Chegou a Nova Iorque vinda da Gâmbia, o pequeno país encaixado no meio do Senegal onde nascera 15 anos antes, sozinha, na noite de 25 de dezembro de 2004, três meses depois de perder a mãe, diagnosticada com cancro um ano antes.
No aeroporto, à espera para a levar para a casa de uns tios que viviam no Bronx, estava o futuro marido. Jaha Mapenzi Dukureh nunca o tinha visto. Mas desde os 8 anos que sabia que era com ele — com aquele homem, 25 anos mais velho — que um dia iria casar. Só ainda não sabia o resto: que não era apenas uma vítima dos casamentos infantis, combinados por tradição e conveniência entre os serrahule, grupo étnico a que pertencia, mas que tinha sido também submetida a um outro costume, ainda mais bárbaro, justificado por religião, hábito e cultura.
Só na noite do seu casamento, depois de ser lavada, esfregada com óleos, vestida com roupas brancas e deixada no quarto à espera do homem a quem tinha sido prometida, é que Jaha Dukureh, então adolescente, descobriu que tinha sido vítima de mutilação genital feminina (MGF).
Pior do que isso: só depois de o recém-marido ter tentado, insistente, repetida e dolorosamente, consumar o casamento, é que Jaha percebeu que tinha sido submetida ao pior tipo de mutilação genital feminina que existe — para além de excisada de clitóris, grandes e pequenos lábios, tinha sido depois cosida e deixada sem vagina, apenas com um pequeno orifício por onde urinar e menstruar.
Voltaria a ser “cortada” algumas semanas depois, numa pequena clínica obscura de Manhattan, por um médico que não fez perguntas nem estranhou que uma miúda tão nova estivesse já casada, ainda por cima com um homem tão mais velho. “Tens de ter sexo esta noite, ou isso vai fechar outra vez”, foi o que se limitou a dizer-lhe.
Terá tido — nessa noite e pelo menos durante dois meses mais, que foi o tempo que durou o casamento. Chegou a tentar pôr fim à própria vida. Depois, disse ao pai que não conseguia aguentar, refugiou-se em casa dos tios e, como eles não a quiseram matricular numa escola, foi ela mesma, sozinha, tentar arranjar lugar numa turma — e, à décima primeira tentativa, lavada em lágrimas no gabinete do diretor, conseguiu.
Estudava durante o dia e à noite servia às mesas de um restaurante no Harlem, para pagar o almoço e comprar roupas — incluindo o vestido que um dia levaria ao baile de formatura. Ainda chumbou dois anos, mas, finalmente, acabou por conseguir acabar o ensino secundário. Pouco tempo depois, soçobrou e telefonou ao pai a dizer-lhe que queria casar-se outra vez: não suportava mais as pessoas que sabiam que ela estava sozinha, sem qualquer tipo de apoio familiar, e tentavam aproveitar-se dela, explicaria anos mais tarde em entrevista.
Recebeu a chamada da Gâmbia no espaço de um dia: tinha outro marido, Hajie, à sua espera em Atlanta, na Geórgia. Voltaria a casar com um homem que não conhecia, mas desta vez seria diferente: casava por vontade própria e com alguém com uma idade mais próxima da sua.
Muhamed, o seu primeiro bebé, nasceu quando Jaha tinha 20 anos. Khadija nasceu um ano mais tarde, numa altura em que acumulava o curso de administração de empresas com um emprego como caixa de banco. Foi a chegada da filha, hoje com 9 anos, contou esta quarta-feira ao Observador, no 19.º andar de um hotel de cinco estrelas no centro de Lisboa, que lhe deu o clique que a transformou em ativista e a faz lutar, desde então, pelo fim da mutilação genital feminina em todo o mundo — “Senti que, se não fizesse nada, a minha filha ia viver o mesmo que eu”.
Não fez pouco durante estes últimos nove anos: criou uma petição que mais de 220 mil pessoas assinaram, para a promoção de um estudo sobre a MGF nos Estados Unidos; foi recebida por Barack Obama na Casa Branca; criou a Safe Hands for Girls e regressou a África para combater o problema in loco — logo em novembro de 2015, conseguiu que o presidente da Gâmbia proibisse a prática no país e, em junho deste ano, que os imãs de al-Azhar, o principal centro de aprendizagem islâmica sunita do mundo, no Egito, declarassem uma fatwa aos casamentos infantis.
Pelo meio teve mais um filho, Abu Sidiq, hoje com 5 anos, foi considerada uma das 100 pessoas mais influentes do mundo pela Time, tornou-se embaixadora da boa-vontade das Nações Unidas para o continente africano e contou a sua história num documentário. Há quase três anos, viajou com toda a família para Banjul: “Fomos passar duas semanas, nunca mais regressámos. Nunca fiz planos para me mudar, mas atualmente vivo entre a Gâmbia e o Senegal. Os meus filhos estão comigo, o meu marido entretanto voltou para os Estados Unidos”, conta a ativista, que, desde o início de 2018, tem percorrido as aldeias daqueles dois países ao volante de uma carrinha cor de rosa.
Esta sexta-feira, na Assembleia da República portuguesa, Jaha Dukureh recebeu o Prémio Norte-Sul, atribuído anualmente pelo Conselho da Europa a duas personalidades, uma de cada hemisfério, que se tenham destacado na defesa dos direitos humanos (o eurodeputado francês Daniel Carême foi o outro galardoado deste ano).
A Organização Mundial de Saúde estima que em todo o mundo existam mais de 200 milhões de mulheres e raparigas submetidas a MGF e determina que, nos 30 países onde a prática mais se concentra — sobretudo em África, mas também no Médio Oriente e em algumas zonas da Ásia — 3 milhões de raparigas correm o risco de serem “cortadas” todos os anos. Mais: como consequência dos fluxos migratórios, esse risco estende-se hoje também a América do Norte, Austrália e Europa. Em Portugal foram registados 63 casos de MGF em 2018. A contagem deste ano, até agosto, já ascende aos 54.
Nasceu numa pequena aldeia na Gâmbia, dá ideia de que numa família privilegiada…
Sim, nasci numa aldeia, mas o meu pai não era pobre, a minha família nunca foi pobre, diria que cresci numa família de classe média… a minha família estava envolvida na indústria dos diamantes na África Ocidental, portanto diria que tínhamos uma boa situação.
Como foi a sua infância? O seu pai tinha quatro mulheres?
Sim, o meu pai tinha várias esposas… tive uma ótima infância, a minha mãe era incrível, fui à escola, tinha amigos… vivi uma infância muito normal, comparada com a maior parte das pessoas. Quer dizer, fui submetida a mutilação genital feminina (MGF) quando tinha uma semana de vida, mas não me lembro de nada.
Sendo que, nessa altura, nem sequer sabia que isso lhe tinha acontecido. Só descobriu mesmo aos 15 anos?
Sim, nem sabia o que era MGF.
Enquanto criança na Gâmbia, e sendo a MGF uma tradição cultural no país, viu outras raparigas serem “cortadas”?
Não, não, não. Nunca vi. Sei que era uma tradição, tanto para as raparigas como para os rapazes; na minha família, quando nasciam, eram circuncidados, mas não fazíamos uma cerimónia pública disso. Na minha cultura, era uma coisa muito privada, os pais levam a criança a quem faz o corte e voltam para casa, sem que ninguém veja. Há outras culturas na Gâmbia em que isso acontece. Todos os anos, durante as férias escolares, era normal ver raparigas que tinham sido recentemente cortadas em desfile pelas ruas, a irem de casa em casa, a cumprimentar as pessoas.
Cresceu sem saber que tinha sido cortada e nunca teve possibilidade de falar com a sua mãe sobre isso.
Não, ela faleceu entretanto…
Mas soube aos 8 anos que tinha um casamento arranjado. Como foi crescer com essa perspetiva?
Foi estranho, em vários sentidos. Enquanto criança, ia à escola e tinha amigos, havia rapazes de quem eu gostava, e estavam a acontecer muitas coisas na altura, foi a fase em que estava a tentar conhecer-me. Saber que tinha um marido na América, que eu não conhecia, para mim era algo que me envergonhava, não queria que os meus amigos soubessem.
Mas não era uma coisa normal na Gâmbia?
Não necessariamente, ainda para mais porque, na altura, eu vivia na cidade. Na minha tradição, no meu grupo étnico, é normal, mas nos outros grupos étnicos da Gâmbia não.
Quando tinha 15 anos, foi enviada para Nova Iorque.
Sim, para casar. Fiquei em casa dos meus tios durante uns dias e depois foi a cerimónia e casei.
E foi então que descobriu.
Sim, que não tinha sido apenas circuncidada, mas que tinha sido submetida a uma MGF de tipo 3.
Foi quando a sua filha nasceu que percebeu que tinha de fazer alguma coisa em relação a isso?
Quando ela nasceu, decidi que tinha de fazer alguma coisa em relação à MGF e aos casamentos infantis e quebrar o silêncio cultural na nossa comunidade. Senti que, se não fizesse nada, a minha filha ia viver o mesmo que eu.
Acredita mesmo nisso? Quer dizer, a sua experiência é diferente da da sua mãe, vivia num país diferente, conseguiria sempre protegê-la, não?
Sim, eu estudei e sou independente, sei que a minha filha não ia passar pelo mesmo que eu. Muito do que a minha mãe fez, fez por pressão social. Eu tinha uma escolha, porque consigo sustentar-me e aos meus filhos, a minha mãe não teve escolha em muitas das decisões que tomou.
É por isso que diz que a questão da MGF não tem a ver com educação, dinheiro ou religião, mas apenas cultura?
Exatamente.
Chegou a encontrar-se com Barack Obama, depois de criar a petição?
Sim, ele era o presidente dos Estados Unidos, discursei numa cimeira na Casa Branca e fui depois convidada para outros eventos. No geral, o presidente Obama é um tipo óptimo.
Acha que foi graças à intervenção dele que chegou aqui?
Não, definitivamente não. Houve muitos momentos importantes ao longo do caminho, um deles foi conseguir que a lei que tornou a MGF ilegal na Gâmbia fosse aprovada. O segundo aconteceu recentemente, foi conseguirmos que a Universidade al-Azhar emitisse uma fatwa contra os casamentos infantis. Já tínhamos conseguido uma fatwa contra a MGF mas, para ser sincera, nunca pensei que isto fosse possível. Mas não creio que o meu trabalho tenha o que quer que seja a ver com o presidente Obama. Quando conheci o presidente Obama, não foi por ele ter feito alguma coisa, mas porque mais de 220 mil pessoas de todo o mundo se juntaram para fazer alguma coisa e assinaram a minha petição a exigir que o CDC [Centro de Controlo e Prevenção de Doenças] fizesse aquele estudo. Não acho que os políticos tenham feito de mim o que sou hoje, acho que as comunidades que eu sirvo é que o fizeram.
Aliás, pelo que sei, até acha o contrário, que os políticos não têm uma vontade efetiva de acabar com a MGF.
Acho que os políticos dizem o que querem e muitas vezes não acredito em metade daquilo que eles dizem. Dizem aquilo que for preciso para impressionar as pessoas, dizem o que as pessoas querem ouvir. Sim, a vontade política é importante, mas não é a única coisa necessária.
O que é que é necessário? Para acabar tanto com a MGF como com os casamentos infantis?
Trabalho de campo. Sendo que não conseguimos acabar uma sem os outros.
Porquê? Qual é a ligação entre as duas coisas?
Ambos são formas de patriarcado. Vivemos numa comunidade muito patriarcal, em que a MGF acontece para preparar as raparigas para o casamento e em que os casamentos infantis acontecem para evitar gravidezes, portanto ambos são formas de subjugar as mulheres e de controlar os corpos delas. A primeira coisa que acontece a uma rapariga é a MGF, a segunda é o casamento infantil.
A MGF foi proibida na Gâmbia em 2015. O que aconteceu desde então?
Acho que as coisas estão a melhorar. Não sei os números de cor, acabámos agora de fazer um estudo, ainda não comparámos os dados atuais com os anteriores…
Mas já alguém foi criminalmente punido por isso?
Sim, tivemos um caso de uma rapariga que morreu. Tanto a pessoa que a cortou como a avó foram presas.
Criou a fundação em 2013. Ao longo destes anos, já conseguiu fazer muita gente mudar de ideias. O seu pai foi um deles?
O meu pai hoje é um dos maiores apoiantes do meu trabalho, vai a todas as minhas conferências, ajuda-me muito. Demorou muito tempo até chegarmos aqui, houve uma altura em que eu nem podia falar com ele sobre este assunto. A minha relação com o meu pai é a prova de que a mudança é possível, é possível mudar até a pessoa mais conservadora e rígida, desde que fales com ela com respeito.