De 64 numa fase inicial, as propostas passaram a 68 e, mais recentemente, durante o incerto clima das negociações para o Orçamento do Estado, a 70. O Governo quer aprovar em Conselho de Ministros, na quinta-feira, a chamada Agenda do Trabalho Digno, que contém alterações à lei laboral, antes de o OE para 2022 ir a votos. E, apesar de numa primeira fase, tanto os partidos à esquerda como o Governo terem recusado juntar os dois temas na mesma frase — lei laboral e OE — é já certo que o primeiro servirá de moeda de troca para o segundo. Tanto que o Executivo acrescentou na semana passada à Agenda cedências (parciais) à esquerda, com a suspensão dos prazos da caducidade da contratação coletiva. Mas mesmo com essas alterações e a mira assumida sobre o combate ao “recurso abusivo ao trabalho temporário”, as propostas do Governo não vão tão longe quanto querem os antigos parceiros da “geringonça”, PCP e Bloco, nem os parceiros sociais.
Esta quarta-feira, a ministra do Trabalho ainda se reúne com sindicatos e patrões na concertação social para fazer um “ponto de situação” sobre a Agenda, mas Ana Mendes Godinho já deu a entender que, mesmo sem acordo — o que é o mais provável —, as alterações pensadas pelo Executivo avançam na mesma para a próxima fase: aprovação em Conselho de Ministros e depois o Parlamento. O piscar de olho tem sido antes feito aos parceiros à esquerda do PS, precisamente no Parlamento. Foi aí que o PS deu alguns sinais ao PCP e ao Bloco de que estava disponível para negociar as mudanças à lei laboral, numa altura em que se iniciavam as negociações do OE. Em julho, os socialistas votaram a favor da proposta comunista, na generalidade, que visa limitar mais os contratos a prazo e reverter o alargamento do período experimental para 180 dias (uma das medidas mais criticadas pelos partidos à esquerda na revisão às leis laborais de 2019).
Mas a proposta ainda tem de baixar à comissão, sem certezas de que o PS mantenha o voto. É que as propostas da Agenda do Trabalho Digno não vão tão longe quanto o projeto comunista. No lado do Bloco, após a reunião desta terça-feira, o partido disse que o Governo “recusa a reversão de qualquer das cinco regras que o Bloco quer reverter, ficando por medidas simbólicas que não concretizou por escrito” (o Governo viria a responder ao Observador que houve “avanços em vários domínios, nomeadamente nas áreas do Trabalho e da Saúde”). Essas regras são: o aumento do valor pago pelas horas extra; a reposição do valor de 30 dias de indemnização por despedimento, como no pré-troika; a reposição dos 25 dias úteis de férias (atualmente são 22); a reposição do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador; e o fim da caducidade unilateral das convenções coletivas de trabalho.
Bloco já enviou proposta para “acordo orçamental”. “Escolha do Governo precipita tensões políticas”
Em relação ao primeiro ponto, na semana passada, o PCP e o Bloco viram as propostas que repõem os montantes a pagar pelas horas extraordinárias aprovadas na generalidade, no Parlamento, devido à abstenção de PS e PSD. Com os projetos, o pagamento do trabalho suplementar, que tinha sido reduzido para metade com a Troika, seria reposto para 50% na primeira hora, 75% nas seguintes e 100% em dias de descanso semanal ou feriados. A medida ainda terá de ser negociada na especialidade, mas a viabilização socialista pode, também aqui, ser usada como um trunfo pelo Governo nas negociações para a aprovação do OE.
Outra intransigência do Bloco é o aumento dos dias de cálculo da compensação por despedimentos, que, antes da Troika, era de 30 dias por cada ano de trabalho, tendo passado a 12. O Bloco quer um patamar intermédio: 20 dias. Na lista de exigências consta ainda o regresso dos 25 dias de férias mas sem ligar os dois dias extra à assiduidade (o mínimo, atualmente, são 22) e a reposição do tratamento mais favorável, de forma a que os contratos individuais de trabalhos e instrumentos de regulamentação coletiva não possam prever condições menos favoráveis do que a lei e a contratação coletiva.
Nenhum destes temas consta na Agenda do Trabalho Digno proposta pelo Governo, mas há uma quinta reivindicação a que o Governo já procurou responder, ainda que parcialmente. O Bloco quer o fim dos prazos de contagem da caducidade unilateral das convenções coletivas, que poderão ser “denunciadas, no todo ou em parte, por qualquer das entidades que a subscreveram, mediante comunicação escrita dirigida à outra parte, desde que seja acompanhada de uma proposta negocial”, mas só dez meses depois de entrarem em vigor.
O problema é que, num documento que enviou aos parceiros sociais na semana passada, de antecipação da reunião que vai ter esta quarta-feira na concertação social, o Governo só admite a suspensão por mais um ano (até março de 2024) dos prazos da caducidade e da sobrevigência das convenções coletivas e a agilização do acesso a arbitragem. Ainda muito longe da exigência do Bloco.
A suspensão dos prazos da caducidade não seria uma medida nova. Devido à pandemia, o Governo suspendeu a contagem dos prazos em dois anos, até março de 2023 . Mas numa cedência (parcial) à esquerda, propõe agora o alargamento dessa suspensão por mais 12 meses. Ou seja, até março de 2024, não haverá convenções a caducar. A medida surge após um ano de fragilidade na contratação coletiva: segundo informação divulgada pelo Governo, em 2020, assistiu-se a uma redução de 45% do número de trabalhadores potencialmente abrangidos face a período homólogo.
Outro dos problemas identificados diz respeito à arbitragem, que o Governo considera ter “escassa utilização”, pelo que o instrumento deve ser “calibrado” para “reforçar a sua aplicabilidade”. As regras em vigor determinam que quando uma convenção coletiva é denunciada, ainda se mantém em vigor durante um prazo (chamado sobrevigência), durante o qual podem ser feitas tentativas de conciliação ou mediação. As mudanças que o Governo quer fazer são na chamada “arbitragem necessária”. Neste caso, a lei dita que se uma convenção caduca e não é celebrada uma nova nos 12 meses seguintes, nem há “outra convenção aplicável a pelo menos 50% do trabalhadores da mesma empresa”, o ministro responsável pela área laboral pode determinar essa arbitragem necessária. O que o Governo quer é que deixe de ser preciso esperar 12 meses após a caducidade da convenção para que cada uma das partes possa “desencadear” a arbitragem.
Ainda na senda da contratação coletiva, o Executivo lembra que também prevê alargá-la aos trabalhadores em regime de outsourcing (“por analogia com regime aplicável aos trabalhadores temporários”) e aos independentes economicamente dependentes (aqueles que obtêm da mesma entidade mais de 50% dos seus rendimentos anuais), “nomeadamente no caso de desempenharem funções de forma regular, por um período de tempo significativo, quando se integram no objeto social da empresas”. Em cima da mesa estão também “incentivos e condições de acesso a apoio e incentivos públicos, a financiamento comunitário e à contratação pública relativos à existência de contratação coletiva dinâmica”. Mexidas que não parecem convencer a esquerda.
Governo quer limites aos contratos a termo (mas não tão longe quanto PCP quer)
É também uma das bandeiras à esquerda. Aliás, no final de junho, o PS votou a favor na generalidade de uma proposta do PCP, que acabou por baixar à comissão, para a redução das situações em que é permitida a contratação a termo e a revogação do alargamento do período experimental para 180 dias no caso dos trabalhadores à procura do primeiro emprego e dos desempregados de longa duração.
Esta última foi uma das medidas mais criticadas pelos partidos à esquerda na revisão das leis laborais feita em 2019, ainda era José António Vieira da Silva ministro do Trabalho. Tanto que Bloco, PCP e PEV fizeram ao Tribunal Constitucional, nesse ano, um pedido de declaração de inconstitucionalidade sobre o alargamento do período experimental. O TC acabou por apenas considerar inconstitucional o alargamento no caso dos trabalhadores à procura do primeiro emprego que já tinham sido antes contratados a prazo por, pelo menos, 90 dias.
É apenas com vista a clarificar a formulação que o Governo quer alterar o que já estava na lei relativamente a este ponto, e não para ir ao encontro do PCP. Na Agenda, o Executivo quer estabelecer que o alargamento do período experimental se aplica a jovens que “não tenham tido contratos a termo de 90 dias ou mais na mesma atividade, mesmo que com outro empregador”.
Os comunistas também queriam, na proposta viabilizada pelo PS, a revogação dos contratos especiais de muito curta duração e o aumento do período durante o qual o empregador não pode firmar novos contratos a termo ou temporários, para as mesma funções, de um terço da duração do contrato, para metade, quando o contrato cessa “por motivo não imputável ao trabalhador”, “reduzindo ainda as exceções a esta regra”. O projeto defende ainda a redução, de três para dois, do número máximo de renovações do contrato a termo certo e a redução da duração do contrato a termo incerto para o máximo de três anos.
O Governo centra muitas das propostas da Agenda no combate ao “recurso abusivo ao trabalho temporário”, mas só concretiza mudanças nos limites de renovações no caso dos contratos temporários: “tornar mais rigorosas as regras para renovação dos contratos de trabalho temporário, aproximando-as dos contratos a termo, estabelecendo como limite quatro renovações“. A mira continua sobre os contratos a termo: quer reforçar as regras “relativas à sucessão de contratos a termo evitando o recurso abusivo a esta forma de contratação, designadamente impedindo a nova admissão ou afetação de trabalhador através de contrato (a termo, temporário ou prestação de serviços) cuja execução se concretize, no mesmo posto de trabalho, para o mesmo objeto ou na mesma atividade profissional” e reforçando a intervenção da Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT) no que toca à conversão de contratos a termo em contratos sem termo.
Pelo caminho ficam outras propostas do PCP, Bloco, PAN e Verdes, entre as quais a consagração do direito a 25 dias úteis de férias (atualmente está nos 22), nos setores público e privado — que o Bloco quer agora garantir no acordo escrito para poder viabilizar o Orçamento do Estado para 2022 —, ou a redução para 35 horas semanais do limite máximo de horário de trabalho também para o privado (já se aplica no Estado).
Quanto ao trabalho não declarado (na Segurança Social), quer “reforçar o quadro sancionatório”, nomeadamente “criminalizando o recurso a trabalho nestas condições”. O Governo pretende também legislar em relação aos trabalhadores das plataformas digitais, dando-lhes maior proteção social. A ideia é criar um mecanismo de “presunção de existência de contrato de trabalho com a plataforma ou a empresa que nela opere”.
Em cima da mesa estão ainda propostas ao nível da parentalidade, nomeadamente permitindo que, quando os pais de uma criança estão impedidos de gozar licença parental, esta possa ser transmitida a familiares diretos como avós, tios ou irmãos.
Mudanças no teletrabalho em banho-maria
No Parlamento, há uma série de propostas para regular o teletrabalho, que estão em banho-maria e cuja votação, segundo o Dinheiro Vivo, pode só acontecer em dezembro.
O Código do Trabalho define que o teletrabalho está sujeito a acordo entre as partes. A exceção são os trabalhadores com filhos até aos três anos — nesses casos não precisam da aprovação do empregador, quando as funções são “compatíveis com a atividade desempenhada e a entidade patronal disponha de recursos e meios para o efeito”. O Executivo quer que o limite de idade passe para os oito anos, se o regime de teletrabalho for partilhado.
A proposta que consta na Agenda do Trabalho Digno é “alargar aos trabalhadores e trabalhadoras com filhos menores de 8 anos de idade ou filhos com deficiência ou doença crónica o direito a exercer a atividade em regime de teletrabalho, condicionado à partilha entre homens e mulheres e quando compatível com as funções”. A medida resulta da transposição de uma diretiva europeia que tinha de ser transposta para a lei nacional até agosto de 2022.
Mas os partidos querem ir mais longe, nomeadamente no que toca ao direito a desligar e às despesas que devem ficar a cargo do empregador.