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Dois barcos carregados com milho, mais um de cevada e outro com trigo. É este o plano de descargas no Porto de Lisboa para esta semana. “E são dos grandes”, com capacidade para cerca de 70 toneladas, diz Jaime Piçarra, secretário-geral da Associação Portuguesa dos Industriais de Alimentos Compostos para Animais (IACA). O que significa que cada dia de frete pode custar até 50 mil euros. Mas vai custar mais.
A greve dos trabalhadores das administrações portuárias, que dura desde 22 de dezembro e deverá prolongar-se até 30 de janeiro, tem deixado os operadores a ver navios. Os barcos chegam, mas às segundas e sextas, dias de paralisação, não podem descarregar. O setor mais afetado tem sido a indústria agroalimentar, em particular a dos cereais, para alimentação humana e animal, que foi deixada de fora dos serviços mínimos. Nas fábricas, faz-se ginástica para esticar a matéria-prima em stock.
“Não está em causa o direito à greve“, sublinha Jaime Piçarra. “Mas apelamos ao bom senso e pedimos para que se chegue a um acordo. Continuando a greve, que se reveja a questão dos serviços mínimos, que não estão salvaguardados” uma vez que preveem apenas a descarga de produtos perecíveis, e deixam de fora as matérias-primas destinadas a alimentação humana e animal. “A gestão está a ser feita semana a semana”, desabafa Jaime Piçarra.
O pedido de “bom senso” da IACA é dirigido não só aos trabalhadores em greve, mas também ao Governo. Têm sido, aliás, várias as associações empresariais a alertar o Executivo para as consequências do protesto. Das Infraestruturas, que têm a tutela dos portos, às Finanças, que têm sido chamadas a resolver aquela que é a principal reivindicação do Sindicato Nacional dos Trabalhadores das Administrações Portuárias (SNTAP), que convocou a greve: a proposta de revisão salarial para 2023.
A proposta, que defende aumentos superiores aos 5,1% definidos pelo Governo, para ter em conta a realidade do setor, foi apresentada às administrações dos portos, a quem o sindicato aponta, em declarações à Lusa, “ausência total de disponibilidade” para dialogar, “nomeadamente por parte das administrações de Sines e de Lisboa”. As primeiras reuniões aconteceram já após o pré-aviso de greve, até agora sem sucesso. O sindicato reclama a intervenção do ministério de Fernando Medina. “Tivemos alguns contactos e reuniões com a tutela setorial. Porém, no último contacto, voltámos à estaca zero. O processo emperra na tutela das Finanças e não é uma questão de verba”, disse à Lusa Serafim Gomes, presidente do sindicato. O Observador questionou as Finanças sobre as negociações com o sindicato, mas não obteve resposta até ao momento.
Nas associações, teme-se que a atual crise política, que conduziu à remodelação do Governo, atrase ainda mais as negociações. Até porque o ministério que sofreu a maior reviravolta foi o das Infraestruturas, que tutela os portos, e que passou de Pedro Nuno Santos para João Galamba. “Claro que a mudança vai atrasar as conversas, porque não há interlocutores do outro lado para dar andamento às coisas. Estou a admitir que a nova equipa das Infraestruturas vai ter de falar com os trabalhadores” dos portos, aponta Jaime Piçarra.
Se as Finanças não respondem, e as Infraestruturas não têm interlocutor, a Economia não vê, até agora, razões para alarme no que toca ao abastecimento de matérias-primas, segundo afirmou o ministro António Costa Silva na passada sexta-feira. Também questionado pelo Observador, o ministério refere apenas estar a “acompanhar a situação”.
O mesmo alerta foi dado pela Associação Nacional de Armazenistas, Comerciantes e Importadores de Cereais e Oleaginosas (ACICO). “Alertámos os ministros da tutela quando foi marcada a greve, fizemos um reforço no final do ano ao primeiro-ministro. Não tivemos resposta”, diz ao Observador José Miguel Ascensão, secretário-geral da ACICO.
Navios no mar, tempestade em terra
Nas fábricas, o cenário é outro. A aparente serenidade do Executivo contrasta com o “desassossego” vivido pela indústria. “Nas últimas duas semanas, isto tirou-me o sono quase todos os dias“, diz ao Observador João Monteiro, administrador da Moagem Ceres, empresa do Porto que vende farinhas e cereais. “Está a criar-nos enormes problemas”, revela. Acontece que a greve coincidiu com o mau tempo nos portos de origem, sobretudo França, e que já tinham atrasado a chegada da carga dos navios.
Numa empresa como a Ceres, que depende das importações a 100%, a paralisação está a provocar “custos acrescidíssimos”, sobretudo de transporte. “Estamos a incorrer em custos com as demoras. Um navio parado, por muito pequeno que seja, representa dezenas de milhares de euros por dia”.
Entre 20 mil e 50 mil, para ser mais exato, revela Jaime Piçarra. “Depende da dimensão dos navios. Em Lisboa, como chegam barcos de maior tonelagem, podemos estar a falar de custos de sobrestadia de 50 mil euros por dia, por cada barco. Os mais pequenos rondam os 20 mil euros. Se o barco tem de ficar quatro ou cinco dias… é multiplicar”, diz o porta-voz da IACA. No início da paralisação, a associação calculou que o custo da greve para as empresas pode oscilar entre um e dois milhões de euros, “considerando os barcos todos e atrasos de quatro a cinco dias”.
Noutra grande fábrica do grande Porto, a da Cerealis, dona de marcas como a Milaneza, a greve nos portos também “tem implicado elevados custos e fortes constrangimentos nas operações de descarga de cereais a granel, bem como na exportação de contentores”, diz ao Observador fonte oficial, em resposta escrita. Para além dos “custos incomportáveis” das taxas de sobrestadia, “custos estes totalmente assumidos pelas empresas como a Cerealis”, a situação “está a colocar em causa o abastecimento de matérias-primas críticas [cereais] à produção, que no nosso caso podem ter implicações significativas no fornecimento de alimentos essenciais para o mercado”, refere a Cerealis.
Em Aveiro e Leixões registaram-se, até agora, atrasos de dois a quatro dias em quatro barcos, que vinham carregados de milho e trigo. Para janeiro, está prevista a chegada de sete barcos mais pequenos de trigo, milho e cevada, a Leixões e Aveiro. O tempo de sobrestadia é uma incógnita. Os dois barcos que chegam esta semana a Lisboa “vão ter sobrestadias de um ou dois dias de certeza, segundo os operadores. E vamos ver se não têm de quatro ou cinco”, nota. “Se as coisas correrem mal, a semana seguinte poderá ficar comprometida. Porque depois é preciso descarregar os barcos e há acumulação de navios”.
Esta quarta-feira, exemplifica João Monteiro, um barco com destino a Leixões, de onde a Ceres descarrega toda a sua matéria-prima, foi enviado para Aveiro, devido à acumulação de navios. Há dias, a empresa teve de recolher stock em Lisboa, “com custos elevados de transporte” rodoviário. “Custa dez vezes menos transportar o produto do silo de Leixões para a fábrica do Porto que ir buscá-lo ao Beato, a Lisboa“, aponta. Além dos custos com o transporte, na altura das festas “precisávamos de 30 camiões e arranjávamos dez”.
Também para a Cerealis os camiões são a última opção. “Num país como o nosso, em que a importação de cereais por via marítima é responsável por mais de 80% da produção, os planos alternativos por via rodoviária têm uma pequena escala, não sendo a solução para o problema. Na Cerealis, responsavelmente procurando garantir o fornecimento e os níveis de serviço ao mercado, vamos montando planos de contingência sempre com custos em cima de operações já de si muito onerosas”, diz fonte da empresa.
“Tem sido um desassossego todos os dias porque não sabemos se no dia seguinte vamos ter matéria-prima para trabalhar”, destaca o gestor da Ceres.
A empresa chegou a ponderar trazer a mercadoria de Espanha, dos portos de Vigo ou Marin, mas a opção não se revelou financeiramente viável. Mas a solução estará a ser adotada por outras empresas. “Espanha é sempre o ganhador dos nossos problemas”, diz Jorge Henriques, presidente da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA). José Miguel Ascensão, da ACICO, ainda não tem conhecimento de qualquer caso, mas admite que possa estar a ocorrer. “Já aconteceu no passado”.
Ruturas “pontuais” e um risco maior que na pandemia
Para já, os atrasos nas chegadas têm sido de “um ou dois dias”, garante Jaime Piçarra, e não há, para já, notícia de ruturas entre as associadas da IACA. Aqui, os stocks chegam para “três a cinco dias nas fabricas”, além de que os próprios importadores também têm estado a constituir stocks, e têm reservas para “de 15 dias a três semanas”. No entanto, avisa, “se uma semana corre mal, a semana a seguir fica em risco“.
Foi o que quase aconteceu na Ceres. “Em três das nossas quatro fábricas ficámos quase sem matéria-prima. Andámos a transferir produção de umas fábricas para as outras. Nunca tivemos uma rutura hipoteticamente tão presente como desta vez, porque foi alargada a mais que uma fábrica”, diz João Monteiro, recordando a pior época da Covid-19.
Noutras fábricas, já terá ocorrido. Segundo Jorge Henriques, presidente da Federação das Indústrias Portuguesas Agro-Alimentares (FIPA), a greve causou “ruturas pontuais” entre os associados, “que têm vindo a ser colmatadas por stocks existentes”, sendo as indústrias que transformam cereais e as de compostos para animais “as que mais sofrem”. Também a FIPA alerta para os “custos elevados” das sobrestadias dos barcos, que “está a ter um grande impacto nos custos das empresas” e ainda “poderá vir a ter no abastecimento”.
Também Jorge Henriques lembra outras crises, para reforçar o impacto desta. “Durante a pandemia e o início da guerra na Ucrânia conseguimos ultrapassar as dificuldades no aprovisionamento de matérias- primas. Houve alterações na produção, houve dificuldades, mas não houve paragens. E agora corremos esse risco”. Isto “se não houver solução para este conflito”.
O dirigente da FIPA aponta o dedo ao Governo. “Não conseguimos perceber porque é que não são tomadas medidas e não é colocada uma solução na mesa. Isto tem um impacto brutal nos planos de produção das empresas, que já estão muito afetadas nos custos, devido aos aumentos de fatores como a energia e os transportes. E não temos ouvido do lado do poder político nenhuma palavra sobre esta situação“, lamenta.
Para o responsável, esta é a altura certa para se começar a dar atenção não só à resolução da greve, mas aos problemas que assolam os portos e que não são de hoje. “Esta situação soma-se à ineficiência que existe nos portos há muitos anos. Os portos portugueses são os mais ineficientes da Europa, e os mais caros”, diz Jorge Henriques.
A visão é corroborada pelo líder da IACA. “Num país que depende em 80% de importações de cereais, a instabilidade nos portos é preocupante”, critica. “Numa altura em que vamos ter uma nova equipa nas Infraestruturas, a situação das operações portuárias deve ser encarada como prioritária”.
Nas empresas, o apelo é semelhante. “Num contexto grave como este, tal como aconteceu em situações de greves registadas no passado, os serviços mínimos deveriam incluir todas as operações necessárias para a movimentação e descarga de cereais, matéria-prima critica para a produção de bens alimentares essenciais à alimentação humana. Neste sentido, a Cerealis, está expectante quanto à atuação do Ministério das Infraestruturas, para a resolução desta situação com caráter urgente”, refere a empresa dona da Milaneza.
A manter-se a paralisação até 30 de janeiro, o aumento dos preços será inevitável, diz Jaime Piçarra. “Quem paga estes custos, numa primeira fase, é o operador, mas no médio prazo somos nós que pagamos a matéria-prima, e depois vamos ter de refletir no preço no produto final”. Também para a ACICO esse cenário é “evidente”.
Na fábrica da Ceres, no Porto, ainda não se fizeram contas ao aumento dos custos e possíveis prejuízos. “A preocupação foi colocar as fábricas a trabalhar”. Já a antecipar o cumprimento da greve até ao fim, a empresa começou a encomendar mais matéria-prima do que vai precisar. “Porque não sabemos se os navios que vão chegar na segunda-feira, que é dia de greve, vão entrar na terça, na quarta ou na terça-feira da semana seguinte”.
À data de hoje, há dois barcos a descarregar e mais dois a caminho. “Se todos atracarem e descarregarem, ficamos sossegados para duas ou três semanas. Mas nunca sabemos quando chegam e quanto tempo vão demorar a descarregar. Estamos mais desafogados”, admite João Monteiro. Hoje, vai dormir descansado. “Mas pode ser por pouco tempo”.
(Artigo atualizado às 20h10 de 05 de janeiro com declarações de fonte oficial da Cerealis)