimes de associação criminosa e branqueamento. O MP percebeu que algumas empresas, nomeadamente a Damer Industries, Delta Shipping OverSeas UK e a Portmill, empresa ligada a Manuel Vicente, tinham sido usadas para pagar o sinal de apartamentos que viriam a ser comprados por pessoas diferentes.
Apesar de ter decretado o segredo de justiça neste caso, o MP acredita que o magistrado Orlando Figueira e o advogado de Manuel Vicente, Paulo Blanco, concertaram uma estratégia relativa aos requerimentos que ele devia apresentar ao processo. E, por isso, acusa-os de violação do segredo de justiça.
Em tribunal, Blanco explicou que, por sua iniciativa, quando soube do processo pediu ao líder da Sonangol (através de Armindo Pires) que enviasse as suas declarações de rendimentos para esclarecer de onde vinham os 3,31 milhões de euros que pagaram o apartamento. Perante as provas, Figueira falou com a sua diretora, Cândida Almeida, e como se aproximavam as eleições em Angola decidiu extrair uma certidão para arquivar os factos relativos a ele.
Mas Figueira não trabalhava sozinho. Além de Cândida Almeida, tinha também uma adjunta a quem comunicava todos os passos de investigação. Existem emails no processo em que mostra que até lhe pedia opinião. Em tribunal, ambos chegaram mesmo a admitir que a sua relação era de alguma “intimidade”. Ainda assim, neste processo, Teresa Sanchez garantiu não ter percebido os motivos do arquivamento. Isto porque havia mais arguidos e em relação a eles não tinha sido feito o mesmo. Figueira explicou-lhe que Manuel Vicente tinha provado como pagou o apartamento e que se aproximavam as eleições em Angola, pelo que era importante resolver o assunto. Sanchez acabou por aceitar o argumento.
A funcionária judicial que trabalhava com Figueira, Isabel Martins, também confirmou esta necessidade de acelerar o processo. E a própria Cândida Almeida disse em tribunal ter concordado com o seu procurador. “O Dr. Orlando Figueira apareceu-me com rendimentos tais que [Manuel Vicente] podia comprar dois apartamentos e eu concordei”. A procuradora de julgamento, Leonor Machado, já em alegações finais, disse que até compreendia. “Qualquer magistrado seria sensível a imprimir mais celeridade a um caso de alguém que seria eleito para um cargo, não vejo problema, mas vejo quando não são feitas as diligências mínimas necessárias para apurar o que se passou”, ressalvou.
Para arquivar os factos relativos a Vicente, o procurador mandou extrair uma certidão para abertura de um outro processo. E este acabou arquivado, numa decisão também aprovada e assinada pela própria Cândida Almeida. Figueira ordenou ainda que o nome e a informação confidencial relativa a Vicente fosse ocultado no apenso do processo onde constavam informações sobre as suas contas. Perante a decisão, a funcionária judicial, Isabel Martins, disse em tribunal que decidiu fazer como viu na televisão, a propósito do processo Face Oculta: cortou-as com um x-acto e uma tesoura.
Mais uma vez, segundo o despacho de acusação, esta ocultação do nome de Vicente seria uma forma de apagar o nome daquele que viria a ser o vice-presidente angolano. Um pormenor mais uma vez negado por Orlando Figueira, no banco dos réus, perante o coletivo de juízes: essa informação desapareceu apenas nesse apenso do processo, constando o nome de Manuel Vicente em toda a parte do processo principal, incluindo a capa. Mais. Esta não tinha sido a primeira vez tinha decidido assim num processo.
Do inquérito que nasceu deste processo, com o número 5/12.9, o despacho de arquivamento seria proferido sete dias depois. Figueira justificou em tribunal as razões: “teve uma curta vida” precisamente porque foi aberto para ser arquivado, e não se deveu a um suborno, como acusam as suas colegas que assinam a acusação.
Depois deste caso, Manuel Vicente acabou a vender o apartamento que comprara no Estoril Sol à Oceangest, uma empresa do arguido Armindo Pires. O arguido explicou porquê. O ex-vice-Presidente angolano estava farto de ser alvo de processos e notícias contra ele em Portugal e queria livrar-se de tudo. “Manuel Vicente disse-me que não queria ter mais bens em nome dele em Portugal por causa das questões do Estoril Sol”, disse. O empresário português ficou ainda com a Edimo, a empresa do enteado de Manuel Vicente, que fundiu com a Oceangest em 2016.
O segundo (ou melhor, terceiro) inquérito referido na acusação do MP tinha sido aberto meses antes após uma denúncia da CMVM completada por informações de ativistas angolanos. Rafael Marques e Alfredo Parreira apontavam o dedo a Manuel Vicente e outros dirigentes angolanos por usarem empresas por si controladas para adquirirem participações sociais na Movicel (telecomunicações angolana) e no BESA, acusando-os de branqueamento de capitais e corrupção. O caso ganhou o número 149/11.4 e chegou também às mãos de Figueira.
Também neste caso foi declarado o segredo de justiça, embora o MP reforce que este possa ter sido violado. Isto porque no processo há um email de Blanco para o procurador-geral angolano a dizer que Rafael Marques iria ser ouvido pela Judiciária. Mais uma vez, em tribunal, Figueira defendeu-se: essa data foi marcada e alterada pela PJ. Não por ele. Também foi a Judiciária, na sua versão dos factos, que por sua ordem triou a denúncia. A coordenadora da PJ terá comunicado a Figueira que, dali, o mais relevante seria a aquisição de 24% do BESA pela Portmill Investimentos SA, negócio que resultou numa transferência de 375 milhões de dólares para o BES, em Portugal.
Neste processo, diz por seu turno o MP, Orlando Figueira chegou a mandar uma carta rogatória às autoridades angolanas a pedir informações sobre a sociedade Portmill, que seria alegadamente usada por Manuel Vicente nos seus negócios privados. Mais uma vez, Paulo Blanco fez um requerimento alegando saber da existência do inquérito pela comunicação social e reforçando que a Portmill não tinha qualquer ligação a membros do governo ou do MPLA. Mais: a proveniência dos fundos tinha origem num crédito bancário.
Teresa Sanchez, enquanto Figueira estava de férias, até chegou a pedir a Blanco que identificasse o conselho de administração da Portmill antes de 2009, uma vez que a empresa tinha sido criada em 2007. Pedia ainda contas e nomes dos responsáveis pelo conselho fiscal. A resposta não veio completa e, assim que Orlando Figueira regressou, decidiu arquivar. Sabia que nenhuma informação teria dali.
Por esta altura, já a comunicação social dava conta do interesse de Figueira pelo setor privado e fazia relações entre a futura entidade patronal e os processos que tinha em mãos. Para não dar falatório, diz o MP, foi a própria Cândida Almeida quem lhe solicitou que pedisse para ser afastado dos inquéritos que envolvessem personalidades angolanas. Mesmo assim, Figueira arquivou o caso, acrescenta a acusação.
Nas palavras de Figueira, nada foi assim. De facto, Blanco juntou documentos ao processo, em representação da Portmill, quando o procurador estava de férias. Mas, quando regressou, e dadas as notícias sobre si, foi ele quem comunicou a Cândida Almeida que era melhor ser afastado destes inquéritos. Nessa conversa ambos concluíram que este inquérito estava pronto para ser despachado, e seria arquivado. Esse arquivamento teve o crivo de Cândida Almeida, que o enviou depois para o procurador-geral Pinto Monteiro certificar que nada havia de errado quanto ao seu despacho de arquivamento. Ainda assim, o processo acabaria reaberto e incorporado num outro em que Manuel Vicente era investigado — curiosamente por ordem de Orlando Figueira, enquanto investigava o outro processo que arquivou. E acabaria novamente arquivado pelo procurador Paulo Gonçalves em 2013.
Outro dos imbróglios levantados no processo prendeu-se com o nome comum de empresas diferentes. E uma delas foi precisamente a Portmill. Segundo o MP, esta empresa, que estaria ligada a Manuel Vicente, adquiriu os apartamentos no Estoril Sol e 24% do BES Angola — alvo de dois inquéritos distintos que caíram nas mãos de Orlando Figueira.
Mas, em julgamento, os arguidos tentaram desmontar esta tese. O advogado Paulo Blanco, que garante que num processo representou Manuel Vicente e noutro a Portmill, explicou que a Portmill – Investimentos e Telecomunicações, SA identificada na acusação “não é a mesma que procedeu ao adiantamento de uma tranche dos sinais”. A primeira trata-se de uma empresa de direito angolano, então acionista de referência da Unitel; e a segunda, Portmill-Limited, está sedeada num país estrangeiro e é acionista da Movicel, disse. Depois mostrou transferências que mostram tratar-se de duas entidades distintas. E explicou que, neste segundo processo, não era Manuel Vicente quem estava a ser investigado e que representava, mas a segunda Portmill. Assim, tenta derrubar a tese da acusação de que interessava a Vicente arquivar.
A carta anónima investigada pela PJ referia já que Figueira teria recebido um empréstimo “fingido” pelo banco dos angolanos, o BPAE, e que numa conta ali aberta teria recebido 210 mil dólares. A PJ pediu então informações sobre as contas de Figueira ao Banco de Portugal, mas a resposta foi a inexistência de qualquer conta. Incrédulos, os investigadores analisaram os movimentos nas outras contas do magistrado, e perceberam que alguns valores tinham mesmo origem no BPAE.
Assim, no relatório da PJ que antecedeu as buscas à casa e aos escritórios de Figueira e Paulo Blanco, os investigadores acreditavam ter confirmado “o teor da denúncia” e que o BPAE teria “omitido deliberadamente essas contas” — havendo suspeitas de branqueamento contra o banco. Nesse relatório foram também pedidas buscas à casa de Angélica Conchinha, a representante da Primagest em Portugal.
As duas contas abertas por Orlando Figueira em seu nome e do filho e em nome individual (gerando duas contas associadas para movimentar dólares) só chegaram ao conhecimento do Banco de Portugal depois de uma ação de supervisão, cinco anos após a sua abertura. Mas o MP acabou por perceber, mais tarde, porquê: tinha havido um erro informático no banco e por isso não houve comunicação. Não havia matéria para crime. Por isso, quando chegou a tribunal, o BPAE já não era nem suspeito nem arguido.
Em tribunal, uma das funcionárias do departamento de compliance do BPA, Sandra Osório, acabaria por admitir que este erro aconteceu com, pelo menos, 35 contas e nada teve a ver com uma ocultação das contas de Orlando Figueira. Figueira foi considerado uma Pessoa Exposta Politicamente (PEP) pelo banco, o que de acordo com a lei do branqueamento de capitais obrigaria o banco a ter mais atenção a todos os seus movimentos bancários.
A empresa que contratou Orlando Figueira foi sempre sendo referida ao longo das 50 sessões de julgamento. Por um lado, o MP queria demonstrar a sua ligação a Manuel Vicente, por outro a defesa pretendeu colocá-la na esfera do banqueiro Carlos Silva.
Segundo a acusação, a Primagest foi criada em 2007 para gerir participações de bens móveis ou imóveis. Com sede em Luanda, era gerida, desde 2011, pelo advogado angolano Manuel António Costa — que administra uma série de outras empresas angolanas e que será, segundo o MP, um testa de ferro de empresários angolanos com empresas em Portugal. Sendo uma sociedade veículo, a empresa não tem funcionários ou instalações e era, em Portugal, representada por Angélica Conchinha.
A história de Conchinha é a de uma mulher que subiu a pulso. Um dia cruzou-se no edifício onde trabalhava com a irmã de Carlos Silva, tornou-se amiga dela e esta recomendou-a ao pai do agora banqueiro do BPAE. Conchinha assinou contrato com a empresa familiar, de nome Ifogest, sobre a qual iriam gravitar dezenas de empresas angolanas. Tantas que, em tribunal, a advogada não conseguiu quantificar, mesmo sendo representante fiscal de quase todas elas.
Foi no escritório dela que a Polícia Judiciária encontrou vários documentos com empresas ligadas umas às outras pelos conselhos de administração. Encontrou também uma cópia dos documentos de Manuel Vicente para, assim, fazer a sua ligação à Primagest. Mas, mais uma vez, em tribunal ninguém garantiu que era ele quem estava por trás deste universo. Pelo contrário.
Conchinha disse que, provavelmente, a cópia dos seus documentos se devia ao facto de a Sonangol ser acionista do BPAE e de ele ser o presidente. E explicou que foi com a Ifogest que os primeiros funcionários do banco fizeram um contrato de trabalho, antes de ser emitida a licença bancária.
A defesa aproveitou os documentos apreendidos a Conchinha em seu proveito. Num organograma que consta no processo, e foi mais do que uma vez projetado na parede do tribunal, o advogado João Lima Cluny (de Armindo Pires) insistiu com a testemunha. “Recolha de informações de sociedades do Grupo”, lia-se no título. “Qual Grupo?”, perguntou-lhe o advogado. “Não é um grupo como uma SGPS…”, respondeu, reticente, Angélica Conchinha. “Não me estranharia que fosse um grupo, as pessoas são praticamente as mesmas”, respondeu-lhe. No documento percebe-se que o general Leopoldino Nascimento tem 60% da Ifogest (comprou-a ao pai de Carlos Silva, Hortênsio Silva), segue-se o acionista Manuel António Costa (da Primagest), Paulo Marques, (também da Primagest, mas que morreu antes do julgamento) e José Soeiro. Estes nomes vão-se repetindo nas 18 empresas elencadas, uma delas a Leadervalue, mas nunca a Primagest. Somando-se outros nomes, como o de Tiago Silva, irmão de Carlos Silva, ou de Iglesias Soares, do Millennium BCP.
A procuradora Leonor Machado também achou suspeito este documento apreendido em fase de inquérito. E perguntou-lhe se era “costume pedirem-lhe para criar sociedades”. “Não considero que houvesse constituição de sociedades em catadupa além das situações aqui mencionadas”, respondeu-lhe a empresária. E a procuradora insistiu: “Ficava com a ideia que os órgãos sociais eram de fachada? É a ideia que dá”. A resposta foi negativa.
Para justificar a ligação da Primagest a Manuel Vicente, a acusação do Ministério Público assinada por Inês Bonina e Patrícia Barão socorreu-se, também, da aquisição da Coba – Consultores de Engenharia e Ambiente pelos angolanos. Refere o MP que nesse negócio, celebrado em 2010, foram usadas as empresas Primagest, Berkeley e Leadervalue, mas que o verdadeiro interessado na compra foi a Sonangol, que liderou o consórcio. A prova? Um comunicado que foi na altura amplamente divulgado pela comunicação social dando conta do negócio e usando o nome da Sonangol.
Já em julgamento, a procuradora Leonor Machado insistiu com o advogado N’Gunu Tiny, que representou a Primagest, sobre esta ligação com a Sonangol, mas ele escudou-se no sigilo profissional para não responder se a Primagest que pagou a Figueira estava ou não ligada a Vicente. Mas deixou claro porque qualquer empresário à altura se queria associar à petrolífera angolana. “Em 2010 e 2012 não havia investidores para investir em Portugal como há hoje. E, por uma questão de estratégia negocial, quer do comprador, quer do vendedor, gostavam de associar os seus negócios à Sonangol, dava prestígio e poder negocial”, respondeu.
A origem da informação veio do presidente do conselho de administração da Coba, Ricardo Oliveira, que aceitou vender 70% da empresa ao consórcio angolano. Também ele foi ouvido em fase de inquérito pelo MP e, depois, em audiência de julgamento, para afirmar que só vendeu a Coba porque o comprador era a Sonangol.
Porém, o vice-presidente do conselho de administração da Coba Holding, Vítor Carneiro, foi ainda mais claro quando esclareceu que nunca lhe disseram quem estava por trás da Leadervalue, da Primagest ou da Berkeley e que uma eventual ligação com a Sonangol e a Manuel Vicente nunca fora “clarificada”. Mais. Que embora o comunicado tenha sido aprovado por N’Gunu Tiny e mencionasse uma relação entre a Primagest e a Sonangol, esta relação nunca foi concretizada através das cartas de conforto destinadas aos bancos que financiavam a Coba. E houve bancos que lhes fecharam as contas caucionadas por isso.
O facto de o MP se ter baseado numa ligação expressa em notícias foi alvo de críticas por parte da defesa, principalmente de Rita Relógio, advogada de Paulo Blanco. Segundo ela, a investigação baseou-se em fontes abertas, como o Google e a Wikipedia. Mas, nas suas alegações finais, a procuradora Leonor Machado fez questão de enaltecer o jornalismo de investigação, dando-o como uma fonte credível.
Também os inspetores da PJ chamados a depor não conseguiram mostrar grande certeza na ligação da Primagest à Sonangol, acabando por derrubar a acusação. Anabela Ruivo, a primeira inspetora da PJ a deslocar-se ao tribunal, diz que quando interveio no processo, depois de uma baixa médica, era já “um dado adquirido que a Primagest pertencia à Sonangol”, pelo que nem sequer o questionou. Perante as suas declarações, foi a própria procuradora Leonor Machado quem pediu que fossem chamados os restantes inspetores da PJ que estiveram com a investigação: Pedro Fonseca e Bruno Miguel.
Bruno Miguel, responsável por uma das brigadas da Unidade Nacional de Combate à Corrupção, explicou que, quando o processo foi delegado pelo MP à Judiciária vinha já dispensado do sigilo bancário e com a informação de que o alvo do processo seria um magistrado do MP que teria sido corrompido por “entidades angolanas”. Começaram a analisar os movimentos bancários e começaram a descobrir algumas coincidências.
A PJ foi, depois, “procurar a motivação” do alegado do crime. “Começámos por analisar os processos tramitados pelo senhor procurador”, disse. “E encontrámos a coincidência de datas”. Mais à frente na inquirição esclareceu que alguns pagamentos feitos a Figueira coincidiram com a data em que foi extraída uma certidão de um processo, relativa a Manuel Vicente, que acabaria por ser arquivada.
Os investigadores perceberam também que os pagamentos feitos a Orlando Figueira provinham de uma empresa angolana, com representação em Portugal, de nome Primagest. “O processo visava o Dr. Manuel Vicente e na altura era ele presidente da Sonangol. Como é que nós ligámos? Não foi por via dos pactos sociais das empresas, mas foi por via de informação obtida em fontes abertas. E havia várias informações que diziam que a Primagest era ligada à Sonangol”, respondeu o inspetor chefe à procuradora do MP, Leonor Machado.
O inspetor chefe explicou ainda que os emails que constam no processo foram analisados por descritores sugeridos pelo MP e pelos próprios investigadores. O coordenador da Unidade da PJ que investigou o caso, Pedro Fonseca, viria a justificar esta informação (mesmo antes de lhe perguntarem). É que o “acervo” de emails era tão grande e tão pesado que dificilmente havia condições e recursos humanos para o passar a pente fino.
Segundo o relatório da PJ, quando entraram na casa de Orlando Figueira pediram-lhe para fazer uma pesquisa no seu computador para perceber o que queria levar. E as palavras-chave que levavam previamente definidas pelo MP foram: Orlando, Primagest, Sonangol, EstorilSol Residence, Fund Box, Fundor, Banco lnvest, Vicente, Álvaro Sobrinho, Morais Júnior, Leopoldino, Giotetty, Kopelipa, Rabelais, Sergeenkov, Blanco, Angélica, Nazaki, Portmill, Damer, Delta Imobiliária, Aquatro, assim como os números de cinco processos investigados por Orlando Figueira. De fora ficaram os números de três outros processos-crime relativos à elite angolana, que podiam estar relacionados com Figueira.
O inspetor revelou ainda que o processo só esteve na PJ numa fase inicial e que foi depois concentrado no MP.
Testemunhas que foram a tribunal e viram, depois, os seus testemunhos serem desconsiderados. Contradições que vão levar à instauração de inquéritos. Testemunhas que vieram de Angola de propósito e outras que desapareceram em Angola e não foram sequer notificadas a prestar declarações. O rol de testemunhas do caso Fizz foi vasto e contou com magistrados, advogados, banqueiros e bancários portugueses e angolanos. Mas não foi fácil.
Quando o julgamento arrancou, já Orlando Figueira e Paulo Blanco tinham trazido um dado novo para o processo: tinha sido o vice-presidente do Millennium BCP e presidente do BPAE, Carlos Silva, a contratá-lo para uma das suas empresas. Tudo pela sua competência. A versão lançada ao primeiro dia de julgamento motivou um comunicado de Carlos Silva, a dizer que nem sequer tinha sido notificado a testemunhar no processo, mas que estaria disponível para isso. Em articulação com o tribunal, a sua audição acabou marcada para a primeira semana de maio. Mas, no fim, não convenceu a procuradora Leonor Machado, que já em alegações finais prometeu mandar extrair uma certidão em seu nome, para que seja investigado num processo à parte.
O advogado Paulo Blanco tinha dito em tribunal que chegou a contactar Carlos Silva, a pedido do procurador Rosário Teixeira, para que ele fosse inquirido como testemunha num processo que estava a investigar. Silva confirmou esse encontro, em maio de 2011, e explicou que, de facto, no final da inquirição apareceu Orlando Figueira. Por “cortesia”, acabou por combinar um almoço para um dia daquela semana, o que viria a acontecer no Hotel Ritz. O tal almoço entre Silva, Blanco e Figueira que os arguidos dizem ter terminado num convite de trabalho, enquanto o banqueiro nega.
Também o advogado Daniel Proença de Carvalho não disse o que os arguidos queriam ouvir. Orlando Figueira põe o advogado entre ele e Carlos Silva no acordo de revogação do contrato de trabalho. Mas Proença de Carvalho sai de cena para um outro plano. Diz que só representou Carlos Silva num único processo e que se limitou a fazer um favor a Figueira, por também ele ser advogado. E disse que o representante da Primagest era Manuel António Costa e nunca ouvira, neste processo, falar de Carlos Silva. O seu testemunho também não parece ter convencido a procuradora do julgamento, Leonor Machado, que também anunciou que será alvo de um processo crime.
Outros incidentes com testemunhas prenderam-se com magistrados e advogados que estiveram diretamente envolvidos na operação que levou à detenção dos arguidos. Por exemplo, o procurador Ricardo Matos, que herdou um dos processos arquivados por Figueira — dando-lhe igual destino em 2015 — chegou a depor em tribunal. Mas o juiz Alfredo Costa acabaria por invalidar o seu testemunho seguindo o pressuposto que o levou a recusar ouvir o procurador Rosário Teixeira: tinha tido intervenção no processo. Os advogados do BPAE aproveitaram o mesmo argumento para não depor: estavam presentes quando decorreram as buscas ao banco.
Este argumento do juiz será escrutinado pelo Tribunal da Relação, mal seja lido o acórdão. É que a procuradora do inquérito, Inês Bonina, não concordou e acabou por recorrer para o Tribunal da Relação. No recurso invocou um artigo que até pode vir, no limite, obrigar a repetir o julgamento: também uma das juízas que integra o coletivo participou numa busca neste inquérito, ao escritório de Angélica Conchinha.
Em tribunal foi também ouvido o juiz Carlos Alexandre, amigo de longa data de Figueira, a sua procuradora adjunta, Teresa Sanchez, com quem mantinha uma relação de “intimidade”, a sua chefe, Cândida Almeida, e a sua irmã. A ex-mulher usou do seu direito de não ser ouvida, por ter uma relação familiar com ele e acabou por acompanhar a sessão na audiência. Mais tarde mudaria de ideias, mas como estava dentro da sala a ouvir o julgamento, acabou impedida de falar.
Por ouvir ficaram os representantes da empresa central no processo, a Primagest: Agostinho Afonso, o beneficiário final da empresa, como Manuel António Costa, seu administrador, que as defesas consideraram “fundamental” para atestar, ou não, uma possível relação da empresa com a Sonangol. A audição de Manuel António Costa, aliás, chegou a estar marcada, mas um dia antes da sua audição, via Skype, o consulado informou o tribunal que não o tinha conseguido notificar e que este, agora, viveria em Moçambique. Já Agostinho Afonso, cujo advogado chegou a enviar um documento para o processo, dias antes da audição de Carlos Silva, também não foi localizado. Os depoimentos que prestaram por carta rogatória às procuradoras do inquérito acabaram por ser lidos em tribunal.
Já na reta final do julgamento, o MP pediu que fossem, ainda, ouvidos dois inspetores da PJ que não era previsto ouvir. O pedido foi feito depois de a inspetora Anabela Ruivo ter declarado em tribunal que, quando pegou na investigação, foi-lhe dado como “adquirido” pelo MP que a Primagest pertencia ao universo da Sonangol, e que estaria ligada a Manuel Vicente, logo nunca questionou o contrário.
Os crimes que desapareceram
O julgamento arrancou com quatro arguidos: Manuel Vicente, Paulo Blanco e Armindo Pires acusados de corromperem o magistrado Orlando Figueira. E chegou ao final apenas com três arguidos: Blanco e Pires acusados de corrupção ativa e Figueira de corrupção passiva. Em causa estiveram, também, os crimes de branqueamento, falsificação de documento e violação de segredo de justiça.
Leonor Machado fez passar algumas mensagens em alegações finais que mostram que ficou convencida de que houve corrupção e que o corruptor foi Manuel Vicente, provavelmente através de Carlos Silva, cuja ligação “ficou clara”. E disse que o jornalismo de investigação deve ser considerado como prova circunstancial, pelo que o comunicado do negócio da Coba que estabelece a ligação entre a Primagest e a Sonangol deve ser considerado. No entanto, não considerou que o que foi mostrado em julgamento fosse suficiente para uma prisão efetiva, devendo Figueira e Blanco serem condenados, mas a uma pena suspensa até cinco anos.
Figueira, aos olhos da procuradora de julgamento, deve ser penalizado com mais força, uma vez que ocupava um cargo de magistrado conhecedor dos meandros do crime. No entanto, como esteve preso dois anos, defendeu que, como pena acessória, devia ser condenado a ficar afastado das funções de magistrado durante cinco anos. Já a Blanco, desejou que fosse condenado a uma pena suspensa até cinco anos por corrupção.
O coletivo de juízes, que já nas últimas sessões garantiu ter já uma convicção do que aconteceu, marcou a leitura do acórdão para o dia 8 de outubro. Só nesse dia se saberá qual é.