Precários, mal pagos e sem perspetivas de evolução na carreira. O diagnóstico sobre o estado das Forças Armadas é partilhado por (quase) todos e ajuda a explicar em parte o problema da falta de efetivos militares. A esse propósito, e apesar dos números para todos os gostos, há dois dados objetivos e uma reflexão a fazer: o contexto geoestratégico mudou, o Estado português está aquém dos compromissos assumidos (internos e externos) e é preciso garantir, de alguma forma, que há mais jovens a ingressarem na carreira militar.
O debate é cíclico e surge recorrentemente: existe forma de contornar a falta de efetivos que não através do regresso serviço militar obrigatório? Em contexto de guerra na Europa, com países como a Suécia a retomarem a conscrição, há quem, em Portugal, esteja a tentar relançar esse debate sobre o modelo de recrutamento das Forças Armadas. Mesmo sem defender abertamente o regresso do modelo extinto em 2004, o primeiro a falar do tema com grande destaque foi o general Luís Valença Pinto, antigo Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas (CEMGFA) entre 2006 e 2011.
“Se me perguntassem há um mês o que é que eu pensava sobre uma eventual retoma do serviço militar obrigatório em Portugal e no resto da Europa eu diria que não havia espaço político nem psicológico. [Face ao contexto europeu] talvez venha a colocar o debate do serviço militar obrigatório em cima da mesa mais cedo do que se pensava”, consentiu.
A questão contaminou de imediato a visita de Estado de Marcelo Rebelo de Sousa a Moçambique — onde, de resto, Portugal tem tropas destacadas. Confrontado pelos jornalistas, o Presidente da República e Comandante Supremo das Forças Armadas tentou arrumar a questão. “Por causa da evolução do pós-pandemia, no quadro das alternativas de trabalho e também pelo apelo que parece crescente as Forças Armadas em relação a muitos jovens as perspetivas podem melhorar nos próximos tempos. Por isso não se fala nessa matéria até porque o tema colocaria outras questões, que não estão na ordem do dia neste momento”, argumentou Marcelo.
Mas a posição do Presidente da República está muito longe de ser unânime. Mesmo sem defenderem o regresso do serviço militar obrigatório no sentido estrito do termo, da esquerda à direita do espectro político e nas próprias Forças Armadas, são muitas vozes a defenderem que se repense o modelo de recrutamento para fazer face aos desafios colocados pela falta de efetivos e pela fraca valorização da carreira militar.
Bloco central de acordo: é preciso reforçar o efetivo militar
“A realidade geoestratégica mudou profundamente. Aquilo que era uma ameaça transformou-se numa agressão e pôs fim a um longo período em que as democracias ocidentais procuraram estabelecer uma relação normal com a Rússia”, começa por dizer ao Observador o socialista Marcos Perestrello, ex-secretário de Estado da Defesa e presidente da comissão parlamentar da mesma área.
Ora, isto “vai implicar uma adequação da estrutura de Defesa”, continua o deputado. “Portugal vai ter decidir qual é o seu papel nisto tudo e o que é que está disponível para fazer. Temos de saber que Forças Armadas queremos. No meu entender, obrigará necessariamente a reforçar o efetivo militar e a revermos a forma de recrutamento, melhorando as condições de atratividade da carreira”, argumenta Perestrello.
O social-democrata Carlos Eduardo Reis, vice-presidente da mesma comissão parlamentar de Defesa, concorda. “Os nossos militares precisam de um ordenado digno e de um horizonte de carreira. Não é uma carreira atrativa e não vale a pena falar do serviço militar obrigatório sem se resolver estas duas questões”, nota.
“Pelo posicionamento geoestratégico que tem”, continua Carlos Eduardo Reis, “pela costa e pelos compromissos internacionais a que está obrigado, Portugal não pode abdicar de Forças Armadas de qualidade e condignamente equipadas”. “Basta ver o papel que desempenharam durante a pandemia e olhar para o contexto atual. O investimento nas Forças Armadas tem de ser uma prioridade.”
Não é a única voz no PSD a defender o mesmo. “Os nossos filhos têm de estar preparados para um dia, eventualmente, combaterem e morrerem se for preciso, pela União Europeia”, argumentou Francisco Proença Garcia, tenente-coronel na reforma e conselheiro para a Defesa do PSD, em entrevista ao Diário de Notícias, lamentando ainda a falta de respostas da atual solução.
“Este modelo de voluntariado e profissional deixou de ser atrativo. Não sei se é preciso voltar o serviço militar obrigatório, mas temos de repensar o modelo atual e o mais importante é lançarmos o debate e esse debate deve ser informado”. Particularidade: a entrevista de Proença Garcia foi partilhada nas redes sociais por Rui Rio, ainda líder do PSD.
PCP: “Sejam bem-vindos à discussão sobre o serviço militar”
O serviço militar obrigatório chegou formalmente ao fim em setembro de 2004. Curiosamente, foi uma causa de Pedro Passos Coelho, uma decisão de António Guterres e uma medida oficializada por Paulo Portas, então ministro da Defesa.
Em 1999, Pedro Passos Coelho, então um jovem deputado, tentou pressionar António Guterres a colocar termo àquele modelo de recrutamento o quanto antes. Sob protesto do futuro primeiro-ministro, o socialista fixou um prazo de transição de quatro anos para adaptar as Forças Armadas à nova realidade. No Parlamento, a decisão foi aprovada com os votos favoráveis do PS e do CDS, a abstenção do PSD e o voto contra do PCP.
Em 2004, pela pena de Paulo Portas, o serviço militar obrigatório chegava finalmente e formalmente ao fim. Curiosamente, o mesmo Valença Pinto que agora relançou o debate e que ocupava então as funções CEMGFA esvaziava qualquer tipo de polémica. “Esta medida é perfeitamente pacífica e absolutamente esperada e pré-anunciada e não tem a mais pequena consequência a não ser para aqueles que persistem numa atitude de ‘Restelo’”, rematou então.
Tal como fizeram na altura, os comunistas lamentam a decisão. “Sejam bem-vindos à discussão”, ironiza o ainda deputado comunista António Filipe em declarações ao Observador. “Na altura, desvalorizam as consequências previsíveis do fim do serviço militar obrigatório. Quem desenhou este modelo está a colher aquilo que semeou”, aponta.
Para o PCP, a via profissionalizante só seria um caminho possível se viesse acompanhada de condições objetivas de valorização da carreira militar – coisa que, no entender dos comunistas, nunca aconteceu. Além disso, há a questão da Constituição da República Portuguesa que diz, recorda António Filipe, que a “defesa da pátria é direito e dever fundamental de todos os portugueses”.
“O modelo que se adotou desliga grande parte da população da Defesa Nacional. Aparece como uma coisa muito distante. Agora, é uma questão que vale a pena ser debatida, mas que não pode ser discutida como uma proposta avulsa”, nota.
Ventura admite obrigação de ir à tropa. Mas não para já
Apesar de não ter inscrito a medida nos programas eleitorais com que se apresentou a votos, André Ventura chegou a admitir apresentar uma proposta nesse sentido. A 6 de janeiro, em entrevista à revista Sábado, o líder do Chega assumiu que via com bons olhos o regresso do serviço militar obrigatório para homens e mulheres e que a questão estava a ser analisada e ponderada pelo gabinete de estudos do partido.
Agora, fonte oficial do Chega limita-se a dizer que “não se justifica relançar essa questão” e que Ventura, apesar de ter assumido “essa possibilidade” em janeiro, acredita que este “não é o momento” de discutir o regresso da conscrição.
Uma solução que a Iniciativa Liberal rejeita, embora reconheça a necessidade de aumentar o número de efetivos. “Não nos revemos em modelos obrigatórios de recrutamento ou serviço militar”, sintetiza fonte oficial do partido. O que é preciso, argumentam os liberais, é avançar com “a revisão da tabela remuneratória dos militares”, resolver a “manifesta desproporção entre o número de oficiais e o de praças e sargentos” e “garantir as condições que possibilitem a reintegração dos ex-militares no mercado de trabalho”.
“A Iniciativa Liberal lamenta que seja necessária uma crise militar, política e humanitária como a que agora foi gerada pela inaceitável invasão da Ucrânia pela Rússia imperialista, para que o PS saia da sua habitual letargia do deixa andar e encare a necessidade de resolver estes temas estratégicos”, remata a IL.
Posição de princípio partilhada pelo Bloco de Esquerda, um partido que historicamente contra a conscrição e que se opôs igualmente ao “Dia da Defesa Nacional”, tem há muito defendido que o regresso do serviço militar não é uma solução para a falta de efetivos e que se impõe antes uma aposta decidida na condição militar, com o reforço da saúde e assistência dos militares, do sistema remuneratório e da carreira militar.
Apesar de ter perdido representação parlamentar, o CDS, até pelo papel duplo que teve no fim do serviço militar obrigatório (na votação de 1999 e depois na extinção formal do modelo), tem defendido com insistência que se reveja a carreira militar e as condições de recrutamento.
Nuno Melo, o candidato, em teoria, em melhores condições para suceder a Francisco Rodrigues dos Santos, parte do mesmo diagnóstico para propor quatro soluções complementares: criar um regime de serviço militar facultativo aberto a todos os jovens que queiram ter experiência militar durante um período equivalente à recruta”; valorizar salários; e apoiar o ingresso na vida profissional civil dos ex-militares que terminam o regime de contratos; e firmar protocolos com as Forças Armadas para formar jovens em regime de internamento.
Quantos efetivos existem? Ninguém se entende
No final de 2021, o Governo fixou em 32 mil número de efetivos das Forças Armadas para este ano, uma realidade muito distante da atual. Quão distante ninguém sabe exatamente — nem o próprio Governo socialista.
Em fevereiro, o Diário de Notícias atestava isso mesmo: no final do ano passado, o Ministério da Defesa garantia existir 27.741 efetivos nas Forças Armadas; a Direção-Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP) concluía que eram na verdade 26.130; a Pordata/INE diziam que eram 26.600; e o Estado-Maior-General das Forças Armadas (EMGFA) que junta Exército, Força Aérea e Marinha, contrapunha com 23.347.
Sem entrar na discussão sobre estes números, o general Fontes Ramalho, antigo representante militar de Portugal no Comité Militar da NATO e da União Europeia, entende que Portugal cometeu “quatro pecados cardeais” quando decidiu acabar com o serviço militar obrigatório e que ajudam a justificar o estado de coisas a que chegaram as Forças Armadas.
“Devíamos ter civilizado as Forças Armadas”, começa por dizer Fontes Ramalho, referindo-se a todas as “funções repetitivas, muitas vezes de logística e de manutenção”, que deviam estar adjudicadas a civis e não a militares, o que permitiria libertar “mão de obra muito qualificada” para se dedicar a outras tarefas.
A questão da “retribuição financeira” é, naturalmente, o outro grande obstáculo para o aumento do número de efetivos nas Forças Armadas, concede o general, que foi também diretor de Administração e Mobilização de Pessoal do Exército.
O outro erro de base, lamenta Fontes Ramalho, foi o de não se ter “aberto um horizonte de carreira” para os militares que não entram nos quadros permanentes e que depois de terminados os contratos (máximo de seis anos) têm poucas vantagens competitivas no regresso à vida civil. “Entram com uma mão vazia e outra cheia de nada.”