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Guilherme Blanc, diretor artístico do Batalha Centro de Cinema: “Vamos competir com o filme visto em casa, no sofá, mas é incomparável"

Fechado desde 2010, o Cinema Batalha reabre sexta-feira após três anos de obras. Em entrevista, o novo diretor artístico fala da captação de público, das opções programáticas e do cinema português.

Começou por estudar economia, formou-se em direito, mas foi na programação e na gestão cultural que se afirmou enquanto profissional, sendo o cinema, do clássico ao mais contemporâneo, uma das suas grandes paixões. Guilherme Blanc recorda um Porto deserto, sem grande oferta cultural, que o obrigava a contar os cêntimos para ir a Paris ver filmes ou a criar cineclube amador na faculdade. “No Porto não tinha qualquer acesso a este tipo de cinema, via alguns na Biblioteca Municipal Almeida Garrett, que tinha uma grande coleção de DVDs e cassetes, depois a internet começou a desenvolver-se e pirateava muita coisa, era a única forma de ver.”

Com 24 anos partiu para a City University London para estudar e ao longo de sete anos colaborou com instituições como o Institute for Contemporary Arts, o French Institute, a Whitechapel Gallery ou o Barbican Centre. Não fazia parte dos seus planos regressar a Portugal, mas um telefonema inesperado de Paulo Cunha e Silva, antigo vereador da cultura da Câmara Municipal do Porto, trocou-lhe as voltas. Em 2013 aceita o convite para ser seu adjunto e sentiu “o abismo” entre a autarquia e o setor cultural. Sem orçamento ou equipa, mas com entusiasmo, desconfiança e muita pressão, criam juntos as principais matrizes do que é hoje o projeto cultural da cidade. “A grande mestria do Paulo foi perceber que o que havia a fazer era injetar energia e uma consciência cultural, ele fez isso através de ferramentas de programação e fez bem. Foi através desses projetos que a coisa escalou, era necessário ligar esta corrente e isso não se fazia através de financiamento, era uma coisa muito mais profunda e de mobilização.”

Cinema Batalha reabre a 9 de dezembro com ciclos temáticos, filmes portugueses e programas para escolas

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Depois da morte de Paulo Cunha e Silva, em 2015, o presidente Rui Moreira assume o pelouro da cultura, Guilherme mantém-se no cargo e revela ter ganho com o autarca uma noção maior de política cultural. Garante que o projeto artístico da cidade cresceu, tem hoje uma relevância nacional e internacional, público conquistado e um grande potencial de crescimento. Foi também diretor do Departamento de Cinema e Arte Contemporânea da empresa municipal Ágora quando recebeu o convite para dirigir o destino do histórico Cinema Batalha, uma das obras mais aguardas no Porto.

Inaugurado em 1947 e projetado pelo arquiteto Artur Andrade, o Batalha foi sala de cinema até 2000, altura em que foi encerrado. Manteve-se fechado até 2006, quando reabriu como espaço cultural pelas mãos da Associação de Comerciantes do Porto (ACP), mas no fim de 2010, a ACP acabaria por entregar as chaves do edifício devido a “prejuízos mensais avultados”. Em 2017, a Câmara Municipal do Porto assumiu por 25 anos a gestão do edifício, classificado como Monumento de Interesse Público, e em dois anos depois arrancaram as obras de reabilitação, comandadas pelos arquitetos Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez. “Pretendemos que se sintam bem no Batalha, se divirtam e se estimulem, mas também consigam fazer aquilo que normalmente fazem à distância ou através de plataformas virtuais. O Batalha quer ser essa plataforma não virtual de encontro, de relação, de conhecimento e de comunidade” (a sessão de abertura do Batalha Centro de Cinema acontece sexta-feira, 9 de dezembro, às 17h30).

Cinema Batalha: a ruína antes da mudança que toda a gente quer ver

Guilherme Blanc confessa que captar público para uma sala de cinema depois de um período pandémico é um dos maiores desafios, defende opções programáticas não elitistas e sem barreiras e não tem dúvidas que de o cinema português está de boa saúde. Não gosta de perspetivar o futuro, continua a gostar mais de ir ao cinema sozinho e não acredita que exemplos como a Casa da Música ou a Fundação de Serralves denigram a imagem cultural da cidade. “São duas instituições muito diferentes”, sublinha.

A empreitada no histórico edifício correspondeu a um investimento da autarquia de cerca de 5,17 milhões de euros e incluiu o trabalho de restauro dos frescos de Júlio Pomar

Igor Martins

Quando começou o seu gosto e atenção pelas artes?
Tive um percurso um pouco estranho, no secundário estudei Economia, depois na faculdade escolhi Direito e acabei em Artes, mas na verdade poderia ter sido tudo ao contrário. Desde muito jovem que a minha aptidão profissional estava muito definida para as artes, mas não propriamente para a prática artística. Quando estava no primeiro ano da faculdade ponderei desistir e entrar em Belas Artes, mas rapidamente percebi que o que queria era programação e gestão cultural e não existia formação nessas áreas em Portugal. Começo a investigar a possibilidade de estudar no estrangeiro e descubro um curso em Londres, ao qual mais tarde me candidatei e acabei por entrar

Mas chegou a terminar Direito?
Tinha uma atividade extracurricular muito intensa, aliás, a coisa que menos fazia era estudar Direito [risos]. Terminei o curso com muito custo porque sabendo o que queria tornava-se muito angustiante estar deslocado do ponto de vista científico. Paralelamente aos estudos, criava os cineclubes universitários, escrevia e programava música.

Como era o Porto culturalmente nessa altura? Que relação tinha com a cidade?
Aos 16 anos começo a interessar-me de forma mais profunda pela cultura, mesmo até a nível de investigação. Não tenho ninguém na minha família ligado às artes, acho que me incentivavam de uma forma serena, mas a educação para a arte não era propriamente uma missão. Criei amizades, ganhei autonomia e comecei a viajar e a conhecer outras culturas graças às companhias low cost, aí descubro interesses próprios, influenciados por várias coisas, incluindo pelo momento político. O Porto estava numa fase de transição profunda com a Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, época que não vivi de uma forma especialmente envolvida ou intensa. Tenho memória que nesses anos a cidade sofreu uma grande transformação, surgiu Serralves e, mais tarde, a Casa da Música. Lembro-me que quando estudava na Faculdade de Direito, a partir das 19h as ruas da baixa ficavam desertas e abandonadas, é precisamente nessa altura que começam a surgir alguns negócios como o Plano B, o Café Au Lait, o Passos Manuel e até os Maus Hábitos. Apanhei essa novidade e vivi-a intensamente, sendo que as viagens que fazia eram muito informadoras para mim porque não se conseguia ver cinema no Porto.

Como surge a sua relação com o cinema?
Através de filmes que me marcaram e me fizeram perceber que o cinema tinha qualquer coisa de especial. Havia um cinema mais acessível e havia outro cinema que comecei a descobrir e que me movia muito, que me ligava a coisas que me interessavam bastante do ponto de vista intelectual. Era um cinema sobretudo clássico europeu, de Chaplin a John Ford, as vagas italianas e francesas e depois nos anos 1990 o Pedro Almodóvar. Eram coisas que estavam muito pouco acessíveis e isso criou-me uma espécie de revolta e angústia, no Porto não tinha qualquer acesso a este tipo de cinema, via alguns filmes na Biblioteca Municipal Almeida Garrett que tinha uma grande coleção de DVDs e cassetes, depois veio a internet e pirateava muita coisa, era a única forma de ver. Passei muito tempo em Paris e vi muito cinema lá, aliás, sempre que tinha dinheiro apanhava um avião, mas depois chegava sem dinheiro nenhum e até com alguma dificuldade em regressar [risos]. Os meus anos de faculdade eram basicamente vividos a contar os cêntimos para ir para Paris, a minha vida era gerida à volta desta ideia.

Era assim que traduzia a sua revolta?
Sim, mais tarde criei um cineclube amador na faculdade para poder ver cinema, tinha imensos adeptos, percebi rapidamente que era um interesse geral e estabeleceu-se uma rede muito forte entre várias faculdades. Escolhíamos os filmes com os associados e ainda tínhamos umas 50 ou 100 pessoas por sessão, era incrível.

Como era feita a seleção de filmes?
Era uma seleção muito indisciplinada e caótica, movida pela vontade de ver cinema. Havia a regra de programarmos filmes que nunca tivéssemos visto e que queríamos muito ver, mas não em casa ou no computador. Basicamente programávamos para nós próprios e nesse sentido era até um pouco egoísta e indulgente. Com o dinheiro das quotas dos associados comprávamos DVDs, o mercado era muito rico, e depois doávamos os filmes à biblioteca da faculdade que depois os cedia para aluguer, acho que muitos deles ainda hoje existem e estão disponíveis.

"Vim ao Porto para o conhecer pessoalmente, passámos um dia juntos e o Paulo Cunha e Silva apresentou-me a toda a gente como seu adjunto ainda antes de eu ter aceite o convite. Ele era assim, malandro."

Com 24 anos vai para Londres estudar. Como foi esse período?
Foi bom, tinha apenas referências culturais de Londres, tinha ido lá duas vezes em turismo, não conhecia nem gostava muito da cidade, mas sentia uma afinidade grande com a cultura britânica, o período pós-punk e algum cinema que fui descobrindo posteriormente e que hoje tem influência na programação do Batalha. Estive lá sete anos, primeiro a estudar e depois a trabalhar, e não fazia parte dos meus planos regressar a Portugal e ao Porto.

Até que em 2013 é convidado por Paulo Cunha e Silva para ser seu adjunto na Câmara Municipal do Porto. Já o conhecia?
Já tinha ouvido falar dele como programador da Porto 2001 – Capital Europeia da Cultura, mas nunca nos tínhamos cruzado. Queria sair de Londres, estava a trabalhar no Barbican Center, onde programava essencialmente cinema português, tinha terminado uma relação e achava que estava na altura certa de ir embora. O Paulo ligou-me e não houve muita conversa. Ele, sempre vaidoso, perguntou-me logo: “Sabe quem eu sou?” Disse-lhe que tinha uma ideia, mas que sabia pouco sobre ele. Simpatizámos um com o outro ao telefone, partilhámos algumas ideias e achei o projeto interessante. No fim pediu-me para vir cá ter com ele para nos conhecermos pessoalmente e vim.

Aceitou logo o convite?
Não, demorei um mês a ponderar e a negociar, no fundo iria mudar de vida. Vim ao Porto para o conhecer pessoalmente, passámos um dia inteiro juntos e o Paulo apresentou-me a toda a gente como seu adjunto ainda antes de eu ter aceitado o convite. Ele era assim, malandro. Lembro-me que quando entrei na câmara a primeira pessoa com quem me cruzo no elevador foi o Rui Moreira.

Quais foram as primeiras dificuldades que sentiu?
Durante os sete anos que estive fora vinha várias vezes ao Porto visitar a minha família e tinha noção do que se passava na cidade, aliás, do que não se passava. No início a equipa era completamente descapitalizada, nem dinheiro tínhamos para trabalhar, não havia orçamento, foi uma coisa completamente conquistada passo a passo e um projeto construído do nada. Eu o Paulo fazíamos tudo, era uma loucura e um excesso de trabalho  muito grande, mas divertimo-nos muito os dois. Foi criação total, programámos o arranque do Rivoli, lançámos o Fórum do Futuro e a Cultura em Expansão, acho que as grandes matrizes do que vemos hoje foram criadas por nós. Havia um abismo enorme entre a autarquia e o setor cultural, sentimos uma grande desconfiança e muita pressão por parte da cidade e do setor, queriam ver resultados. O Paulo já tinha algum capital pessoal, eu trazia o lado de uma geração mais jovem e existia um equilíbrio entre ambas as coisas.

Existiu muito a ideia de que a câmara liderada por Rui Moreira era programadora e controlava de certa forma a pasta da cultura. Sentiu isso? Como se faz política cultural através da programação?
Sim, é criticável, hoje se calhar ainda o é, mas a outro nível. Houve uma automatização saudável de projetos que criaram um sistema de trabalho mais equilibrado, mas naquela altura isso não era possível porque não havia. A grande mestria do Paulo foi perceber que o que havia a fazer era injetar energia e uma consciência cultural, ele fez isso através de ferramentas de programação e fez bem. Foi através desses projetos que a coisa escalou, era necessário ligar esta corrente e isso não se fazia através de financiamento, era uma coisa muito mais profunda e de mobilização.

Em 2015 o Paulo Cunha e Silva desaparece de forma até um pouco abrupta e repentina. O que aprendeu mais com ele?
Aprendi a dominar os projetos que se tornaram os pilares do nosso trabalho, naqueles anos aprendi a manuseá-los muito bem. Aprendi a conseguir movimentar-me dentro de um contexto de trabalho institucional e municipal, ganhei uma consciência de prioridades, um sentimento de missão relativamente ao que estávamos a fazer, fui completamente contagiado por isso. Não foi muito tempo, foram dois anos, mas foram dois anos muito intensos em que criámos muita coisa. Era um projeto sem equipa, fizemos produção, comunicação e programação, foram dois anos violentos e de mangas arregaçadas que me deram uma preparação muito grande.

"Talvez a grande missão cultural de hoje seja tentar que as pessoas se relacionem de alguma forma, criar espaços comuns e construir uma comunidade a partir de uma experiência cultural."

Igor Martins

Rui Moreira assume o pelouro da cultura, cargo que mantém até hoje. Foi opção óbvia?
Sim, foi uma decisão absolutamente necessária. Teria que ser alguém eleito por isso ou seria um vereador com outra pasta qualquer ou era ele. Ele quis assumir essa pasta como prioridade e isso foi muito importante para a cultura, acho que surpreendeu toda a gente e foi amplamente aplaudido. Foi uma solução de emergência, mas muito correta.

Como é trabalharem em conjunto?
Gosto muito de trabalhar com ele, é uma pessoa muitíssimo diferente do Paulo do ponto de vista de consciência cultural. O Rui Moreira tem uma perceção política e uma noção de gestão muito mais apurada, tem uma visão ampla e transversal a todos os pelouros. Ter a pessoa com a tutela máxima política a liderar a pasta na qual eu trabalhava foi um privilégio, havia um campo de possibilidades maior e se cultura sempre foi prioridade para o município, passou a ser ainda mais, houve uma proximidade maior com quem decide. O Rui confia muito nas pessoas com quem trabalha, respeita muito a autonomia dos outros, tem uma inteligência e uma acutilância culturais fora do normal e isso potenciou muito o projeto. Esta noção política ganhei-a com ele, passou a fazer-se mais política cultural e isso é bom.

O projeto político cultural da cidade cresceu nos últimos anos, sente que é devidamente valorizado e reconhecido? Mesmo a nível nacional, tem relevância, é exemplo? Tem o público que merece?
Acho que sim, tem relevância nacional e internacional e muito público conquistado também. Mais do que a continuidade, o maior desafio é a reinvenção, os projetos não podem parar e têm de estar profundamente atualizados. O mundo está em transformação absoluta, mais ainda nos últimos três ou quatro anos, o grande desafio é sempre a permanente atualização e a interpretação do tempo e do meio em que vivemos.

A cidade tem sabido valorizar isso?
Falo das minhas áreas, o cinema e a arte contemporânea, e houve coisas conquistadas muito importantes. O Criatório – concurso anual de apoio à criação e programação artísticas do Porto — foi fundamental, mesmo a nível nacional, e o Shuttle – programa que promove internacionalmente o trabalho de artistas, autores e agentes culturais sediados no Porto – são iniciativas fraturantes. A Galeria Municipal tornou-se um projeto de referência na cidade e no país, conseguiu conquistar um lugar internacional com artistas, curadores e revistas internacionais a baterem-nos à porta, e tem hoje um enorme potencial de crescimento.

"Estamos a propor um cinema desafiante e intenso, desconhecido para muitos? Sim. Isso é uma barreira? Achamos que não."

Como surge a oportunidade para ser diretor artístico do Batalha Centro de Cinema?
Foi um bocado orgânico, já acumulava as áreas do cinema e da arte contemporânea e o convite aparece quando a câmara iniciou o processo de arrendamento do Batalha. Sendo o cinema a minha área de conforto, achei que fazia todo o sentido.

Demorou um mês para aceitar?
Acho que não [risos], mas tive que pensar como é que as coisas poderiam ser bem feitas, era algo que me preocupava.

Que memórias e relação tinha com o edifício?
Tinha algumas memórias enquanto espetador infantil, lembro-me de ver lá filmes da Disney, e depois mais velho o cinema intermitente, era uma relação de desejo, mas não muito aprofundada. O Batalha era uma questão que tinha de ser resolvida na cidade, é um edifício altamente importante e simbólico a nível patrimonial e a nível cultural com uma história enorme. Estava em colapso e de uma forma ou de outra a cidade tinha que o salvar, o Porto precisava há décadas de um projeto de público na área do cinema, havia um entendimento generalizado dentro de todas as forças políticas de que o Batalha teria que servir este propósito.

O que destacaria da programação? Corre risco de ser uma proposta cultural elitista?
O cinema será a nossa espinha dorsal, o que vai acontecer dentro do Batalha será sempre em relação àquilo que o cinema pode propor e estamos a falar de todo o tipo de cinema, aliás, a forma como o projeto foi pensado permite agora uma convivência entre géneros muito diferentes. Queremos que as pessoas consigam entender o cinema do ponto de vista histórico, mas também as suas linguagens mais contemporâneas, percebendo como hoje o cinema se pode relacionar com temas interessantes e relevantes dos nossos dias. Dentro da nossa proposta programática esperamos conseguir criar aquilo que é o designo de uma instituição cultural: espaços para as pessoas se poderem encontrar. Talvez a grande missão cultural de hoje seja tentar que as pessoas se relacionem de alguma forma, criar espaços comuns e construir uma comunidade a partir de uma experiência cultural. Pretendemos que se sintam bem no Batalha, se divirtam e se estimulem, mas também consigam fazer aquilo que normalmente fazem à distância ou através de plataformas virtuais. O Batalha quer ser essa plataforma não virtual de encontro, de relação, de conhecimento e de comunidade.

As bilheteiras do Cinema Batalha já abriram, a média de sessões por semana será de sete filmes e o preço dos bilhetes é de cinco euros

Igor Martins

De que forma ainda hoje se sentem os efeitos e os impactos da pandemia no setor cultural e no cinema em particular?
O cinema foi das artes mais afetadas pela pandemia a nível internacional, talvez tenha sido a mais fragilizada e isso ainda se nota, mas é também a arte mais resiliente. Abrir uma sala nesta altura está completamente alinhado nessa resiliência que o cinema pede. O cinema é uma arte necessária aos nossos dias, há qualquer coisa de fundamental na experiência em sala e as pessoas não se vão libertar disso. É quase arquétipo estar no escuro e ver uma luz que é vida, é uma espécie de nascimento e a magia do cinema é essa, ela sobrepõe-se a nós. Podemos ver cinema em casa, em plataformas streaming ou nos telefones, mas nunca será assim. Há muitos lugares do cinema, há o cinema que é feito para ser visto em sala e o cinema que é feito para ver na televisão, mas a sala vai ganhar sempre, é uma experiência coletiva e a nossa essência é coletiva. O cinema tem uma essência tecnológica, é a arte dos nossos dias, é imagem em movimento, mas agora cabe-nos a nós reinventá-la e interpretar que pode e deve ser uma instituição cultural dedicada cinema. Seria sempre muito redutor exibirmos filmes de uma forma acrítica e fechada numa espécie de formalidade, temos de compreender aquilo que hoje o cinema permite e pede, com o que se relaciona, de que fala, que ideias aborda ou quem o está a fazer. O cinema do passado deve ser relido? Com que olhos o devemos fazer? O que podemos aprender com ele? Tudo isto estará espelhado na programação do Batalha.

A captação de público será o maior desafio?
É um dos desafios, se dissesse que não, estaria a mentir.

Depois da pandemia, o público passou a ser outro ou a querer coisas diferentes?
O público mudou, criaram-se hábitos mais sedentários e solitários, hoje as pessoas preferem ver cinema em casa, sejam elas mais ou menos jovens. O que deve hoje ser e fazer uma instituição cultural na área do cinema? É este questionamento que queremos provocar com programas de descobertas, releituras, encontros, cursos, workshops e opções vocacionadas para a escolas e para as famílias. Ao mostrarmos um cinema que não é tão conhecido não estamos necessariamente a criar barreiras, elas são criadas de outra forma, aliás, também vamos mostrar cinema comercial, esta é uma das coisas que temos de desmistificar, apenas não vamos apresentar em estreia. Estamos a propor um cinema desafiante e intenso, desconhecido para muitos? Sim. Isso é uma barreira? Achamos que não. A verdadeira potência do cinema é o escapismo, seja que tipo de filme for, e esse valor está desligado em casa, mas aqui está no máximo, ou seja, temos um poder sobre isso e é muito poderoso o que queremos fazer. Vamos competir com o filme em casa, visto no sofá com uma manta, mas do ponto de vista experiencial não tem comparação nenhuma, é uma magnitude incomparável.

Como programador e espectador, como vê hoje o cinema português?
Olho de uma forma muito entusiasmada, agrada-me muito, é a arte mais pujante em Portugal neste momento. É a arte mais reconhecida a nível internacional, pensando nas artes plásticas ou nas artes performativas, o cinema é a arte que nos internacionaliza mais, com mais circulação e com maior visibilidade.

Há alguma explicação para isso acontecer?
Nem sempre foi assim, acho que é uma questão geracional, tem que ver com ferramentas financeiras, com acessos e com educação superior. Ainda há muitos rótulos associados ao cinema português, estamos é a passar por uma fase especialmente entusiasmante, não sei se hoje se pode falar numa tendência. O cinema português foi completamente amplificado do ponto de vista da sua prática, há uma diversidade maior, maior quantidade e maior qualidade, basta ver a presença de realizadores e realizadoras portuguesas em festivais internacionais, é impressionante. Em Portugal, por uma questão de meios e de recursos, o nosso cinema tem uma escala muito própria e somos muito bons dentro dessa escala, não temos outra porque não há recursos financeiros. Se pensar no futuro, não acho que seja uma realidade em declínio, antes pelo contrário.

"[Casa da Música e Serralves] não denigrem a imagem cultura do Porto, cada instituição é uma instituição e não faz sentido juntá-las, são duas instituições muito diferentes."

Que autonomia pode ter o município do Porto a trabalhar a arte e a cultura face àquilo que é feito pelo governo e pelo próprio Ministério da Cultura?
Autonomia total. Felizmente o Porto tem recursos e meios para conseguir levar a cabo, como está a acontecer, o que é necessário e com apoios. No cinema temos tido o apoio importante da Cinemateca Portuguesa, a articulação com eles é muito forte e interessa-nos muito o cinema português. Teremos programa regulares, intensos e muito dedicados aos clássicos e à fase mais contemporânea, vamos mostrar novo cinema, novos nomes, novas pessoas e novas linguagens e em paralelo a história do cinema e as retrospetivas. Teremos um programa chamado Seleção Nacional, sempre às quartas-feiras, onde convidámos dois curadores, o Paulo Cunha e o Daniel Ribas, para especular sobre o cinema português através de constelações temáticas. Respondendo à questão, a autonomia dos municípios em relação ao Governo tem que ser a maior possível, o caminho é esse, claro que dentro desta autonomia estamos sempre na dependência de muita coisa, nomeadamente a nível financeiro e de mercado. Não podemos inventar e mostrar filmes que não estão disponíveis, estamos sempre limitados às regras do mercado e aos parceiros que temos.

Como tem avaliado o trabalho do atual ministro da cultura, Pedro Adão e Silva?
Ainda é cedo para avaliar. Acho que tem dado sinais muito promissores, prevê-se uma musculação significativa do Orçamento do Estado para a cultura e o resto é caminho a fazer. Existem outras coisas que são prioritárias, a dimensão orçamental é importante, mas também deve haver uma preparação técnica dos interlocutores, de quem analisa, planeia e pensa a cultura em Portugal. Têm que existir equipas preparadas tecnicamente, pois é a partir daí que se pode evoluir e dar passos verdadeiramente significativos do ponto de vista de crescimento cultural, construindo políticas sustentáveis e saudáveis para o setor.

Notícias como as que têm surgido sobre a Casa da Música ou Serralves, têm algum impacto na imagem cultural da cidade?
Não falo sobre outras instituições culturais.

Não tem uma opinião sobre elas?
Tenho, claro, mas não a dou. Acho que não é o meu papel, não sou comentador cultural ou político. São duas grandes instituições da cidade, mas não me cabe avaliar o trabalho de colegas. Respondendo diretamente à pergunta, não denigrem a imagem cultural do Porto, cada instituição é uma instituição e não faz sentido juntá-las.

Porquê?
Se calhar não têm problemas comuns, o que têm são particularidades institucionais e organizacionais de gestão e artísticas muito diferentes. São duas instituições muito diferentes.

Este é um cargo a prazo. O que imagina fazer a partir de 2025?
As pessoas que trabalham nesta área têm de estar preparadas para mandatos efémeros, caso contrário estão no lugar errado. Relativamente ao futuro, não consigo perspetivar, esta experiência será importante no meu percurso e acho que a partir daqui há coisas pelas quais me posso interessar ou desinteressar. Posso querer continuar a trabalhar em cinema ou não, posso querer continuar a trabalhar no setor público ou não, acho que é uma decisão que vou tomar depois deste período. Neste momento estou 100% focado neste projeto e não estou a perder um segundo sequer a pensar no que irei fazer a seguir.

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