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Toda a gente já se terá cruzado com frases que falam de espécies em extinção.
Há uma ideia intuitiva do que quer dizer uma espécie estar em extinção, mas não é nada fácil tentar encontrar um sistema que seja razoavelmente objectivo e sirva para avaliar o risco de extinção de milhares de espécies diferentes.
Esse sistema existe, está em permanente evolução, e traduz-se em livros vermelhos ou listas vermelhas de espécies, que estão também em evolução, quer porque o estatuto de ameaça das espécies se altera – seja pela dinâmica populacional das espécies, seja pela dinâmica da alteração das ameaças –, quer porque os critérios de avaliação e o conhecimento sobre as espécies, se altera.
É aqui que entra uma lei da economia conhecida como Lei de Goodhart.
Essencialmente, o que diz a Lei de Goodhart é que quando uma medida se torna um objectivo, então deixa de ser útil para atingir o que se pretendia inicialmente.
É exactamente o que se passa com a definição do estatuto de ameaça das espécies.
A ideia bondosa de definir um estatuto de ameaça das espécies para distinguir as que estão mais ameaçadas e, com isso, usarmos os recursos de forma mais eficiente concentrando dinheiro, pessoas, instrumentos regulatórios e incentivos económicos nas espécies em maior risco, tem como consequência que a atribuição desse estatuto deixa de ser uma mera avaliação de risco técnica, para passar a ser um incentivo real a que reagem os agentes de conservação.
A natureza do problema da Natureza
No caso da conservação da natureza, este problema é potenciado pela complexidade intrínseca à tarefa de estabelecer qual é a dinâmica de uma espécie selvagem e em que medida pode levar a espécie a extinguir-se.
Esta complexidade faz com que a discussão sobre a dinâmica da espécie e a sua “probabilidade de extinção” (para usar o conceito da União Internacional de Conservação da Natureza que garante a fiabilidade e consistência dos livros e listas vermelhas de espécies) seja uma discussão de muito poucos, sobretudo especialistas em cada espécie ou grupo de espécies em causa.
Nestas circunstâncias, é inevitável que o peso dos beneficiários da concentração de recursos nas espécies mais ameaçadas seja esmagador na atribuição do grau de ameaça dessas espécies, isto é, que haja um interesse objectivo, por parte dos principais beneficiados pela existência desses recursos, na atribuição de estatutos de ameaça que permitam concentrar recursos.
Ciente de todas estas dificuldades, a União Internacional para a Conservação da Natureza procura ser o mais objectiva possível na definição de critérios para a atribuição desses estatutos de ameaça, produzindo guias metodológicos para a aplicação desses critérios e a atribuição de estatutos de ameaça padronizados.
São cinco os critérios (há depois sub-critérios) e basta uma espécie cumprir um desses critérios, dentro de limites, para que lhe seja atribuído um estatuto de ameaça:
- Redução do tamanho da população (passado, presente e/ou projetado);
- Tamanho da distribuição geográfica e fragmentação, poucas localizações condicionadas à ameaça, declínio ou flutuações;
- Tamanho populacional pequeno e com declínio e fragmentação, flutuações ou poucas subpopulações;
- Tamanho de população muito pequeno ou distribuição muito restrita;
- Análise quantitativa de risco de extinção (exemplo: Análise de Viabilidade da População).
Mesmo uma pessoa que não esteja familiarizada com o tema percebe rapidamente que saber o número de lobos que existem em Portugal é bastante mais simples que fazer uma análise quantitativo do risco de extinção do lobo em Portugal, isto é, que alguns critérios são mais fáceis de usar que outros.
O Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental
No Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental as espécies mais pequenas de roedores e insectívoros (ratos, musaranhos e por aí) e morcegos, quase sempre estão classificados nos estatutos de maior ameaça com base no primeiro e segundo critérios, isto é, tendências populacionais e fragmentação das sub-populações.
Note-se que grande parte das tendências populacionais que serviram de base à atribuição de estatutos de ameaça mais preocupantes resultam de estimativas de tendência populacional que não se baseiam em dados empíricos sólidos do passado, mas sim a previsões dos investigadores sobre o futuro.
Acresce que é duvidoso que boa parte da ausência de informação que permita avaliar tendências do passado, o que limitaria as fantasias sobre o futuro, não se deva mais à escassez de investigadores e naturalistas que registem os dados de ocorrência destas espécies que à real escassez de indivíduos destas espécies.
É um viés conhecido na conservação: há muito mais gente a interessar-se por borboletas diurnas, aves ou grandes mamíferos, que por borboletas nocturnas, ratos, morcegos ou invertebrados sem cores chamativas e tradicionalmente associados a ambientes inóspitos e desconfortáveis, o que torna muito mais rara a existência de dados fiáveis sobre as populações de algumas espécies no passado, dificultando o estabelecimento de tendências históricas credíveis de evolução das populações.
O facto de as tendências previstas para o futuro serem frequentemente inferidas a partir do que se admite que sejam tendências de evolução futura dos habitats das espécies, relacionando-as com as principais ameaças conhecidas que podem influenciar a evolução das populações no futuro, deveria levar os avaliadores a serem particularmente cautelosos na identificação de tendências de evolução da paisagem, matéria que normalmente não está dentro daquilo que é a sua área de trabalho científico e técnico.
A identificação frequente de ameaças directamente relacionadas com a intensificação da actividade humana, nomeadamente o uso de pesticidas, num país que sofre um acentuado processo de abandono rural e extensificação da actividade humana (para já não falar da tendência para o uso de pesticidas cada vez mais específicos e com menor impacto), permite pensar que os preconceitos de especialistas nestas espécies tenham um peso maior que a realidade verificada por especialistas em evolução da paisagem, isto é, de habitats.
Um bom exemplo é a identificação, em diversos pontos do Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal, de uma tendência de degradação dos sistemas ribeirinhos como justificação para as tendências populacionais futura descritas.
A tendência para recuperação de sistemas naturais é hoje poderosa em Portugal, em consequência do abandono rural mais que reconhecido, sendo a mais relevante dessas recuperações exactamente a renaturalização das margens dos rios, com a expansão significativa das galerias ripícolas.
É por isso estranha a afirmação de que as galerias ripícolas estão hoje em retracção.
Verificando a referência bibliográfica (não verifiquei todas as referências bibliográficas, verifiquei uma ou outra, de tal maneira a ideia de retracção das formações vegetais ribeirinhas me parece absurda, neste caso) com que é justificada esta afirmação (“Into human-disturbed landscapes: functional linkages between land-use, geomorphology and the diversity of riparian plant ecosystems”), constata-se que é um estudo sobre linhas de água em que se analisam alterações das galerias ripícolas em função da construção de grandes barragens, nos troços afectados por essa construção.
Resumindo, o Livro Vermelho dos Mamíferos, para projectar tendências futuras das populações, com base nas quais atribui estatutos de ameaça, esquece toda a extensa bibliografia que existe sobre a evolução da paisagem e suas tendências, e escolhe apoiar-se numa única referência bibliográfica que, ainda por cima, nem sequer se debruça sobre tendências gerais mas sobre os efeitos específicos decorrentes da construção de barragens.
É com base numa referência específica, que não tem directamente relação com a dinâmica das espécies, nem dos habitats, na generalidade do território, que se calculam futuras reduções populacionais catastróficas de algumas espécies e, com isso, se lhes atribui um estatuto de ameaça mais preocupante, isto é, com maior capacidade de gerar e concentrar recursos para o estudo e gestão dessas espécies ou grupos de espécies.
Uma questão de fronteiras
Mais relevante é o facto de, ao arrepio de todas as recomendações dos guias de avaliação da UICN, se ter considerado, para alguns grupos (para coelhos e lebres, por exemplo, foram aplicados correctamente os critérios de adaptação regional da UICN), que não valia a pena entrar em linha de conta com o facto de não haver populações nacionais isoladas, mas sim populações ibéricas, com o argumento, que não consta de qualquer orientação da UICN, de que as categorias de ameaça em Espanha são também preocupantes.
A UICN é muito clara neste ponto: “Se uma subpopulação avaliada sob os critérios não está isolada (ou seja, pode estar intercambiando indivíduos com outras subpopulações), sua avaliação deve seguir as diretrizes regionais (UICN 2003, 2012a). Adicionalmente, deve consistir numa subpopulação biológica (i.e., não definida por limites políticos ou fronteiras nacionais)” (Diretrizes para o Uso das Categorias e Critérios da Lista Vermelha da UICN Versão 15.1, Julho de 2022) (note-se que a tradução usada é a tradução oficial da UICN, que foi feita em português do Brasil).
Se dúvidas houvesse: “Subpopulações são definidas como grupos geograficamente ou de outra forma isolados na população entre os quais há pouca troca demográfica ou genética (normalmente um indivíduo migrante bem-sucedido ou gameta por ano ou menos).”
O que as directrizes regionais citadas dizem é também suficientemente claro: ““However, when the criteria are applied to part of a population defined by a geopolitical border, or to a regional population where individuals move to or from other populations beyond the border, the threshold values listed under each criterion may be inappropriate, because the unit being assessed is not the same as the whole population or subpopulation”.
“In some cases, although specific evidence of species migrating across regional borders is not available, the general life history of the species can be used to infer a likely migration from surrounding areas into the region being evaluated”. (é usado o original em inglês para evitar eventuais mal-entendidos resultantes de uma tradução não profissional feita por mim).
Ora, o que o Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental regista como procedimentos adoptado é igualmente claro, embora sem suporte nos documentos da UICN, e muito menos na realidade: “O procedimento de ‘Adaptação Regional’ revelou-se pouco significativo na avaliação global. Possíveis processos de imigração a partir de populações vizinhas com ocorrência transfronteiriça, com implicação na sustentabilidade das populações nacionais das diferentes espécies avaliadas e na alteração da categoria de ameaça não foram considerados significativos”, é dito para o conjunto da avaliação.
E é especificado para os morcegos e roedores: “Porém, uma vez que estas espécies se encontram em situação desfavorável também em Espanha (p. ex. Palomo et al. 2007), assumiu-se que a imigração de populações vizinhas não será significativa, não se justificando por isso qualquer alteração da categoria para nenhuma espécie.”.
Para os carnívoros terrestres, o Livro Vermelho não hesita em explicitar o absurdo de considerar como pouco provável que as populações portuguesas de carnívoros terrestres, por exemplo, as populações de lobo ou lince, influenciem a dinâmica das populações portuguesas: “1) não foram consideradas como importantes possíveis processos de imigração a partir de populações espanholas localizadas em áreas que possibilitassem a chegada de indivíduos migrantes com significado para a sustentabilidade das populações nacionais”.
A opção de considerar as sub-populações portuguesas de carnívoros e artiodáctilos (cabra, corço, veado, javali, por aí) como não tendo quaisquer trocas de indivíduos relevantes com as populações espanholas é especialmente chocante, sendo completamente incompreensível para espécies como o Lobo e o Lince, dando origem ao absurdo de considerar em perigo de extinção espécies com populações estáveis, como a de Lobo (penso que a generalidade da sociedade partilhará o meu cepticismo quanto à originalidade portuguesa de ter populações de lobo estáveis, em número, mas ocupando áreas crescentes, quando em toda a Europa é evidente a expansão do lobo decorrente do abandono agrícola), ou, mais paradoxal, populações em expansão, como a de Lince.
Outros exemplos
O “Atlas y Libro Rojo de los Mamíferos Terrestres de España”, várias vezes citado, considera as populações de lobo espanholas como quase ameaçadas, e não vulneráveis, baseando-se na expansão continuada, ao longo de 35 anos, da espécie em toda a Europa, mas também no facto de se dever considerar os 300 a 400 lobos (o Livro Vermelho português diz que são 250) portugueses como parte da população ibérica, o que se traduz num grau de ameaça mais baixo, o que é bem demonstrativo do viés do processo de avaliação em Portugal.
O facto de, mais uma vez, a referência bibliográfica usada, por exemplo, para dar suporte à identificação da ameaça “A degradação e conversão dos ecossistemas nativos, em particular devido à implantação de áreas agrícolas de uso intensivo e plantações florestais” ser sobre outro assunto com pouca relação com o afirmado (e que, já agora, está errado, porque o que se verifica é uma recuperação dos sistemas naturais em função do abandono agrícola), como a relação entre a expansão do eucalipto e o padrão de fogo (Analysing eucalypt expansion in Portugal as a fire-regime modifier, um bom artigo que, aliás, contraria boa parte do que é afirmado no Livro Vermelho sobre ameaças a diferentes espécies), é verdadeiramente intrigante.
Os guias da UICN dão exemplos bem diferentes de como se deve proceder (neste caso, a espécie Aeshna caerulea (uma libélula) “Based on its limited AOO, its presence in <5 threat-defined locations, and a continuing decline in habitat quality (drying out and alteration of habitats), the species is given a preliminary assessment of Endangered (EN B2ab(iii)). However, as this species has been observed to have high dispersal power, significant “reservoir” populations in Switzerland are likely to provide immigrants that can repopulate the Mediterranean localities in the event of local population declines. The entire European population is listed as Least Concern. Given the good populations outside of the Mediterranean region, the assessment was downlisted to Vulnerable (VU B2ab(iii))”.
Note-se que para os mamíferos marinhos, em que é evidente a aplicabilidade dos princípios da UICN que estabelecem que sub-populações não isoladas não devem ser avaliadas autonomamente, mas na globalidade da população, porque é a essa globalidade que se aplicam os critérios definidos, o Livro vermelho introduz uma opção diferente: “No caso das populações visitantes, estas experienciam [sic] condições semelhantes dentro e fora da região … pelo que se considerou que não deveria existir alteração da categoria de ameaça”.
O corolário lógico desta alteração dos critérios da UICN é que é sempre possível encontrar razões para atribuir categorias de ameaça mais preocupantes, desde que se partam populações em sub-populações separadas por critérios não biológicos, como limites administrativos e fronteiras nacionais, até que cada uma das sub-populações seja considerada ameaçada e, como tal, descartada como relevante para a população que se avalia, exactamente por também estar ameaçada.
A UICN descreve outros exemplos de aplicação dos princípios gerais a realidades regionais, como no exemplo de um morcego avaliado na Suécia (Eptesicus serotinus), com populações muito baixas, sem conhecimento de colónias reprodutoras, com localizações geograficamente restritas, sendo populações recentes (o primeiro registo da espécie na Suécia é de 1982). No entanto: “Based on the most probable number of mature individuals, the species meets the criterion for CR D. Since there is an obvious probability of recolonisation from neighbouring countries, the category is downlisted to EN D”, isto é, sendo evidente que a espécie chega à Suécia a partir de populações dos países envolventes, considera-se que a diminuta e esparsa população não é critério suficiente para se considerar a espécie como criticamente em perigo, mas apenas em perigo.
O viés, as pessoas e as instituições
Demonstrado o viés da avaliação portuguesa, conclui-se que foi feita por pessoas pouco sérias ou incompetentes?
Não, de maneira nenhuma, conheço muitas das pessoas que trabalharam para este resultado, com bastantes trabalhei directamente, e tenho-as como pessoas íntegras e, algumas, das mais competentes que conheço na sua área de trabalho.
É aqui Goodhart nos ajuda a perceber o que aconteceu e como podemos trabalhar na melhoria de processos.
As pessoas que fazem este documento, que é um documento extenso, muitíssimo útil por condensar muita informação de forma sistematizada, acessível e auditável, limitaram-se a comportar-se como pessoas que reagem racionalmente a estímulos, como é da natureza humana.
Se alguém se considera a si mesmo, explicitamente, como “amando os morcegos” (um mero exemplo, sem qualquer leitura pessoal possível) o mais natural é que actue de forma a garantir as melhores circunstâncias possíveis para a conservação dos morcegos.
Se a visibilidade social e a concentração de recursos para a acção está directamente ligada ao estatuto de ameaça da espécie – quanto mais ameaçada, mais urgente e prioritária é a acção que visa salvaguardar a espécie da extinção – e se sou eu que influencio a definição desse estatuto, não vou torturar os dados até que digam o que eu quero que digam mas, seguramente, em cada bifurcação do processo em que é preciso fazer opções, eu vou optar pelo que me parece a opção mais cautelosa, isto é, aquela que, na minha opinião, melhor garante a conservação da espécie.
O problema não é, pois, da seriedade das pessoas envolvidas, o problema é institucional: se a autoridade nacional de conservação da natureza se demite das suas funções de construção de um chão comum, deixando a um dos interesses em presença a definição dos fundamentos das políticas de conservação, então as políticas de conservação ir-se-ão aproximando desses interesses e perdendo o enraizamento social que lhes poderia advir de todos se sentirem representados.
A discussão das possibilidades
O que significa que caberia à autoridade nacional de conservação da natureza reconhecer a natureza humana tal como é, conhecer a lei de Goodhart, e desenvolver mecanismos de reforcem a abertura e transparência de processos que limitem o viés decorrente dos estímulos existentes, que naturalmente afecta todos os grupos sociais relevantes.
Olhemos para um ou dois exemplos práticos de como o viés detectado pode conduzir a soluções pouco eficientes e socialmente sub-óptimas: o estatuto atribuído a lobo e lince e o estatuto atribuído a orcas (os exemplos, essencialmente, são válidos para todo o livro vermelho).
A prazo, este viés pode virar-se contra a política de conservação da natureza, por alienar o apoio daqueles que mais influenciam a gestão dos ecossistemas: os que lidam todos os dias com o património natural e vivem dele.
Quer o lobo, quer o lince, são espécies bandeira, com grande visibilidade social, e para a conservação das quais existem políticas públicas activas, que consomem recursos.
Na medida em que forem consideradas criticamente em perigo, a visibilidade social e a concentração de recursos tenderá a aumentar, na medida em que forem consideradas espécies cuja conservação é pouco preocupante, a visibilidade social e a concentração de recursos tende a desaparecer.
A natural tendência das pessoas preocupadas com a sobrevivência destas espécies é procurar, pelos meios que achem razoáveis, impedir, por exemplo, que termine o pagamento de prejuízos no gado causado por lobos, ou que seja extinto o centro de cria do Lince, que consideram medidas inegociáveis dada a situação precária das espécies em questão, e o risco real do seu desaparecimento.
No entanto, um maior distanciamento em relação à conservação e às medidas existentes para a garantir poderia abrir caminho para novas soluções de gestão destas populações, eventualmente mais baratas, com maior apoio social e com efeitos de conservação potencialmente interessantes.
Novas soluções podem implicar riscos inaceitáveis em espécies criticamente em perigo, mas se as espécies estiverem numa situação que lhes permita absorver alguns percalços, no caso das novas medidas de conservação se revelarem ineficientes ou, pior, contraprodutivas, então é possível testar novos modelos de conservação.
O caso dos pagamentos das indemnizações por prejuízos no gado causado por lobos é o exemplo de uma solução cara, administrativamente complexa para evitar a fraude, dirigida a compensar más práticas de gestão, isto é, a negligência em relação ao risco de predação dos rebanhos por lobos, limitando-se a compensar perdas cujo cálculo é uma fonte de tensão permanente entre os conservacionistas e os produtores.
Uma alternativa seria estipular um pagamento generalizado e simples aos rebanhos que pastam dentro de áreas de ocorrência de lobos (poderia haver gradação em função das densidades estimadas de lobo, mas não quero discutir os pormenores da medida, apenas os princípios gerais), sem pagamento de indemnizações por predação do rebanho por lobo.
Esta medida, em vez de incentivar o desleixo em relação ao potencial prejuízo — se alguém paga pelo prejuízo não há razão para eu investir no seu controlo —, incentiva a defesa em relação ao potencial prejuízo, nomeadamente com cães de gado, aumenta o rendimento de todos os pastores em área de lobo e aumenta, em termos relativos, o rendimento dos rebanhos em área de lobo face às áreas em que o lobo não está presente, criando um incentivo positivo à criação de rebanhos e um incentivo à defesa do lobo, na medida em que esse rendimento adicional desaparece com o desaparecimento da espécie.
Potencialmente, diminuem os custos administrativos de execução da medida, aumenta a previsibilidade de rendimento dos pastores e aumenta o enraizamento social das ideias de conservação do lobo, diminuindo a conflitualidade social.
Em relação ao lince, a diminuição (ou extinção) de um centro de cria de linces (substituído por um programa cooperativo com os jardins zoológicos para manter um seguro face às violentas alterações da dinâmica da espécie associadas às doenças do coelho) liberta meios para o que realmente interessa, a gestão das populações de coelho.
Outro exemplo, ao classificar a orca como criticamente em perigo (com base numa avaliação do número de indivíduos da sub-população do Estreito de Gibraltar e inferências várias sobre potenciais ameaças), dificulta-se a discussão da gestão sensata do conflito crescente entre orcas e veleiros que se tem vindo a verificar.
Conclusão
O Livro Vermelho dos Mamíferos de Portugal Continental é um documento relevante, extenso, sistematizando muita informação e bastante útil como base de trabalho, tal como os outros livros e listas vermelhas que têm estado a ser publicados em Portugal.
No entanto, as suas conclusões estão manifestamente contaminadas pelo facto de se saber o seu efeito nas políticas de conservação a adoptar no país, razão pela qual os seus resultados não deveriam ser directamente transferidos para as políticas de conservação, sem discussão, discussão essa que está longe de ser meramente técnica e científica.
De resto, os próprios guias metodológicos para aplicação das regras de atribuição do estatuto de ameaça a espécies fazem questão de deixar clara a diferença entre a atribuição do estatuto de ameaça e a adopção de políticas de conservação: “A categoria de ameaça não é necessariamente suficiente para determinar as prioridades das ações de conservação. A categoria de ameaça simplesmente fornece uma avaliação do risco de extinção nas circunstâncias atuais, enquanto um sistema para detectar as prioridades de ação incluirá vários outros fatores relativos à ação de conservação, como custos, logística, chances de sucesso e outras características biológicas (Mace e Lande 1991). A Lista Vermelha não deve, portanto, ser interpretada como uma forma de definir prioridades (UICN 2001, 2012b). A diferença entre medir ameaças e planejar as prioridades de conservação precisa ser enfatizada”.
O facto de a generalidade dos partidos políticos terem programas políticos, na área da conservação, deprimentes – ou mesmo não terem qualquer programa político —, e de a generalidade do jornalismo em Portugal tratar estas matérias sem qualquer profundidade crítica, como se os jornalistas fossem meros assessores de imprensa dos grupos de investigação ou das ONG, é uma boa demonstração de como as políticas de conservação em Portugal têm muito pouco enraizamento social.
A alteração desta situação é bastante difícil, quer porque a política de conservação tem sido enquadrada mais pelas opções europeias que nacionais — tanto em matéria de regulamentação, como em matéria de financiamento —, quer pela complexidade técnica do assunto, quer ainda pela fragilidade social dos principais afectados pelas medidas de conservação, os gestores de paisagem, que são poucos e quase não têm representação política.
Este ensaio é apenas um contributo para procurar demonstrar que é possível discutir opções e que vale a pena discutir opções que possam conduzir a soluções melhores que o “viver habitualmente” que reina na conservação do património natural em Portugal, há décadas.
*O autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico