A música tinha começado há nove horas e há nove horas que os festivaleiros do Supernova não paravam de dançar. O festival que começou por volta das dez da noite de dia 6 de outubro ia-se estender até ao final de sábado, dia 7.
A pista estava, por isso, completamente cheia às primeiras horas da manhã daquele sábado, com o sol já a nascer num dia de muito calor no deserto do Negev, em Israel, a cerca de cinco quilómetros da fronteira com a Faixa de Gaza, perto do Kibbutz de Re’im. Foi exatamente nessa altura que os milhares de jovens que ali tinham ido festejar começaram a avistar pontos cinzentos no céu e a ouvir aquilo que depois se veio a confirmar que seriam tiros.
Um desses jovens era Ido Derby, um fotógrafo israelita de 20 anos, que fazia parte de uma equipa de 16 fotógrafos oficiais do Supernova. Em conversa com o Observador, Ido conta os momentos de horror que viveu ao fugir do recinto do festival. Sobreviveu, não ficou ferido, mas viu muitos morrer.
Poucos dias depois do massacre a que assistiu, Ido decidiu publicar todas as fotografias que tinha tirado durante as primeiras nove horas de festival. E explica porquê. “Divulguei as fotografias para ajudar os pais que não têm qualquer notícia dos seus filhos, porque morreram ou provavelmente foram raptados, mas também para as autoridades tentarem identificar as pessoas que não conseguiram fugir e que foram brutalmente mortas”, conta ao Observador o jovem fotógrafo que é natural de uma cidade perto de Telavive.
O fotógrafo acredita que essas identificações podem ser possíveis através das roupas ou das tatuagens das pessoas que fotografou: “Li muitas notícias sobre o festival e vi que muitas daquelas pessoas, devido aos ferimentos, não estavam a conseguir ser identificadas. As fotografias podem ajudar nessa identificação. Seja com o tipo de roupa que tinham vestido ou por alguma tatuagem, não sei”, desabafa Ido. “Também para ajudar os pais de todas aquelas pessoas… Talvez conforte os pais verem a última fotografia dos seus filhos a sorrir, porque são as últimas fotografias dos seus filhos a sorrir”.
De facto, desde que disponibilizou todas as suas fotos, Ido Derby tem recebido inúmeras mensagens de amigos e familiares de algumas daquelas pessoas de quem agora ninguém sabe o paradeiro. “Recebo diariamente mensagens de pais que me escrevem e agradecem por ter fotografado, pela última vez, com vida, os seus filhos. Mas também recebo mensagens de pais a dizer que nada sabem dos seus filhos, não sabem se estão mortos ou vivos, e, se estão vivos, onde é que estarão. É muito difícil. Não sei o que responder”, desabafa.
“Começámos a ouvir tiros mas ninguém sabia o que é que se estava a passar”
Ido Derby assistiu à invasão dos membros do Hamas no festival onde ele, os seus amigos e colegas estavam. Foi um dos primeiros a chegar ao recinto. Tinha ido de carro desde a sua cidade, perto de Telavive, com mais dois amigos. Eles iam divertir-se. Ele trabalhar. Começou desde muito cedo a fotografar festas de electrónica, e rapidamente começou a ser chamado para os grandes eventos deste tipo de música, como era o caso.
Através de mensagens escritas via WhatsApp, o jovem fotógrafo conta ao Observador que chegou ao festival ainda antes “da primeira música começar a tocar” e que saiu assim que a “primeira bala” foi disparada contra os milhares que se estavam a divertir.
“Não percebemos logo o que é que se estava a passar. Pensávamos que eram foguetes do festival. De repente a música acaba, sem percebermos porquê”, conta Ido. Diz ainda que depois da música parar, todas as pessoas ficaram chateadas e começaram a pedir que a música retomasse.
“Estamos em alerta vermelho”. Foi este o aviso que Ido e muitos dos sobreviventes relatam ter ouvido pelas colunas do festival. “Rapidamente começámos a ouvir tiros e toda a gente a fugir. Eu estava com mais dois amigos e corremos também para o carro. Mas ainda não sabíamos o que é que estava a passar, estávamos só a seguir as outras pessoas. Ninguém sabia o que é que se estava a passar, apesar de estarmos a ouvir cada vez mais perto os barulhos do que descobrimos depois serem tiros”, relembra Ido.
Os momentos que se seguiram foram de completo terror para todos aqueles jovens, garante Ido. Lembra-se que conseguiu arrancar com o carro, mas estava muito trânsito e quando chegaram a uma estrada um polícia disse-lhes, a gritar: “Saiam da estrada, vão com os vossos carros pelos campos”. Assim fez, mesmo sem ele ou o amigo perceberem ainda o que é que estava a passar ao certo.
“Entrámos pelos campos a alta velocidade e começámos a ouvir mais tiros, aí não tivemos dúvidas nenhumas que seriam tiros. Voltámos para trás e mudámos a direção do carro e foi aí que vimos toda a gente a fugir a pé, a correr. Voltámos novamente para trás, na mesma direção para onde estavam a correr as outras pessoas, para tentar escapar aos tiros”, vai relembrando, enquanto tenta explicar em palavras aquilo que lhe é difícil ainda entender.
Ido fotografou durante horas aquelas milhares de pessoas “a rir, a dançar, abraçadas umas às outras”. Isso ninguém lhe tirará da memória. Tal como não lhe sairá da memória os momentos terríveis que viveu depois naquelas primeiras horas da manhã do dia 7 de outubro. Nem nunca esquecerá a última fotografia que tirou no recinto do festival: a de uma mulher deitada no chão, com os braços a cobrir a cabeça, a proteger-se dos tiros constantes. Essa mulher, soube depois, morreu.
Todos os seus amigos sobreviveram, mas muitos colegas de trabalho e pessoas que conheceu no festival não sobreviveram. Ficaram as suas fotos. “Esta é a minha tentativa de homenagem a essas pessoas”, diz Ido ao despedir-se.