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Marisa Liz (à esquerda) e Moullinex (à direita) procuraram manter fiel o espírito criativo do autor de "Guerra Nuclear", António Variações (ao centro)
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Marisa Liz (à esquerda) e Moullinex (à direita) procuraram manter fiel o espírito criativo do autor de "Guerra Nuclear", António Variações (ao centro)

Marisa Liz (à esquerda) e Moullinex (à direita) procuraram manter fiel o espírito criativo do autor de "Guerra Nuclear", António Variações (ao centro)

"Guerra Nuclear": como Marisa Liz e Moullinex gravaram um inédito de António Variações

A família de Variações ofereceu o tema que Luís Clara Gomes produziu. Nasce assim o primeiro single da carreira a solo da cantora. Juntos, contam como tudo aconteceu: "Foi como descobrir ouro", dizem.

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Tinha acabado de chegar ao Brasil, ligou os dados móveis e recebeu uma mensagem por whatsapp. O remetente era o irmão de António Variações, Jaime Ribeiro, que juntamente com a família gere o legado do antigo cabeleireiro e cantor. Com apenas dois discos editados em vida, Variações deixou uma famosa caixa de sapatos com cassetes de inéditos, gravados de forma rudimentar em casa. Era aí que estava guardada a primeira maquete de “Guerra Nuclear”, agora tornada pública pela voz de Marisa Liz e com a produção de Moullinex.

“Andava numa enorme ansiedade, sempre a ligar para a minha manager para saber se já tinha havido uma decisão sobre quem ia cantar a música”, conta Marisa Liz ao Observador, numa entrevista pouco antes de entrar em estúdio para gravar o programa “The Voice”. “Isto surge porque os herdeiros do António acharam que estava na altura de divulgarem esta canção e pensaram em vários artistas. Inicialmente, seriam até vários a cantar, e eu estava também dentro desse leque.” Poucos dias antes, a vocalista dos Amor Electro tinha feito uma maquete com a música enviada pela família e foi quando aterrou no Brasil que chegou o veredicto: a decisão foi entregar a canção apenas à sua voz.

[veja aqui o vídeo de “Guerra Nuclear”, através do Youtube:]

“O que senti na altura não posso verbalizar porque inclui vários palavrões… Nunca tinha estado tão nervosa como no dia em que, juntamente com o Moullinex, gravámos o tema com a minha voz para enviar ao irmão do António”, conta. “Era um inédito e foi tudo muito rápido, tinha de enviar para aprovação da família. Quando recebi a mensagem no Brasil desatei a chorar. Chorei porque não acreditava que estava a acontecer. Não apenas por ser do Variações, mas pela canção que é, pela letra, pela mensagem, neste tempo de guerra. Ter a oportunidade de cantar também fez todo o sentido para mim: É o meu primeiro disco a solo, faço quarenta anos, é uma mudança na minha vida.”

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Escrita no princípio dos anos 80 como canção de protesto contra a Guerra Fria — que dividia então a Europa (e o mundo) a partir do Muro de Berlim –, o tema é facilmente transposto para a realidade atual dadas as semelhanças, com a invasão da Ucrânia e o xadrez político mundial. “A loucura está a vencer o juízo, o ódio a amizade. Vou protestar, denunciar”, são algumas das palavras que se escutam aos primeiros acordes, com Marisa Liz a cantar num registo que nos remete de imediato para a forma peculiar como Variações interpretava os seus originais. “As frases contam uma história e deixam-nos um exemplo. Do início ao fim, a canção é fortíssima.”

“Consegui isolar a voz do António e colocá-la na música através de um dispositivo de Inteligência Artificial”, detalha o produtor desta nova versão, Luís Clara Gomes, também conhecido por Moullinex.

Entre o cavaquinho e os sintetizadores, “muitas décadas à frente”

Aos poucos, a melodia vai ganhando força, até à entrada da voz original, captada pelo próprio Variações em sua casa, em Lisboa, com apenas uma guitarra acústica e uma caixa de ritmos. “Consegui isolar a voz do António e colocá-la na música através de um dispositivo de Inteligência Artificial”, conta o produtor desta nova versão, Luís Clara Gomes, também conhecido por Moullinex. “Achei que era uma canção inconfundível do Variações, tanto na melodia como na forma como o usa o português. Nota-se até em pequenos detalhes como no sotaque, porque ele, não sendo de um grande centro urbano, usava a sua pronúncia sem vergonha nenhuma, sem a preocupação de ser visto como um provinciano.”

Se para muitos António Variações foi uma ave rara que espantou Lisboa – nas palavras da sua biógrafa, Manuela Gonzaga –, a verdade é que, sem saber música, foi capaz de escrever dois discos hoje de referência ao longo de uma curta carreira, que durou pouco mais do que cinco anos. A obra desconhecida é vasta, e tem sido revelada em projetos como “Humanos”, que juntou as vozes de David Fonseca, Camané e Manuela Azevedo. A própria Marisa Liz gravou uma versão de “Estou Além”, num dos seus primeiros projetos, intitulado Dona Maria. “Conheço muito bem a sua obra. Cantei a ‘Canção do Engate’, ‘Vou viver’, e ouvi muito”, diz Marisa, que cedo se identificou com o estilo do músico nascido em Fiscal, Amares, no concelho de Braga.

Marisa Liz na gravação do vídeo de "Guerra Nuclear"

“O Variações é uma das minhas maiores referências, identificava-me com ele desde miúda, não só com a música como com a estética e toda a liberdade que ele passava. Teve uma enorme influência em mim, a minha liberdade vem dessa influência. Ele foi um exemplo da ideia que devemos lutar por aquilo que somos, por seguirmos a nossa essência, caso contrário não somos ninguém, estamos só a perder tempo.” O produtor alinha o discurso: natural de Viseu, também ele furou o difícil mercado das editoras com o seu projeto Moullinex, sendo presença habitual em grandes festivais e com uma intensa atividade artística.

“Tive a sorte de ter crescido numa casa em que se ouvia muita música portuguesa, e não só, numa família bastante tolerante e progressista em muitos aspetos. O Variações morreu poucos meses depois de eu ter nascido, em 84, mas a sua memória sempre esteve presente nas canções que ouvíamos. A primeira que me bateu foi ‘O Corpo é que Paga’, ‘A Canção de Engate’, mas depois descobri toda a sua obra”, diz Luís Clara Gomes, deixando uma ideia consensual: o forte sentido de identidade de António Variações, cujas vivências ficaram célebres na frase “Entre Braga e Nova Iorque”.

“Senti-me a descobrir ouro quando ouvi a canção pela primeira vez. A música já estava composta e a nossa pergunta era: como soaria, em 2022, uma canção gravada originalmente no início dos anos 80? O que acharia o António Variações se a pudesse ouvir?”, revela Luís Clara Gomes.

“Ele tinha uma identidade profunda, não queria ser uma versão portuguesa de algo estrangeiro. Era ao contrário, nunca deixou de se manter fiel à sua identidade em todos os aspetos. Se tivesse crescido num pais anglosaxónico, seria lembrado como um David Bowie ou um Prince. Pôs sempre essa identidade e vulnerabilidade no núcleo da sua obra, muito atento às modas do presente e do passado. Um tipo dos arredores de Braga a fazer música eletrónica, a juntar um cavaquinho com sintetizadores. Estava muitas décadas à frente.”

“O que acharia o António Variações se a pudesse ouvir?”

Exuberante, criativo, único, António hesitou sempre entre as tesouras e os discos, cujo mercado na altura era praticamente impenetrável, mantendo a segurança de um emprego. Mas nunca deixou nenhuma das atividades: do salão de Isabel Queiroz do Vale à barbearia “Prá Menina e Pró menino”, o Tone do Jaime – como era conhecido em Fiscal, durante a infância – manteve sempre a criatividade musical e uma persistência de herói: é por isso que ainda hoje o podemos escutar em inéditos como este “Guerra Nuclear”, que o coloca no patamar de um músico à prova do tempo.

Moullinex: "O que estamos a viver, a ameaça climática, os conflitos armados, a sensação de que a qualquer momento alguém carrega no botão vermelho. Foi por isso que esta canção me marcou tanto"

Se fosse vivo, António Variações teria hoje 78 anos. Luís Clara Gomes, com apenas 38, acusa a responsabilidade de ter tido nas mãos um inédito que produziu com Marisa Liz, durante breves dias em estúdio, e ambos partilharam uma preocupação: serem fiéis à memória do autor. “Senti-me a descobrir ouro quando ouvi a canção pela primeira vez. A música já estava composta e a nossa pergunta era: como soaria, em 2022, uma canção gravada originalmente no início dos anos 80? O que acharia o António Variações se a pudesse ouvir?”

Há outra coisa sobre a qual ambos concordam: a canção é uma mensagem válida para o nosso tempo. “Sou muito novo para ter vivenciado o clima da Guerra Fria, mas leio muito e há uma época que me atrai, aquela ideia do colapso iminente da civilização, com muitos paralelos atuais. O ciclo histórico que estamos a viver, a ameaça climática, os conflitos armados, a sensação de que a qualquer momento alguém carrega no botão vermelho. Foi por isso que esta canção me marcou tanto”, conta o produtor, que tocou os instrumentos todos, à exceção da guitarra, a cargo de Diogo Branco. “Infelizmente, a letra é muito relevante em 2022.”

“Tivemos a sorte do vídeo ter sido gravado pelo João Maia, que realizou o filme 'Variações', por isso tudo estava ligado ao António. Uma equipa gigante, em talento, no styling, maquilhagem, em toda a produção”, conta Marisa Liz.

Uma eterna estrela do vídeo

A trabalharem juntos no primeiro disco a solo de Marisa Liz, “Guerra Nuclear” é o primeiro single do novo registo da cantora, que só deverá ser editado no próximo ano. Espera-se um segundo single ainda este ano. A música conta também com um vídeo que acompanha a estética que reconhecemos em António Variações. Com uma boina preta, vemos Marisa a colar post-its numa parede, enquanto canta “estão-se a despir de toda a humanidade”. Quando a canção explode para um universo mais dançável, a cantora surge com uma farta cabeleira. As botas da tropa deram lugar às lantejoulas.

“Tivemos a sorte do vídeo ter sido gravado pelo João Maia, que realizou o filme ‘Variações’, por isso tudo estava ligado ao António. Uma equipa gigante, em talento, no styling, maquilhagem, em toda a produção”, conta Marisa Liz, acrescentando que o novo disco terá “muitos convidados”, sem revelar nomes. “Ainda estamos em fase de pré-produção e a escolher o repertório. Muitas das canções são composições minhas, por isso tenho estado com artistas portugueses e brasileiros que admiro, de uma forma muito pacífica. ‘Bora fazer uma canção? Se sair, sai, senão vamos beber umas cervejas.”

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