O treino está prestes a começar. O preparador físico apita e à sua volta nasce uma meia-lua onde se encontram cerca de duas dezenas de árbitros. Espalhados pelo relvado sintético estão os cones que formam o circuito para o exercício que se realiza depois de alguns minutos corrida em torno do campo. A única diferença para o treino de uma equipa de futebol e este em Odivelas é que não há bolas.
Artur Soares Dias, um dos mais experientes árbitros portugueses, escapa-se ao aquecimento para falar com um grupo de jornalistas que o espera. Enquanto se preparam câmaras e se ligam microfones, o juiz da Associação de Futebol do Porto é que faz a primeira pergunta. “Bom dia! Tudo bem com vocês?”. Recebe as respostas dos jornalistas menos atafulhados com o equipamento. “Comigo também. Obrigado por perguntarem!”, ironiza animadamente devido à retribuição modesta que teve. “Não preciso, obrigado! Já tenho um”, diz à primeira pessoa que lhe aponta um telemóvel para gravar as respostas que se prepara para dar. Os risos que conseguiu obter com a primeira piada duplicaram na segunda. Num treino de árbitros também há espaço para galhofa.
Pode parecer que os árbitros vivem numa bolha, que não ouvem o que se diz sobre os erros que cometem e o que não se diz sobre as decisões que acertam. Pode parecer que são imunes às agressões que se repetem principalmente nos escalões inferiores. Ao contrário do que se pensa, não vivem numa bolha. “A sociedade não está pronta para nos ouvir na maior parte das vezes”, nota Artur Soares Dias, com base nos 30 anos de carreira ligados à arbitragem depois do legado deixado pelo pai. “Devíamos expor mais as nossas opiniões para mostrar às pessoas que somos carne, pele e osso”, reconhecendo que a falha faz parte do dia a dia. “Quando chegamos a casa, muitas vezes sentimos isso. ‘Meti água…’“.
Terminado o aquecimento, começa um exercício que combina a capacidade de resistência física com a tomada de decisão. Nesta altura, liga-se uma coluna que chegou ao campo a bordo de um carro de compras de propósito para projetar o som ambiente de um estádio para o sintético junto ao Centro de Treinos do Sindicato dos Jogadores, colado ao Pavilhão Multiusos de Odivelas. Esse barulho é a única coisa que transporta as pessoas presentes naquele campo, sem mais nenhuma cadeira à volta a não ser as dos bancos de suplentes, para um estádio com milhares de pessoas.
Quando começa o exercício, em grupos de três, os árbitros ziguezagueiam os cones. O destino final do percurso é uma tenda onde estão dois monitores a passar em loop lances duvidosos em relação aos quais os árbitros, a quente, se têm que pronunciar. A registar as respostas está Hugo Miguel, também ele uma cara conhecida do futebol português. O desejável é que, mesmo depois de uma longa corrida, os juízes possam ser o mais perentórios possível a pronunciarem um veredicto. Só depois é que têm tempo para tentarem normalizar a respiração e recomeçarem o percurso em corrida. Algumas das jogadas que são ajuizadas durante o exercício de simulação foram decididas por aqueles mesmos árbitros no tribunal que é o jogo. Há lances factuais e há lances de interpretação. Aqueles onde a zona cinzenta é maior suscitam um debate que se prolonga além do visionamento das imagens.
Um treino de árbitros é um espaço democrático, aberto à discussão – quando é possível que ela exista –, onde não há a autoridade de um treinador com direito à palavra final. Não se ignoram as falhas e trabalha-se sobre elas. “Temos que viver com o erro, o erro mexe connosco. Nós não queremos errar, isso tem bastante impacto em nós”, admite a árbitra Ana Afonso. Para se chegar ao jogo e mitigar incorreções, existe uma rotina semanal.
Catarina Campos, árbitra internacional, descreve como são organizados os seus dias. “Hoje temos a facilidade de termos connosco pessoas muito competentes a trabalhar – preparadores físicos e técnicos de arbitragem – que nos permitem fazer essa gestão de uma forma mais concisa e com maior assertividade”, descreve. “Numa semana normal, se o jogo for ao fim de semana, temos três treinos semanais. O treino de segunda-feira é de recuperação ativa. Depois, na terça-feira, normalmente, não temos. À quarta-feira, temos o treino de alta intensidade. À quinta-feira, temos sprints com preparação de jogo para o fim de semana seguinte. Existe um trabalho que é feito. Os árbitros treinam e trabalham muito”.
O árbitro Cláudio Pereira, além do trabalho físico e técnico, acrescenta outro aspeto: a observação. “Começo o estudo das equipas quando recebemos a nomeação. Eu acompanho os jogos quase todos, portanto, tenho as minhas notas, tenho os meus apontamentos, até de cabeça já conheço os jogadores. Temos que analisar o momento daquela equipa, os jogadores que vão jogar, prepararmo-nos para eventuais cenários”.
Estar num meio em que a decisão é tão escrutinada não desvaloriza o apreço que Nuno Almeida tem pela atividade. “A pressão dá-me entusiasmo, dá-me vontade. Sempre foi assim. É isso que me motiva a ainda hoje estar aqui. Estou com tanta ou mais alegria hoje com 48 anos do que quando estava com 25. Quantos mais adeptos, mais ruído, mais o estádio estiver cheio, mais prazer tem o árbitro. O árbitro, nesse aspeto, não foge muito a um treinador ou a um jogador de futebol. Quem é que não gosta de estar num estádio cheio, lotado, com barulho, assobios, gritos e televisões?”.
Nuno Almeida é um dos mais velhos árbitros portugueses. Há poucos a seguirem-lhe as pisadas. Neste momento, segundo o presidente do Conselho de Arbitragem da Federação Portuguesa de Futebol, José Fontelas Gomes, existem cerca de 4.800 árbitros no ativo dos 5.800 inscritos, menos 1.000 do que seria necessário para fazer face às competições que se realizam de norte a sul do país. Nesse sentido, a FPF lançou uma campanha para recrutamento que surge em consonância com uma tendência também verificada pela UEFA em relação à escassez de ativos nesta área. “A arbitragem é muito bonita. É o transporte da justiça para dentro do campo de futebol. O árbitro acaba por adorar aquilo que faz”, conta Nuno Almeida. “Os jovens árbitros rapidamente se vão aperceber que este é um mundo apaixonante e que não é nada do que se diz quando se fala de forma negativa”.
No âmbito da ação, a FPF abriu as portas do treino dos árbitros a um grupo de jovens do Mestrado em Futebol da Faculdade de Motricidade Humana da Universidade de Lisboa. Apesar da consideração pela arbitragem, são a voz de uma geração que não se imagina a ter uma carreira na atividade, preferindo, mesmo dentro do mundo do futebol, seguir outras áreas. “Estou totalmente esclarecido na minha decisão de ser treinador de futebol”, confessa Pedro Gonçalves durante a experiência. “Há um respeito pela profissão dos árbitros”.
O aluno de 28 anos fala com o Observador numa das nove salas de videoarbitragem da Cidade do Futebol. Em dia de jogos da Primeira Liga, da Segunda Liga e da Liga Feminina, as quatro cadeiras que equipam cada um dos espaços são preenchidas pelo VAR, pelo Assistente do VAR e por dois técnicos, um para colocar as linhas de fora de jogo e outro para mostrar as melhores repetições para a avaliação dos lances críticos. Os cubículos envidraçados formam uma redoma que cria um ambiente distinto do que se vive no estádio. Inclusivamente, o VAR tem a opção de eliminar o som ambiente dos auscultadores, limitando-se a ouvir as comunicações entre os membros da equipa de arbitragem no campo.
Pedro recebe esclarecimentos de Carlos Macedo. O árbitro explica ao visitante para que servem todos os ecrãs que tem diante de si. O juiz natural de Barcelos indica que o VAR está sempre atento ao plano aberto do jogo até que solicite ao técnico as repetições necessárias para analisar um lance de golo, cartão vermelho direto, penálti ou atribuição incorreta de um cartão amarelo. A pergunta que o VAR deve fazer a si mesmo antes de dizer ao árbitro no relvado que reverta uma decisão é, de acordo com a explicação, “Davas a tua casa ou o teu carro por esta decisão?”. O Assistente do VAR, por seu lado, foca-se nas imagens da transmissão televisiva. Ou seja, muitas vezes, vê repetições imediatamente após uma jogada, dando indicação ao VAR para a observação de uma jogada passível de ser analisada. “Sentimos as indecisões e a velocidade a que têm que ser tomadas em condições de pressão”, admite Pedro Gonçalves ao simular o processo com os lances que tem a passar diante de si em diferido.
André Baptista conheceu “a modalidade de outra perspetiva” nesse mesmo dia. “Cabe aos intervenientes no futebol perceberem que se perderem o jogo não é só culpa do árbitro. De certeza que o avançado também falhou golos, de certeza que o guarda-redes também teve uma má abordagem. Não vale a pena apontar o dedo ao árbitro quando, às vezes, também temos que olhar para nós e culpabilizarmo-nos antes de culpabilizarmos o outro”, analisa o aluno. “Se houvesse uma comunicação aberta, o próprio adepto compreenderia melhor muitas das decisões que são tomadas pela equipa da arbitragem”.
Apesar das gerações mais novas não estarem propriamente conquistadas pela ideia de uma carreira nesta atividade, começam a existir rostos do processo de renovação em curso na arbitragem. Cláudio Pereira é um deles. “Joguei futebol e aos 20 anos estava na 3.ª Divisão. Percebi que a minha carreira não ia passar muito dali e então resolvi experimentar [a arbitragem] as sensações que o futebol me trazia enquanto jogador. Consigo tê-las como árbitro. Consigo ter o campo, consigo ter o balneário, consigo ter a minha equipa, consigo ter as decisões importantes. O que sentia quando marcava um golo, agora sinto quando tenho uma decisão crucial e acerto. Quando não acerto é o que sentia quando falhava um golo de baliza aberta”, conta o juiz de 36 anos da Associação de Futebol de Aveiro. Cláudio Pereira constata que “há poucos meios que nos digam como é a arbitragem” o que dificulta o recrutamento.
José Fontelas Gomes culpa o “ambiente que se vai vivendo” como um dos motivos para a falta de árbitros. “Temos que mostrar o bom da arbitragem e não andarmos atrás do mal”, referiu o Presidente do Conselho de Arbitragem da FPF. “Os árbitros estão a trabalhar, estão a fazer tudo aquilo que podem dentro do que é a sua área de trabalho. A verdade é que temos melhorado”, continuou olhando para um eventual crescimento do número de árbitros como fator para um aumento da qualidade dos mesmos.
“A retenção é claramente um problema”, analisa Artur Soares Dias que, além de árbitro, tem experiência na gestão de recursos humanos. “Fim de semana após fim de semana, há árbitros a serem agredidos. Não faz sentido algum. Os pais que agridem esses miúdos de 16 ou 17 anos, lembrem-se que os filhos deles, que estão ao lado, também têm 16 ou 17 anos. O que é que imaginavam esses mesmos pais se fossem os filhos deles a serem agredidos? Não faz sentido algum”.
Quem conhece por dentro a realidade da atividade diz existirem mais pontos positivos do que negativos. Nuno Almeida aponta a “longevidade” da carreira e Cláudio Pereira “a sensação de estar num campo de futebol com estrelas de infância que todos gostamos” como vantagens de se estar na arbitragem. “Há experiências que vivi, países que visitei que sem a arbitragem não teria ido lá. Todas aquelas experiências que tenho vivido na arbitragem, considero únicas. Conhecer tanta gente como conheci, amigos que levo para vida”, diz Ana Afonso. Já Catarina Campos não esquece: “Também é possível ouvir o hino da Liga dos Campeões através da arbitragem”.