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Novo livro de Gabriela Ruivo partiu de "um diálogo com o conceito de tempo"
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Novo livro de Gabriela Ruivo partiu de "um diálogo com o conceito de tempo"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Novo livro de Gabriela Ruivo partiu de "um diálogo com o conceito de tempo"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Gabriela Ruivo: "Entre a vida e a literatura, qual é que imita qual? Não sei a resposta"

"Lei da Gravidade" é o novo livro da vencedora do Prémio LeYa. Em entrevista, não esquece a sua consciência social, mas defende que a literatura deve sobretudo obedecer "à imaginação e à fantasia".

Um escritor que afirma escrever apenas sobre a verdade, ao mesmo tempo que alimenta ficções sobre si próprio e sobre os outros. Uma “espiral de tempo” que, à força da gravidade, é puxada para baixo, fazendo colidir passado, presente e futuro numa só narrativa, perpetuando os ecos e os erros de várias vidas. São estas as ideias centrais do regresso de Gabriela Ruivo ao romance, quase uma década depois de ter vencido o Prémio LeYa com Uma Outra Voz. Lei da Gravidade (Porto Editora) é, primeiro e sobretudo, uma ficção, algo que a autora faz questão de deixar claro em entrevista ao Observador. Ainda que admita que uma narrativa onde cabem relatos de abandono, pais ausentes, violência contra as mulheres e exemplos de precariedade entre as classes mais baixas possa ter uma leitura ativista, garante que a “intenção não é escrever manifestos” e defende que a literatura deve obedecer acima de tudo “à imaginação”.

Tal não quer dizer, contudo, que Gabriela Ruivo não tenha uma consciência social bem vincada. Muito pelo contrário. A viver no Reino Unido há quase 20 anos, a autora assume-se “preocupada” com Portugal. “A coisa que me faz mais impressão é termos um Governo dito socialista, mas que tem políticas iguais ou piores do que o governo do país onde eu vivo, que é um governo conservador”, lamenta, entre a desilusão e a surpresa: “Não sei como é que as pessoas conseguem, sinceramente”.

A publicação do novo livro serviu também de pretexto para uma conversa sobre literatura infantil, as raízes alentejanas da sua família (que foram exploradas em Uma Outra Voz), o papel das mulheres no meio literário e a capacidade das próximas gerações esbaterem as desigualdades atuais, com a convicção e a coragem de “não seguir os maus exemplos dos pais”.

Lei da Gravidade

A capa de "Lei da Gravidade", o mais recente livro de Gabriela Ruivo, publicado pela Porto Editora

Logo na capa do livro, coloca uma pergunta ao leitor mesmo antes de este começar a folhear: “Será a vida que imita a literatura ou o contrário?”. Depois de escrever este livro, chegou a alguma conclusão?
Isso dava uma conversa bastante grande. Não sei, é uma pergunta para ficar no ar. É engraçado, porque às vezes vemos situações reais, que acontecem na vida, que se as escrevêssemos nos livros as pessoas iam dizer “não, isto não é possível”. Por isso, a vida às vezes consegue ser mais incrível do que a literatura. Por outro lado, construímos ficções de nós próprios, ficções acerca das coisas. No outro dia falava disso — quando olhamos o céu à noite e vemos as estrelas, elas são apenas explosões de gases a milhares de milhões de anos-luz, a maioria até já morreu. Não tem poesia nenhuma. No entanto, olhamos o céu estrelado e vemos um espetáculo incrível. Mas isso acaba por ser uma ficção. Portanto, quando olhamos para as coisas também ficcionamos. E a literatura é, essencialmente, ficção. Acho que a literatura, a ficção, está presente na vida, assim como a vida está presente na literatura, e a pergunta “qual é que imita qual” é uma que deixo em aberto, porque também não sei a resposta.

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A personagem do escritor, neste livro, defende que a verdadeira literatura conta a verdade e que os escritores que contam histórias são medíocres. E, à medida que vamos lendo o livro, percebemos que ele próprio se alimenta de ficções.
Exato, ele defende isso, mas depois não é isso que faz. Constrói uma ficção acerca dele próprio, que é justamente essa, é ele apresentar-se como alguém que escreve a vida tal como é. Ao apresentar-se como alguém que não é, ele próprio está a construir uma ficção acerca dele mesmo.

"A literatura deve obedecer, acima de tudo, à imaginação e à fantasia. O objetivo é contar uma história. Claro que, se a história tem elementos muito fortes a nível social, pode tornar-se algo mais. Mas isso já é a posteriori, o meu processo de escrita não passa por aí."

Qual é a ideia do título Lei da Gravidade? Estamos perante uma história que lida com vidas que se repetem, ecos do passado que têm eco no presente e no futuro, todos juntos numa mesma narrativa. Não é algo para o qual o título remeta, à primeira vista. Como é que surgiu?
O primeiro título do livro era Perguntei ao Tempo. No fundo, estamos em diálogo com o conceito de tempo. Lei da Gravidade surgiu-me porque temos a ideia do tempo como linha reta, mas há quem diga que o tempo é uma espiral ascendente: a Terra anda à volta do Sol, voltamos sempre ao dia 1 de janeiro, etc. Ora, se essa espiral estivesse sujeita à lei da gravidade, teríamos um círculo perfeito, em que não há diferença entre passado, presente e futuro, que é o que acontece no livro. O passado está a acontecer agora, o futuro está a acontecer agora e o presente também. É engraçado porque, durante a revisão do livro, chamavam-me à atenção para certos pormenores como “então, mas se ele tem 63 anos, há 50 anos, quando ele andava na escola, não havia psicólogos escolares”. E eu respondia “mas não era há 50 anos. O passado dele está a acontecer agora”. É um conceito de tempo completamente diferente, não obedece às nossas leis.

Falávamos sobre a literatura ser sobretudo contar histórias. Aquando do lançamento, a Gabriela deixou claro que não escreveu o livro como um manifesto; é apenas uma história que está a contar. Até que ponto acha possível, verdadeiramente separar as águas? Porque estamos perante um livro que tem uma carga social muito forte, que aborda temas como o abandono, a violação, a violência doméstica. Até que ponto é possível haver essa separação, quando estamos perante temas sociais reais e que podem tocar perto do leitor?
O livro pode ser lido como um manifesto. Pode ter infinitas leituras — cada leitor faz a sua. O que quero dizer é que, quando escrevo, a minha intenção não é escrever manifestos. Para mim, a literatura não faz sentido assim. Mas faz sentido que o livro possa depois ser lido como manifesto, compreende? Não gosto da ideia de escrever um manifesto, não me faz sentido e acho que não conseguiria. Acho que a literatura deve obedecer, acima de tudo, à imaginação e à fantasia. O objetivo é contar uma história. Claro que, como diz, se a história tem elementos muito fortes a nível social, pode tornar-se algo mais. Mas isso já é a posteriori, o meu processo de escrita não passa por aí.

Ou seja, é algo que, sendo uma visão sua sobre a literatura, não é imposto ao leitor.
Exato. Eu, quando escrevo, não gosto de impor regras. Escrevo aquilo que me apetecer escrever. E às vezes há coisas que saem sem nós nos apercebermos. O Luís Caetano chamou-me a atenção para o facto de as personagens masculinas serem todas más. Disse: “São todos umas bestas”. E quando ele me disse aquilo eu, realmente, não me tinha apercebido, e depois até pensei, “realmente, nenhum se aproveita”! Por outro lado, a personagem do último Tiago, por exemplo, vem questionar a própria lógica do livro, porque percebemos que aquele Tiago não pode ser a mesma pessoa, entra em contradição com tudo aquilo que já foi dito. O próprio livro questiona-se a si mesmo.

"A literatura dos países latino-americanos tem muito mais impacto no mundo da língua inglesa do que os portugueses e não há justificação"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Deixa até em aberto a possibilidade de tudo não passar de uma coincidência.
Ou que, de facto, o tempo muda-nos. Se calhar, o Tiago mais novo pode ser a personagem masculina diferente das anteriores. Na altura, não fiz essa interpretação, mas quando ele me falou nisto achei piada, e fiquei a pensar nisso. Às vezes escrevemos coisas das quais não nos apercebemos; quando alguém lê, apercebe-se de coisas que não foram intencionais, aconteceram por acaso. Eu, de facto, queria contar uma história de abandono, onde a violência contra as mulheres estava presente — e portanto as personagens masculinas acabaram por ser todas uns abusadores.

A Gabriela dedica o livro aos que a têm acompanhado e, em especial, aos seus filhos e à Marilena. Conte-me um pouco mais acerca deles, de que forma é que a influenciaram?
A Marilena era uma prima que já morreu. Era velhota, já tinha mais de 90 anos, e costumava dizer que ela era a minha fã número um, desde há muito tempo. Só me tornei escritora profissionalmente quando ganhei o Prémio LeYa. Mas antes disso já escrevia, sempre escrevi. Fui para Londres, mais ou menos há 20 anos, e comecei a escrever um blogue onde falava sobre os meus filhos, que na altura eram pequenos. E ela era a leitora mais ávida, estava-me sempre a pedir para escrever; às vezes não tinha tempo mas lá ia escrevendo, pensando que ela teria gosto em ler. Era uma prima que me dizia muito, que me incentivou bastante. Quando morreu, há um ano ou dois, pensei: “Os livros que escrever a partir de agora, vou-lhos dedicar todos”. Este é o segundo, e os próximos serão também, seguramente. É uma forma de a sentir presente. Com os meus filhos, também. Lá está, os filhos são o nosso futuro. Há um verso muito bonito do Eugénio de Andrade que diz qualquer coisa como “nem nos nossos sonhos conseguimos habitar o futuro dos filhos” e acho esta ideia muito bonita. A humanidade anda para a frente e é bom quando os filhos não são iguais aos pais; se fossem, a humanidade não avançava.

"Faz bem ter contacto com palavras que não conhecemos porque, das duas uma, ou vamos ver ao dicionário, ou então perguntamos a alguém. Quando era criança, li muitas coisas que não eram aconselháveis a crianças."

Vive no Reino Unido há vários anos, desde 2004. De um modo geral, que diferenças são mais evidentes em comparação com Portugal?
Em relação à literatura, é um mundo mais vasto. Os ingleses têm muita dificuldade em ler literatura traduzida, o que é uma pena. Mas isso está a mudar. De há uns tempos para cá, têm surgido pequenas editoras exclusivamente dedicadas a literatura traduzida. São editoras pequenas mas publicam todos os anos e vão sobrevivendo. Muitas vezes são patrocinadas com ajuda monetária. Se calhar não sobrevivem só através da venda de livros, mas já existem bastantes, o que é muito bom sinal. Estou envolvida em vários projetos no Reino Unido e um deles é, precisamente, um clube do livro exclusivamente dedicado a autores dos vários territórios de língua portuguesa traduzidos para o inglês, que é o Portuguese in Translation, ou Pint. Lá, pint é um copo, então brincamos com a ideia — “it’s a different kind of pint”. Discutimos cinco livros por ano; começámos em 2022, com cinco, e este ano já vamos com quatro e vamos ter a última sessão em novembro. Tem sido muito interessante, as sessões são online, o que nos permite ter o tradutor, o autor e pessoas de todo o mundo, e tem havido bastante afluência. Acho muito importante que se divulgue a literatura portuguesa para o mundo de língua inglesa, porque ela é a língua universal. Por exemplo, a literatura dos países latino-americanos tem muito mais impacto no mundo da língua inglesa do que os portugueses e não há justificação, porque a literatura de língua portuguesa é tão rica. Este clube é uma tentativa de ajudar esse processo.

Estando há tanto tempo no Reino Unido, terá talvez uma perspetiva um pouco diferente em relação ao que se passa em Portugal. Tendo escrito um livro que aborda temas sociais tão fortes, como é que olha para a situação atual no país? Estamos a passar por um momento complicado, ainda agora tivemos uma grande manifestação pelo direito à habitação…
Realmente, quando saímos de Portugal, adquirimos uma perspetiva diferente, distanciamo-nos — Portugal é um meio muito pequeno. A coisa que me faz mais impressão é termos um Governo dito socialista, mas que tem políticas iguais ou piores do que o governo do país onde vivo, que é um governo conservador. Por exemplo, lá também temos estes problemas com a especulação imobiliária. A diferença é que ainda temos um Estado que apoia muito as pessoas que, por exemplo, não conseguem pagar casa. Quando vemos este aumento de rendas brutal, a minha primeira pergunta é “como é que as pessoas vão sobreviver?”. Temos o salário mínimo mais baixo da Europa, a Saúde na situação em que está, a Educação… e lá está, no Reino Unido existem os mesmos problemas, greves de professores, de médicos, que ganham mal. Claro que as coisas são relativas — um médico português, se fosse para lá, se calhar achava que ganhava muito bem. Mas mesmo assim, a situação é má, mas não é tão má. Quando temos essa perspetiva é que percebemos que as coisas em Portugal estão muito mal mesmo, as pessoas não conseguem sobreviver.

São necessárias políticas diferentes, de apoio à educação, à saúde, à cultura que é sempre deixada de lado. Sentimos isso também durante a pandemia. A história de proibir a venda de livros em Portugal foi um disparate completo. Isso não aconteceu em lado nenhum. No Reino Unido, as vendas subiram, em França também. Não se compreende, são coisas que não fazem sentido. De maneira que olho para Portugal com muita preocupação. O que sinto é que as coisas estão cada vez pior. Quer dizer, as coisas nunca estiveram bem em Portugal; desde criança que oiço que o país está em crise e já tenho 53 anos, por isso imagine. Antes era pior, obviamente, vivíamos em ditadura, mas depois disso as coisas também não se endireitaram. Os governos sucedem-se e não muda nada, é bastante preocupante.

Ouvi-la a si, que tem uma perspetiva exterior, dizer isso, é bastante sóbrio. Porque às vezes também se cria um pouco esta ideia de que cá dentro nos queixamos de tudo, mas que as coisas até não estão assim tão más.
O português queixa-se muito, é um facto. Mas, em comparação com a vida noutros países… não sei como é que as pessoas conseguem, sinceramente. Às vezes pergunto-me como é que as pessoas conseguem lá, porque também temos rendas altíssimas, mas lá também temos estas ajudas. Aqui não. E depois há a imigração em massa que se verificou, com montes de quadros a irem embora. Qualquer dia não há cá ninguém. É muito triste e é preocupante.

"Quando se ouvem críticas a uma ministra, quando é mulher, é sempre porque se está a vestir desta ou daquela maneira, ou porque é gorda ou magra de mais…"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

Mencionou que faz parte de um clube do livro dedicado a obras de língua portuguesa traduzida para o inglês. Outra iniciativa com a qual também está envolvida é a Miúda Children’s Books, uma livraria online que vende livros infantojuvenis de língua portuguesa no Reino Unido. Tem um carinho especial pela literatura infantojuvenil?
Tenho muito. Gosto muito de livros infantis, antes de ter a livraria já os comprava para mim. A livraria foi um projeto que herdei de uma amiga, que vivia lá. Ela entretanto voltou para Portugal e deixou-me o projeto. É muito interessante, vamos conhecendo autores novos que nos mandam os livros, trabalhamos com editoras também, vamos vendo quais são os novos lançamentos. Agora, é complicado, porque vende-se muito pouco. Se vender um livro por mês já é muito bom, portanto é quase um passatempo. Por acaso, durante a pandemia, vendi muito mesmo. Nunca tinha vendido tantos livros. Mas agora as coisas voltaram ao normal. Também tenho um livro infantil publicado e outras histórias infantis escritas que ainda não foram publicadas.

Sou da opinião que as crianças devem ler textos complexos. Há uma teoria que defende que as crianças devem ser protegidas, os temas, as palavras não podem ser muito complicadas senão elas, coitadas, não percebem… Mas faz bem ter contacto com palavras que não conhecemos porque, das duas uma, ou vamos ver ao dicionário, ou então perguntamos a alguém. Quando era criança, li muitas coisas que não eram aconselháveis a crianças. Já contei isto mas, um dia, a minha professora da quarta classe leu-nos As Aventuras de João Sem Medo, do José Gomes Ferreira. Nunca mais me esqueci deste livro; acho que é ele o responsável por eu gostar de escrever. E não é um livro para crianças. Aliás, comprei-o há uns anos, para o ler aos meus filhos, e aí é que percebi que não é um livro para crianças de maneira nenhuma, tem palavras complicadíssimas. Mas isso estimula. Estimula a imaginação, a curiosidade, e é isso que cativa uma criança para a leitura, para a escrita e para a própria literatura. Se lhes dermos histórias com uma linguagem muito simples, tudo muito cor-de-rosa e no fim tem de ficar tudo bem… a vida não é assim.

E têm uma curiosidade natural perante o desconhecido. Quando se deparam com algo diferente daquilo a que estão habituadas, também as ajuda no desenvolvimento.
E são inteligentes. Têm inteligência para conseguir, muitas vezes por elas próprias, interpretar. Se o final não é tão cor-de-rosa como as boas regras mandam, podem pensar noutro fim. Não sei, não concordo nada com isso, não gosto nada da história de “este livro é só até aos 7 anos”. Os livros são para todas as idades. Gosto de ler livros infantis e quando era criança já gostava de ler livros “para os mais velhos”. Uma boa história é uma boa história.

A história do seu primeiro romance, Uma Outra Voz, que ganhou o Prémio LeYa, passa-se no Alentejo, em Estremoz, se não estou enganado. Qual é a sua relação com o Alentejo?
Os meus pais são os dois de Estremoz, precisamente. E a minha família é praticamente toda daquela zona. Esse livro baseia-se muito na história de Estremoz. A personagem principal é baseada num tio-avô da minha avó, que foi responsável por muito do desenvolvimento de Estremoz, que era vila e passou a cidade. Foi ele que anunciou a República, no dia 6 de outubro de 1910. Este homem foi uma personagem que me acompanhou durante a infância, porque a minha avó viveu muitos anos na casa dele e então contava muitas histórias sobre ele. Este tio-avô não era casado, vivia com uma irmã e tinha dinheiro, era uma pessoa com posses, então criou muitos sobrinhos. Naquela altura, os pais, trabalhadores rurais, não tinham posses. Ele criou-os e permitiu que tirassem uma licenciatura e a minha avó foi um desses sobrinhos. Tinha a ideia de que tinham sido umas dezenas de sobrinhos. Mas, quando publiquei o livro, fui consultar jornais da época e encontrei uma notícia que fala sobre ele no dia depois da sua morte, que diz que ele criou 92 sobrinhos. Não imaginava que fossem tantos.

Mas eram sobrinhos de sangue?
Não eram sobrinhos diretos. No Alentejo, somos todos primos e sobrinhos. Naquela altura, as famílias tinham muitos filhos e não os conseguiam criar a todos. Era uma maneira de ajudar e o livro Uma Outra Voz anda à volta deste homem. Se bem que depois é uma ficção — não conheci o senhor portanto não tenho nada, só as histórias que ouvi. Portanto é essa a minha relação com o Alentejo. Considero Estremoz a minha terra, se bem que tenha nascido em Lisboa.

"O português queixa-se muito, é um facto. Mas, em comparação com a vida noutros países… não sei como é que as pessoas conseguem, sinceramente"

TOMÁS SILVA/OBSERVADOR

O livro valeu-lhe o Prémio LeYa em 2013. Que mudanças sentiu na sua carreira, nos 10 anos que passaram desde esse reconhecimento?
A mudança principal foi ter-me tornado escritora de profissão, que antes não era, e passar a conseguir publicar. Entretanto publiquei o tal livro infantil, publiquei poesia e contos numa outra editora, mais pequena, mas fui sempre escrevendo. Quer dizer, não estou sempre a escrever, porque tenho muita dificuldade em arranjar tempo para escrever. Mas estou sempre a pensar em histórias. O escritor deste livro diz uma coisa com a qual concordo que é “estou sempre a escrever na minha cabeça”. Os livros demoram tempo, ficam em gestação, digamos assim, na nossa cabeça, quando depois os passamos para o papel já é uma fase posterior. De facto, não sou muito organizada, tenho mil e uma coisas, portanto não sou daquelas pessoas que escrevem todos os dias, nem pensar.

Esta história, por exemplo, foi algo que imaginei há uns três, quatro anos, escrevi um pouco e depois deixei de lado porque, lá está, não tenho muito tempo. Entretanto, fui reconhecida com uma bolsa de criação literária, e nessa altura consegui arranjar tempo, porque tinha um ano para terminar a história. O que, por acaso, foi bom, porque me obrigou a organizar-me. Senão, se calhar, ainda estava a escrever. Quando o que fazemos não é remunerado, não nos permite estabelecer uma rotina, temos de o fazer nos intervalos.

Em 2015 escreveu um texto no seu blogue, queixando-se da falta de atenção dada às autoras e deixando, de algum modo, críticas fortes ao mercado literário português. A Gabriela faz parte do Clube das Mulheres Escritoras; nos anos desde que escreveu o texto, sente alguma mudança, ou o princípio de uma mudança?
Se calhar agora podemos começar a sentir essa mudança. Acho que a criação do clube foi muito importante, porque tem tido bastante atenção mediática, temos ido a vários eventos como clube e tem havido público. Talvez seja um bom sinal e talvez as coisas mudem um bocadinho, porque até aqui não. Aliás, esse texto foi escrito debaixo de uma grande irritação. Tinha falado dessa questão numa entrevista que dei, de que as mulheres escritoras não têm a mesma atenção nos media do que os seus colegas homens. Quando a entrevista saiu, o título que estava na homepage era qualquer coisa como “Gabriela Ruivo pede mais atenção da parte dos media”. Fui aos arames com aquele título. Porque não estava a pedir atenção para mim, não era uma questão pessoal. E eles reduziram isso a uma questão pessoal. Acho que se tivesse sido um homem a falar dos mesmos problemas, esse título não tinha sido feito. Aliás, há pouco tempo, o João Reis, outro escritor, falou do facto de haver este problema no meio literário. E o título era “João Reis acusa o meio literário”. No fundo, ele tinha-se queixado do mesmo que eu — talvez não em relação ao género, mas a outras discriminações — e o título não era “João Reis anda aqui a pedir atenção”. Quando o João Reis diz alguma coisa, está a acusar o meio literário; quando eu fiz a mesma coisa, estava a pedir atenção. São essas subtilezas que, às vezes nos passam ao lado, em que as mulheres são tratadas de uma forma menor.

Mas sente que essas subtilezas estão, não a ser resolvidas por completo, mas a melhorar de alguma forma?
Não sei, mas acho que não. Saindo um pouco do meio da literatura, quando se ouvem críticas a uma ministra, quando é mulher, é sempre porque se está a vestir desta ou daquela maneira, ou porque é gorda ou magra de mais… Não se fazem os mesmos comentários acerca dos homens. Às vezes pode-se fazer, mas, em número, nos homens praticamente não se fazem comentários deste tipo. Acho que essa forma de tratar as mulheres não está, de maneira nenhuma, resolvida. Ainda temos muito a caminhar.

"As gerações jovens têm que fazer a mudança, não seguir os maus exemplos dos pais. E mesmo os exemplos bons devem ser recriados, não repetidos, porque as repetições nunca são boas. Temos sempre que avançar, evoluir e quebrar a lógica anterior."

O que é que acha que pode ser feito nesse aspeto?
É complicado. É uma questão-base de educação. É uma coisa social, é uma mentalidade. Não nos podemos esquecer também que o nosso país tem uma democracia muito jovem ainda, e que as mulheres, antes do 25 de Abril, eram cidadãos de segunda — não podiam viajar sem autorização do marido, não eram “donas” dos seus filhos… Portanto, o nosso país tem um grande atraso em relação a isto. No Reino Unido também há questões sexistas, mas estão mais à frente já.

A questão pode passar primeiro por reconhecer que há um problema, algo que se calhar ainda não aconteceu?
Claro. É a mesma coisa com o racismo estrutural. As pessoas às vezes têm dificuldade em aceitar, porque temos a mania que somos muito bonzinhos, que a nossa escravatura nem foi assim tão violenta. Lá está, é uma ficção, para nos apaziguar um pouco. Mas os problemas, se não forem encarados de frente, não se resolvem. Tem de passar por aí. E tem de passar pelo debate destas ideias. As pessoas às vezes têm muito pudor em falar disto. Há muitas mulheres que se esquivam a falar do feminismo, não querem ser consideradas feministas, porque há aquele preconceito de que as feministas são histéricas. E Portugal é um meio muito pequeno, existe muito aquele medo que existe nas aldeias: “O que é que os outros vão pensar?”. Ainda há muito poucas vozes que se afirmam. Em relação ao feminismo, é um problema tanto de mulheres como de homens. Os homens também têm um grande papel a desempenhar, porque o machismo também não é bom para eles. Dá-lhes é uma data de privilégios aos quais pode ser difícil renunciar. Mas acho que as camadas mais jovens estão mais despertas.

Sente isso entre os mais jovens?
Acho que sim, tenho esperanças que sim. As gerações jovens têm de fazer a mudança, não seguir os maus exemplos dos pais. E mesmo os exemplos bons devem ser recriados, não repetidos, porque as repetições nunca são boas. Temos sempre que avançar, evoluir e quebrar a lógica anterior.

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