Esqueça a imagem de caixas de cartão a fazer a vez de cobertores e o estereótipo dos pacotes de vinho vazios ao lado de um corpo adormecido. Aqui há “camas” com várias mantas, almofadas bordadas, cestos cheios de medicamentos e produtos de higiene. E, ainda, frascos de perfume e roupões de quarto.
Estamos no túnel da Gare do Oriente, mesmo por baixo da zona de paragem dos autocarros, que dá acesso à estação de comboios. É neste sítio que dormem famílias inteiras, crianças e adolescentes com os pais, cães deitados junto aos pés dos donos e um coelho numa transportadora cor-de-rosa. A maioria é portuguesa, mas também há marroquinos, paquistaneses e argelinos, que nada falam de português e pouco sabem de inglês, e que imigraram para trabalhar nas obras, na agricultura ou como estafetas.
O Inquérito de Caracterização das Pessoas em Situação de Sem-Abrigo sinalizou, em 2022, 10.773 pessoas sem casa. Dados que revelam um aumento expressivo de 78% no espaço de quatro anos, e de 19% face a 2021. O mesmo inquérito diz que, entre as pessoas sem teto, 13% têm naturalidade desconhecida. A maior parte das restantes tem naturalidade portuguesa. Uma realidade que aqui também se confirma. Quem percorre os 545 metros do túnel confirma que são os portugueses que ocupam a maior parte do espaço.
Além das crianças e dos adolescentes, entre os mais novos está Soraia, de 21 anos, que partilha o espaço com Lucas, de 29. Ela veio do Porto para conhecer o pai, ele veio do Brasil para “fugir dos traumas” e começar uma nova vida. As coisas não correram bem para nenhum deles: ela zangou-se com o pai e foi parar à rua; ele foi enganado por um suposto senhorio que lhe ficou com um mês de renda para uma casa que, afinal, não existia. Conheceram-se ali mesmo, há três meses, e tornaram-se amigos. “Não dá para confiar em ninguém, mas nós estávamos os dois aqui há pouco tempo e demo-nos logo bem”, explica o jovem.
Lucas é técnico de geriatria e, em São Paulo, trabalhou numa casa de repouso, mas, desde que aqui chegou, já teve dois empregos que duraram pouco tempo e nenhum na área dele. Agora está desempregado e diz que já foi entrevistado para vários trabalhos, mas, quando sabem que é sem-abrigo, não o querem contratar. “É o estereótipo. Acham que quem está na rua é um drogado. Sou uma pessoa normal. Só que isso é indiferente para eles.”
E o que é que fazem, durante um dia inteiro, dois jovens, desempregados e sozinhos, a morar na rua? “Praticamente nada. Não dá para sair muito daqui, porque temos medo de deixar as nossas coisas e ser roubados.” Às vezes, Lucas sai à procura de emprego. Outras vezes, vão a casa de pessoas que foram conhecendo para “tomar um banho como deve ser”.
Há um entusiasmo na voz de Soraia que não se nota na de Lucas. Uma diferença que só se percebe quando falam das expectativas que têm para o futuro. “A sério, parece que foi Deus. A minha mãe arranjou um trabalho aqui em Lisboa e vou viver com ela”, conta a jovem. E depois? “Primeiro, quero arranjar um trabalhinho e ir para a faculdade estudar enfermagem, como a minha mãe. Só quero estabilidade.”
Ao seu lado, Lucas faz uma pausa antes de responder à mesma pergunta: “Já nem crio esperanças. A minha única expectativa é mesmo sobreviver.”
“Isto aqui são como pequenas ilhas, cada um tem a sua”
No meio de uma manhã calma de final de dezembro, depois do caos da hora de ponta, uns já não levantam a cabeça a quem passa, outros olham para a equipa do Observador com um ar cético e desconfiado. Só Vitória, portuguesa, é que sorri. Quer falar e tem muito para dizer, mas conta uma história com tantas voltas que é difícil perceber o que é real ou não. Certo é que há um neto adolescente (tem uma foto dele guardada na carteira, que tira, prontamente, para mostrar), que já a foi visitar, sozinho, e dois filhos com quem não tem uma boa relação.
Vitória diz que recebe 900 euros por mês e não há como evitar a questão que surge de imediato. Porque é que está na rua, se o valor da sua reforma é superior à média? Explica que foi atropelada há uns anos e que o condutor fugiu. Por isso, tem um processo em tribunal ainda a decorrer. As despesas com a advogada e outras dívidas levam-lhe grande parte do dinheiro que recebe. Desse acidente ficou ainda uma perna direita que mal mexe e um sem fim de complicações psicológicas.
No caderno vermelho onde aponta tudo, lado a lado com o registo das dívidas, às vezes estão escritos poemas. Conta que é o que faz para passar o tempo e para despejar as frustrações, já que não há ninguém com quem as partilhar.
Não tem, ainda, qualquer indicação de que vá sair dali em breve, mas tem a certeza de que vai acontecer. “Sabe aquele filme, o Clube dos Poetas Mortos? Isto é como aquela cena do filme, só mais uma página da minha vida que vou arrancar.”
Uns metros ao lado está um homem vestido com um pijama vermelho e uns chinelos de quarto, cuidadosamente colocados lado a lado no chão. Sorri. A conversa com ele é um jogo de palavras: perguntamos se podemos falar, diz que já estamos; perguntamos se está na rua há muito tempo e ele pergunta de volta “o que é que lhe parece?”.
Não quer dizer o nome, nem o que fazia antes, mas revela que tem 71 anos e está reformado. Vivia numa casa, mas os senhorios, emigrantes, decidiram voltar para Portugal “de um dia para o outro” e foi posto na rua. Agora não consegue encontrar um sítio que possa pagar. Vive ali, no meio de todas aquelas pessoas, mas garante que não tem medo: “Inseguro? Eu estive na guerra, isto aqui não é nada.”
António, que não quis ser entrevistado, explica que, ali, é como se vivessem “em pequenas ilhas, cada um tem a sua”. A de José fica mais à frente. Com 60 anos, ainda não está reformado, mas também não tem emprego. Foi casado durante mais de 30, tem uma filha e trabalhou como segurança durante décadas, até que o vício o atirou para fora da casa onde vivia, nas Olaias. “Um dia, a minha mulher cansou-se e mandou-me embora.”
A sua “ilha” é das que mais impressiona: há dois pares de sapatos no chão, um cesto com comida e uma caixa com medicação, produtos de higiene e a dentadura. Ali no meio, há também um frasco de perfume, que põe generosamente no pescoço. Restos de uma rotina que se assemelha a qualquer coisa de normalidade. No horizonte, a perspetiva de ter um quarto só seu em breve. “Tenho uma assistente social que me diz que devo conseguir sair daqui lá para meio de janeiro, mas não sei… Atrasa-se sempre tudo.”
É assim todas as noites
Já é início de janeiro quando regressamos à Gare. Ao final da tarde, início da noite, começa uma espécie de dança bem coreografada. Quem por ali passa a caminho de casa, entre comboios e autocarros, confunde-se com os que têm naquele espaço o seu único teto. Os primeiros param em cafés para um lanche rápido, os outros esperam pelas associações que vão distribuir comida; os agentes da PSP e os seguranças da Gare do Oriente fazem rondas intermináveis pelos corredores da estação; lá ao fundo ouvem-se gritos de alguém a discutir. Quem ali dorme diz que é assim todas as noites.
Quase no final do corredor, transformado em dormitório, está Sara, agarrada a uma pilha generosa de papéis que trouxe consigo do Uruguai. São dezenas de documentos de um arquivo pessoal que mostram quem é, de onde vem e o que fez: cópia da identificação, certificado de conclusão do ensino secundário, registos dos lugares onde já trabalhou. Com 63 anos, está a viver na Gare do Oriente há seis meses. Antes disso, uma cronologia confusa, contada em episódios soltos.
Mostra papéis que comprovam que trabalhou no departamento de contabilidade da Dirección General de Subsistencia — um departamento do Ministério de Desenvolvimento Social do Uruguai. No final dos anos 90, apanhou um autocarro para o Brasil e, daí, seguiu para Sevilha, onde ficou até 2004 a trabalhar como empregada doméstica. “Fui embora por razões alheias à minha vontade”, afirma — e mais não diz. Voltou para o Uruguai e só voltou a sair em 2022, em direção a Ceuta, com 2 mil dólares na conta. Está em Portugal desde julho, mas não explica porque veio.
Pelas 20h30, na parte de trás da estação, uma pequena multidão começa a juntar-se à espera da distribuição de refeições. Lá em cima, junto à zona das bilheteiras, umas 30 pessoas esperam o mesmo.
Quando o relógio marca as 21h, aproximam-se duas carrinhas e todos se agrupam em duas longas filas, perfeitamente organizadas, à espera do jantar. Lá no meio, há uma mulher que leva a filha pequena pela mão, um casal muito jovem e um homem que conversa com os voluntários com o à-vontade de quem já os conhece, e que se despede com um “até amanhã”. Alguns levam um saco e pedem mais uma ou duas refeições para levar para a família, mas até estas ajudas extra são agora mais limitadas. É que se o número de pessoas a precisar de apoio para se alimentar tem aumentado significativamente — só naquele ponto são distribuídas quase 100 refeições —, os apoios às associações nem por isso, explica Rodrigo Machado, voluntário da Comunidade Vida e Paz.
Depois do jantar, a multidão dispersa-se. Uns seguem para casa, outros para os bancos de pedra da estação e, por esta altura, o interior do túnel está novamente cheio. Esta noite, a temperatura em Lisboa desceu abaixo dos 10ºC.