Primeiro foram mais seis meses, depois mais dois meses. Já vai em oito meses o prolongamento dado ao regime de tarifas garantidas que beneficia a produção de eletricidade por parte das unidades de processamento de resíduos urbanos decidido pelo Ministério do Ambiente e Ação Climática.
Este regime durou 15 anos e deveria ter terminado no início deste ano, mas em fevereiro uma portaria assinada pelo secretário de Estado da Energia, João Galamba, deu mais seis meses de remuneração acima do preço do mercado às duas empresas que produzem energia elétrica a partir dos resíduos, a Lipor no Porto e a Valorsul em Lisboa. A decisão terá impacto nos custos que são transferidos para as tarifas da eletricidade. Este regime, ao assegurar um pagamento superior aos preços de mercado, envolve um sobrecusto para o sistema elétrico que é sustentado por todos os consumidores de eletricidade.
Nas contas feitas inicialmente pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), estimava-se que a diferença entre o regime remuneratório garantido e os preços de mercados para os primeiros seis meses variasse entre os oito e os 12 milhões de euros, de acordo com o parecer remetido ao Governo quando foi publicada a primeira portaria de fevereiro.
Perante a descida acentuada dos preços no mercado grossista de energia, em resultado da paragem da economia, o sobrecusto associado ao regime acabou por se fixar no valor mais alto do intervalo estimado, cerca de 12 milhões, de acordo com uma resposta enviada ao Observador por fonte oficial da ERSE. Mas a fatura não fica por aqui.
Já em agosto, numa portaria agora assinada pelo ministro do Ambiente, João Matos Fernandes, o Governo estende por mais dois meses o regime de remuneração da eletricidade gerada nas centrais de resíduos. Consultado previamente, o regulador da energia voltou a fazer contas ao sobrecusto que essa decisão terá para os consumidores da eletricidade e chegou a mais 4,6 milhões de euros, o que corresponde a 2,3 milhões de euros por cada mês de prorrogação. Ou seja, a conta estimada pelo ERSE vai já em 16,6 milhões de euros.
Segundo confirmou ao Observador fonte oficial ERSE, estes valores “são os impactos diretos estimados para o setor elétrico, sendo os seus valores repercutidos na tarifa do ano a que respeitam ou, havendo ajustamentos, no ano seguinte ou até dois anos após aquele a que respeitem.”
Se existe um sobrecusto para os consumidores de eletricidade, quem fica a ganhar com esta extensão?
Os 16,6 milhões apurados pela ERSE correspondem a um adicional ao subsídio dado pelo sistema elétrico e pelos consumidores de eletricidade à atividade de recolha e tratamento de resíduos e às empresas gestoras. Os beneficiários são, pelo menos em tese, os clientes dessas entidades, sejam as câmaras que pagam as tarifas de resíduos, sejam os habitantes dos municípios a quem as autarquias devem passar esses custos. O que nem sempre acontece.
Governo diz que quer manter incentivo à energia produzida a partir de resíduos
Na portaria de fevereiro, o secretário de Estado da Energia fundamenta a extensão com a necessidade de dar um período adicional de remuneração garantida, que segundo um segundo diploma aprovado em 2013 podia ir até cinco anos, para “assegurar uma transição do regime remuneratório de transição que regule, de modo abrangente, o universo de centros eletroprodutores que utilizam resíduos urbanos para a produção de energia elétrica”. Podendo o prazo legal ir até cinco anos, o governo tem margem para voltar a renovar este quadro favorável para as empresas que produzem eletricidade a partir de resíduos.
Do lixo à eletricidade
↓ Mostrar
↑ Esconder
Os resíduos biodegradáveis resultantes da recolha seletiva são transformados em composto (corretivo agrícola orgânico) e biogás, através de um processo de digestão anaeróbia, seguido de uma estabailização aeróbica de material de compostagem. O gás, produto de fermentação, é utilizado na produção de energia elétrica, exportada para a rede nacional.
Fonte oficial do Ministério do Ambiente e Alteração Climática (MAAC) sublinha ao Observador que o Governo entendeu que um regime de transição para o regime de mercado era desejável, não só para conter os efeitos que a perda das tarifas bonificadas terão sobre as tarifas praticadas pelos operadores, mas também para fazer a ponte para um novo paradigma da gestão de resíduos que privilegiará o desvio dos biorresíduos de operações de eliminação por deposição em aterro e de valorização energética e o incremento da reciclagem, com revisão da metodologia de aferição do cumprimento das respetivas metas”.
O Ministério do Ambiente e Ação Climática sublinha ainda que “em qualquer caso, os proveitos associados à venda da eletricidade produzida repercutem-se favoravelmente nos custos suportados pelos municípios utilizadores, beneficiando sempre o cidadão”. Neste caso, serão os cidadãos dos concelhos da Grande Lisboa e do Grande Porto que são servidos pela Valorsul e Lipor. Do outro lado, estão todos os consumidores de eletricidade, ainda que o impacto deste encargo adicional seja pouco significativo nos custos totais do sistema da ordem dos 5,7 mil milhões de euros.
Nas respostas ao Observador, o Ministério indica ainda que as empresas em causa pediram “a definição de um regime de transição para o mercado, como aliás decorre da legislação aplicável em matéria de tarifas”. Este regime de transição está alinhado “com os objetivos do Governo no sentido de mitigar os efeitos da perda da tarifa bonificada sobre os municípios, bem como de transição para o novo paradigma de gestão de resíduos acima referido”. Além de que, acrescenta, o plano estratégico dos resíduos prevê a manutenção de incentivos à produção de energia a partir de resíduos, ainda que indexados a metas de desempenho, em setores como a reciclagem.
O Ministério confirma que foi estudado um regime de transição que contemplará incentivos à alteração progressiva do regime de produção de eletricidade, designadamente em matéria de utilização de biorresíduos. Mas sem especificar se a fatura desse regime recairá sobre os preços da eletricidade.
Vendas de eletricidade valem mais de metade da receita da Valorsul
Numa primeira linha quem ganha são as duas empresas de gestão de resíduos urbanos que continuam a beneficiar de uma tarifa de venda da eletricidade acima do preço de mercado, mas que foram compensadas pelo fim desse regime desde o início de 2020, de acordo com a decisão da ERSAR (Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos) que fixou as tarifas para este ano, isto no caso da Valorsul. Na Lipor, o regulador só dá pareceres.
A Valorsul é responsável pela gestão e tratamento dos resíduos sólidos urbanos de 19 municípios das regiões de Lisboa e Oeste de Portugal — Alcobaça, Alenquer, Amadora, Arruda dos Vinhos, Azambuja, Bombarral, Cadaval, Caldas da Rainha, Lisboa, Loures, Lourinhã, Nazaré, Óbidos, Odivelas, Peniche, Rio Maior, Sobral de Monte Agraço, Torres Vedras, Vila Franca de Xira. A empresa faz parte do grupo EGF (Empresa Geral de Fomento) que é controlado pela Mota-Engil e que há cerca de um ano foi notícia por causa de uma conflito também nos resíduos entre o ministro do Ambiente e o regulador liderado por Orlando Borges.
Como o negócio do lixo abriu uma guerra entre o regulador e o Ministério do Ambiente
A Lipor gere um sistema intermunicipal de tratamento de resíduos que envolve oito municípios do Grande Porto que são também os seus acionistas: Espinho, Gondomar, Maia, Matosinhos, Porto, Póvoa de Varzim, Valongo e Vila do Conde.
As duas empresas têm como clientes diretos as autarquias que pagam pelo tratamento dos resíduos, mas enquanto a Valorsul está sujeita à fixação de tarifas pela Entidade Reguladora dos Serviços de Água e Resíduos (ERSAR) — mantendo aliás vários contenciosos com a ERSAR em tribunal a contestar essas tarifas — as tarifas da Lipor não são fixadas pelo regulador.
Tirando estas diferenças, as contas das duas empresas mostram que ambas dependem fortemente das receitas geradas pela venda de energia ao sistema elétrico, a preços mais altos. A Valorsul faturou 54 milhões de euros no ano passado e mais de metade desse valor, 31 milhões de euros, veio de venda da eletricidade a preços mais favoráveis. No caso da Lipor, a energia rendeu receitas de 18 milhões de euros numa faturação total da ordem dos 44 milhões de euros no ano passado.
O prazo de 15 anos de um regime remuneratório na venda da eletricidade (que acabou em 2020) foi atribuído para ajudar a recuperar o elevado investimento feito pelas das empresas nos sistemas de processamento de resíduos.
Regulador diz que há um “duplo benefício”, mas que será corrigido
De acordo com as respostas dadas pelo Ministério do Ambiente, ao não ter sido definido o tal regime de transição, a “Valorsul (uma vez que a LIPOR, sendo um serviço intermunicipalizado, não está sujeita à mesma regulação), terá apresentado à ERSAR um projeto tarifário que, à cautela, não considerou uma tarifa bonificada.” E foi essa proposta validada pelo regulador dos resíduos.
O que é certo é que o regulador dos resíduos não foi chamado a dar parecer sobre a extensão do regime favorável decidida por João Galamba, porque o quadro legal não o determina. Mas numa carta enviada à ERSE em agosto — e da qual é dado conhecimento ao Ministério do Ambiente — o regulador dos resíduos afirma que a “tarifa em vigor já assegura a transição do regime remuneratório, garantindo um regime de mercado, evitando flutuações tarifárias expressivas”. Isto porque ao fixar as tarifas a cobrar pelo tratamento de resíduos para este ano, o regulador teve em consideração o prazo de remuneração garantida previsto no quadro legal de 2013 e que terminaria no início de 2020.
Ou seja, quando fixou as tarifas para este ano a cobrar pela Valorsul aos municípios (no caso da Lipor a ERSAR só dá pareceres), o regulador permitiu proveitos mais elevados para acautelar a perda da receita na venda de eletricidade. Logo, na mesma carta, a que o Observador teve acesso, o regulador dos resíduos sublinha que com o alargamento deste prazo “gerou-se no imediato um duplo benefício para a Valorsul que, por um lado recebe uma tarifa pela cessação da remuneração garantida, e aplica a tarifa de mercado e, por outro, mantém essa remuneração garantida”. Ainda que esse benefício venha a ser corrigido mais tarde, como já veremos.
Em agosto, e já depois de se saber que o sobrecusto estimado pela ERSE seria mais alto por causa da descida dos preços da energia causada pela pandemia, uma nova portaria estendeu por mais dois meses o regime favorável às empresas. Mas desta vez é assinada pelo ministro do Ambiente.
João Matos Fernandes invoca o estado de emergência por causa da pandemia que provocou “um conjunto inesperado de constrangimentos com que se depararam as entidades públicas e privadas”. “O estado de emergência e subsequentes estados de calamidade e de alerta determinaram um atraso nos procedimentos administrativos tendentes à aprovação do regime de transição definitivo, motivo pelo qual foi determinada a prorrogação da sua vigência pelo período adicional de dois meses”, justifica o MAAC nos esclarecimentos enviados ao Observador.
Já sobre a razão pela qual foi o ministro e não o mesmo secretário de Estado a assinar a portaria, o Ministério do Ambiente lembra que “os ministros são sempre os responsáveis máximos em cada área governativa, exercendo os secretários de Estado as competências que lhes sejam delegadas pelos respetivos ministros. Esta delegação não impede o exercício da competência diretamente pelo ministro, designadamente na ausência do secretário de Estado e em caso de urgência, o que se afigurou necessário com vista a impedir a caducidade da medida temporária criada pela Portaria n.º 41/2020, de 13 de fevereiro”.
Confrontado com novo adiamento, e sem ter sido novamente ouvido — ao contrário da ERSE — o regulador dos resíduos escreveu à congénere na energia uma carta (já parcialmente citada neste artigo) a referir o duplo benefício para as empresas, mas também a explicar que no caso da Valorsul, as receitas adicionais obtidas serão posteriormente ajustadas — no ano de 2020 — por via da aplicação do regime tarifário do setor e em função do desvio originado pela alteração aos proveitos previstos, nomeadamente no preço da produção de energia elétrica, “limitando-se assim esse duplo benefício”.
Já no caso da Lipor, a ERSAR adianta que, não obstante ter emitido pareceres no sentido da diminuição das tarifas cobradas pelo tratamento de resíduos, “estes não têm sido acatados”. Nesse sentido, o regulador está convencido que a decisão de cessação da remuneração garantida “possa, eventualmente, ser acomodada na tarifa em vigor, sem com isso onerar os municípios” servidos pela empresa. Na missiva pede ainda à ERSE que remeta os valores reais do tal benefício obtidos pelas empresas nos primeiros seis, e o esperado para os dois meses seguintes, para poder calcular o ajustamento a fazer no futuro.
Se no caso da Valorsul o benefício a nível do aumento de receita é temporário e pode ser corrigido, já no caso da Lipor isso não é adquirido, sendo que a primeira é privada e a segunda é publica.