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Tinha acabado de chegar ao Brasil, ligou os dados móveis e recebeu uma mensagem por whatsapp. O remetente era o irmão de António Variações, Jaime Ribeiro, que juntamente com a família gere o legado do antigo cabeleireiro e cantor. Com apenas dois discos editados em vida, Variações deixou uma famosa caixa de sapatos com cassetes de inéditos, gravados de forma rudimentar em casa. Era aí que estava guardada a primeira maquete de “Guerra Nuclear”, agora tornada pública pela voz de Marisa Liz e com a produção de Moullinex.
“Andava numa enorme ansiedade, sempre a ligar para a minha manager para saber se já tinha havido uma decisão sobre quem ia cantar a música”, conta Marisa Liz ao Observador, numa entrevista pouco antes de entrar em estúdio para gravar o programa “The Voice”. “Isto surge porque os herdeiros do António acharam que estava na altura de divulgarem esta canção e pensaram em vários artistas. Inicialmente, seriam até vários a cantar, e eu estava também dentro desse leque.” Poucos dias antes, a vocalista dos Amor Electro tinha feito uma maquete com a música enviada pela família e foi quando aterrou no Brasil que chegou o veredicto: a decisão foi entregar a canção apenas à sua voz.
[veja aqui o vídeo de “Guerra Nuclear”, através do Youtube:]
“O que senti na altura não posso verbalizar porque inclui vários palavrões… Nunca tinha estado tão nervosa como no dia em que, juntamente com o Moullinex, gravámos o tema com a minha voz para enviar ao irmão do António”, conta. “Era um inédito e foi tudo muito rápido, tinha de enviar para aprovação da família. Quando recebi a mensagem no Brasil desatei a chorar. Chorei porque não acreditava que estava a acontecer. Não apenas por ser do Variações, mas pela canção que é, pela letra, pela mensagem, neste tempo de guerra. Ter a oportunidade de cantar também fez todo o sentido para mim: É o meu primeiro disco a solo, faço quarenta anos, é uma mudança na minha vida.”
Escrita no princípio dos anos 80 como canção de protesto contra a Guerra Fria — que dividia então a Europa (e o mundo) a partir do Muro de Berlim –, o tema é facilmente transposto para a realidade atual dadas as semelhanças, com a invasão da Ucrânia e o xadrez político mundial. “A loucura está a vencer o juízo, o ódio a amizade. Vou protestar, denunciar”, são algumas das palavras que se escutam aos primeiros acordes, com Marisa Liz a cantar num registo que nos remete de imediato para a forma peculiar como Variações interpretava os seus originais. “As frases contam uma história e deixam-nos um exemplo. Do início ao fim, a canção é fortíssima.”
Entre o cavaquinho e os sintetizadores, “muitas décadas à frente”
Aos poucos, a melodia vai ganhando força, até à entrada da voz original, captada pelo próprio Variações em sua casa, em Lisboa, com apenas uma guitarra acústica e uma caixa de ritmos. “Consegui isolar a voz do António e colocá-la na música através de um dispositivo de Inteligência Artificial”, conta o produtor desta nova versão, Luís Clara Gomes, também conhecido por Moullinex. “Achei que era uma canção inconfundível do Variações, tanto na melodia como na forma como o usa o português. Nota-se até em pequenos detalhes como no sotaque, porque ele, não sendo de um grande centro urbano, usava a sua pronúncia sem vergonha nenhuma, sem a preocupação de ser visto como um provinciano.”
Se para muitos António Variações foi uma ave rara que espantou Lisboa – nas palavras da sua biógrafa, Manuela Gonzaga –, a verdade é que, sem saber música, foi capaz de escrever dois discos hoje de referência ao longo de uma curta carreira, que durou pouco mais do que cinco anos. A obra desconhecida é vasta, e tem sido revelada em projetos como “Humanos”, que juntou as vozes de David Fonseca, Camané e Manuela Azevedo. A própria Marisa Liz gravou uma versão de “Estou Além”, num dos seus primeiros projetos, intitulado Dona Maria. “Conheço muito bem a sua obra. Cantei a ‘Canção do Engate’, ‘Vou viver’, e ouvi muito”, diz Marisa, que cedo se identificou com o estilo do músico nascido em Fiscal, Amares, no concelho de Braga.
“O Variações é uma das minhas maiores referências, identificava-me com ele desde miúda, não só com a música como com a estética e toda a liberdade que ele passava. Teve uma enorme influência em mim, a minha liberdade vem dessa influência. Ele foi um exemplo da ideia que devemos lutar por aquilo que somos, por seguirmos a nossa essência, caso contrário não somos ninguém, estamos só a perder tempo.” O produtor alinha o discurso: natural de Viseu, também ele furou o difícil mercado das editoras com o seu projeto Moullinex, sendo presença habitual em grandes festivais e com uma intensa atividade artística.
“Tive a sorte de ter crescido numa casa em que se ouvia muita música portuguesa, e não só, numa família bastante tolerante e progressista em muitos aspetos. O Variações morreu poucos meses depois de eu ter nascido, em 84, mas a sua memória sempre esteve presente nas canções que ouvíamos. A primeira que me bateu foi ‘O Corpo é que Paga’, ‘A Canção de Engate’, mas depois descobri toda a sua obra”, diz Luís Clara Gomes, deixando uma ideia consensual: o forte sentido de identidade de António Variações, cujas vivências ficaram célebres na frase “Entre Braga e Nova Iorque”.
“Ele tinha uma identidade profunda, não queria ser uma versão portuguesa de algo estrangeiro. Era ao contrário, nunca deixou de se manter fiel à sua identidade em todos os aspetos. Se tivesse crescido num pais anglosaxónico, seria lembrado como um David Bowie ou um Prince. Pôs sempre essa identidade e vulnerabilidade no núcleo da sua obra, muito atento às modas do presente e do passado. Um tipo dos arredores de Braga a fazer música eletrónica, a juntar um cavaquinho com sintetizadores. Estava muitas décadas à frente.”
“O que acharia o António Variações se a pudesse ouvir?”
Exuberante, criativo, único, António hesitou sempre entre as tesouras e os discos, cujo mercado na altura era praticamente impenetrável, mantendo a segurança de um emprego. Mas nunca deixou nenhuma das atividades: do salão de Isabel Queiroz do Vale à barbearia “Prá Menina e Pró menino”, o Tone do Jaime – como era conhecido em Fiscal, durante a infância – manteve sempre a criatividade musical e uma persistência de herói: é por isso que ainda hoje o podemos escutar em inéditos como este “Guerra Nuclear”, que o coloca no patamar de um músico à prova do tempo.
Se fosse vivo, António Variações teria hoje 78 anos. Luís Clara Gomes, com apenas 38, acusa a responsabilidade de ter tido nas mãos um inédito que produziu com Marisa Liz, durante breves dias em estúdio, e ambos partilharam uma preocupação: serem fiéis à memória do autor. “Senti-me a descobrir ouro quando ouvi a canção pela primeira vez. A música já estava composta e a nossa pergunta era: como soaria, em 2022, uma canção gravada originalmente no início dos anos 80? O que acharia o António Variações se a pudesse ouvir?”
Há outra coisa sobre a qual ambos concordam: a canção é uma mensagem válida para o nosso tempo. “Sou muito novo para ter vivenciado o clima da Guerra Fria, mas leio muito e há uma época que me atrai, aquela ideia do colapso iminente da civilização, com muitos paralelos atuais. O ciclo histórico que estamos a viver, a ameaça climática, os conflitos armados, a sensação de que a qualquer momento alguém carrega no botão vermelho. Foi por isso que esta canção me marcou tanto”, conta o produtor, que tocou os instrumentos todos, à exceção da guitarra, a cargo de Diogo Branco. “Infelizmente, a letra é muito relevante em 2022.”
Uma eterna estrela do vídeo
A trabalharem juntos no primeiro disco a solo de Marisa Liz, “Guerra Nuclear” é o primeiro single do novo registo da cantora, que só deverá ser editado no próximo ano. Espera-se um segundo single ainda este ano. A música conta também com um vídeo que acompanha a estética que reconhecemos em António Variações. Com uma boina preta, vemos Marisa a colar post-its numa parede, enquanto canta “estão-se a despir de toda a humanidade”. Quando a canção explode para um universo mais dançável, a cantora surge com uma farta cabeleira. As botas da tropa deram lugar às lantejoulas.
“Tivemos a sorte do vídeo ter sido gravado pelo João Maia, que realizou o filme ‘Variações’, por isso tudo estava ligado ao António. Uma equipa gigante, em talento, no styling, maquilhagem, em toda a produção”, conta Marisa Liz, acrescentando que o novo disco terá “muitos convidados”, sem revelar nomes. “Ainda estamos em fase de pré-produção e a escolher o repertório. Muitas das canções são composições minhas, por isso tenho estado com artistas portugueses e brasileiros que admiro, de uma forma muito pacífica. ‘Bora fazer uma canção? Se sair, sai, senão vamos beber umas cervejas.”