Quem percorre a A6 em direção a Évora nem imagina que, escondidos entre a paisagem, existem centenas de monumentos pré-históricos — antas, menires e cromeleques, vestígios que fazem da região uma das mais importantes do país em termos arqueológicos. Alguns vão sendo anunciados pelo caminho, em placas mais ou menos visíveis, mas a maioria caiu no esquecimento, coberta de ervas daninhas. Sem indicações ou GPS que nos valha, encontrar as antas e menires eborenses é, em muitos casos, uma tarefa quase impossível. Digna de um verdadeiro Sherlock Holmes.
Além dos recintos megalíticos — de entre os quais se destaca o famoso Cromeleque dos Almendres (mais antigo até que Stonehenge) — existem centenas de antas (ou dólmenes), conhecidas, pelo menos, desde a Idade Média. Uma delas é a mais alta da Península Ibéria, com cerca de oito metros de altura. Há menires solitários e a Gruta do Escoural, onde estão os únicos vestígios de arte rupestre do Paleolítico Superior em Portugal.
A importância dos vestígios pré-históricos de Évora é inegável, mas o número de visitantes não lhes faz justiça (apesar de a autarquia garantir que o número de visitantes aos principais monumentos tem vindo a aumentar). O grande problema é que muitos deles estão no interior de grandes propriedades privadas onde, durante todo o dia, pastam pachorrentas vacas castanhas. E, como é óbvio, muitos proprietários preferem manter as portas fechadas aos visitantes. Quem conhece bem a região, acredita que a situação dificilmente será alterada. Os monumentos megalíticos de Évora continuarão a ser um segredo bem guardado.
Cientes disso, fizemo-nos à estrada, sem mapa ou guia que nos ajudasse. E foi com alguma dificuldade que conseguimos dar com alguns dos monumentos que os sites de turismo publicitam. Junto deles, a única coisa que encontrámos foi um silêncio quase total, apenas interrompido pelo som do vento a bater nas árvores. Só um casal de britânicos, emocionado, parecia determinado em descobrir as antas e menires da região.
Cromeleque dos Almendres, o “Stonehenge” português
“É lindíssimo!”
O grito, em jeito de apresentação, chegou-nos da estrada que liga o parque de estacionamento ao Recinto Megalítico dos Almendres. Um casal de britânicos, que tinha acabado de visitar o famoso cromeleque, caminhava apressado na nossa direção. O homem esbracejava enquanto nos explicava, entusiasmado, que tinha acabado de ver o local onde tinha “nascido a civilização”. “Fiquei emocionado! Pedi outra vez a minha mulher em casamento!”, confessou. Ao lado, a mulher enxugava uma lágrima por baixo dos óculos de sol. Perguntámos-lhe se estava a chorar de emoção. “Não, acordei com os olhos lacrimejantes não sei porquê”, disse simplesmente, destruindo a hipótese de uma boa história.
A conversa foi curta, sem tempo para apresentações. O frio fazia-se sentir, e os dois apressaram-se a entrar dentro do carro de matrícula portuguesa. Estavam quatro graus em Montemor-o-Novo.
Seguimos em direção ao cromeleque, muitas vezes apelidado de “Stonehenge português”. E com alguma razão. Apesar da fama do monumento britânico, o Cromeleque dos Almendres é bem mais antigo — Stonehenge foi construído há cerca de cinco mil anos, o monumento português há sete mil. Além disso, o Cromeleque dos Almendres é o maior recinto megalítico da Península Ibérica, estimando-se que tenha sido erigido algures entre o sexto e quinto milénios a.C., numa altura em que “nasceram” muitas das antas e menires que ainda hoje preenchem a paisagem alentejana.
Composto por cerca de 100 menires, foi “descoberto” há mais de quatro décadas pelo historiador Henrique Leonor Pina, responsável pela identificação de vários monumentos megalíticos da região. Em alguns dos monólitos é ainda possível ver vestígios de algumas gravuras rupestres, já meio apagadas pela erosão — círculos, figuras em forma de serpente, “covinhas” e até báculos –, que são muito semelhantes às que podem ser encontradas em outros menires da região (como é o caso do Menir dos Almendres). Escavações recentes detetaram várias fases de construção do Cromeleque dos Almendres, que refletem as mudanças económicas, sociais e ideológica dos povos da região.
Ao contrário de outros recintos, chegar ao dos Almendres não é nenhum bicho de sete cabeças. É fácil de encontrar a partir da aldeia de Nossa Senhora de Guadalupe, a cerca de 14 quilómetros de Évora (além do mais, aparece no Google Maps). Há um pequeno parque de estacionamento a cerca de 200 metros do local e, como a zona é pouco movimentada (sobretudo nos meses de inverno), lugares é coisa que não falta. Quando por lá passámos, o silêncio era quase total. Só era interrompido pelo som de uma retroescavadora que, não muito longe dali, empilhava molhos de cortiça numa carrinha de caixa aberta.
A pouco mais de um quilómetro de distância, no final de um longo caminho rodeado de silvas, fica o Menir dos Almendres. Os dois monumentos estão intimamente ligados — o alinhamento de ambos coincide com o nascer do sol no Solstício de Verão (o maior dia do ano). Como o menir fica numa propriedade privada (como a maioria dos monumentos megalíticos de Évora), o percurso até lá está todo vedado. Até o próprio menir se encontra rodeado por um círculo de estacas de madeira e arame.
Encontrar uma agulha num palheiro
O Recinto Megalítico dos Almendres encontra-se bem sinalizado a partir da auto-estrada. Antes de chegar a Montemor-o-Novo, começam a surgir placas castanhas a indicar que o monumento está próximo. O problema é quando se tenta fugir deste itinerário e explorar a região — a caça à anta transforma-se numa espécie de caça ao tesouro. As informações disponíveis na Internet são poucas para quem não conhece bem a região e muitos dos monumentos não estão sinalizados ou, se o estão, as placas são tão pequenas que só alguém com olhos de falcão é que as consegue ver. É o caso do recinto megalítico de Vale Maria do Meio, a caminho de Arraiolos.
A cerca de 15 quilómetros de Évora, junto ao cruzamento da Valeira, existe uma pequena placa preta que diz simplesmente “Vale Maria do Meio”. A partir daí, é preciso seguir por uma estrada de terra batida que se prolonga pela propriedade com o mesmo nome e que passa junto ao cromeleque, um dos mais importantes da região. Este foi identificado na primavera de 1993 por uma equipa da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, orientada pelo arqueólogo Manuel Calado. É composto por cerca de três dezenas de menires, que formam uma espécie de ferradura, e encontra-se alinhado com os astros. Uma parte significativa dos menires, que se encontravam caídos, foram erigidos novamente depois dos trabalhos levados a cabo pela equipa do professor de Arqueologia.
Apesar de ser difícil encontrar o cromeleque de Vale Maria do Meio, a realidade podia ser bem pior. Como no caso das duas Antas da Herdade do Barrocal, em Nossa Senhora da Tourega, onde apenas existe uma placa torta e enferrujada, com um pequeno desenho de uma anta, a indicar o caminho de terra batida. Os dois monumentos, datáveis do período Neolítico ou Calcolítico, ficam no interior de uma propriedade privada vedada. O portão está a aberto e, para entrar, basta empurrá-lo. O problema é encontrá-lo.
Mas, felizmente para nós, uma das antas mais famosas fica à beira de uma estrada nacional, a caminho de Valverde. Conhecida como a Anta do Livramento ou Anta de São Brissos, o monumento foi transformado em capela no século XVII e pintada de azul e branco, como as casas alentejanas. Com apenas uma árvore a fazer-lhe companhia, ergue-se solitária entre vedações e um caixote do lixo. A porta de entrada, em ferro, está geralmente fechada e existe apenas uma pequena janela lateral que dificilmente deixará entrar alguma luz. Do lado direito, uma antiga placa, já enferrujada, anuncia:
“Contactos para abertura da anta:
266 857 637
266 857 128
266 857 183”
É também a caminho de Valverde que fica a Anta Grande do Zambujeiro, uma das mais famosas da região. Localizada na Herdade da Mitra, precisamos de algumas voltas e de percorrer (de carro e a pé) vários caminhos de terra até darmos com ela (há uma placa junto a umas instalações pecuárias, numa localidade próxima, mas é difícil de ver).
Com perto de oito metros de altura e um corredor de 12 metros de comprimento, a Anta Grande do Zambujeiro, erigida no período neolítico, é o maior monumento megalítico funerário de que há conhecimento na Península Ibérica, e um dos maiores da Europa. Foi descoberta por Henrique Leonor de Pina na década de 60 e pensa-se que terá sido construída algures entre o IV e III milénios a.C., tendo “como finalidade acolher no seu interior os corpos dos falecidos que eram depositados juntamente com objetos do seu quotidiano e de uso ritual”, como explica uma placa informativa, desbotada.
Esta anta é, juntamente com a do Livramento, a mais importante da região. “A Anta de Olival da Pega 1, [em Reguengos de Monsaraz] que fica ao pé dessa, [também é importante,] mas em termos de dimensão de câmara é diferente”, explicou ao Observador Leonor Rocha, professora da Universidade de Évora. De acordo com a arqueóloga, existem pelo menos dez antas que “são bastante grandes”. “As outras andam em torno dos dois metros. Normalmente as que são muito grandes, são também as mais tardias, com entre quatro a cinco mil anos”, acrescentou.
Segundo dados da Câmara Municipal de Évora, cedidos ao Observador, existem cerca de 200 antas (ou dólmenes) registadas no concelho de Évora. Menires isolados são pelo menos 50 e há ainda três recintos megalíticos identificados — dos quais o cromeleque dos Almendres e o de Vale Maria do Meio são exemplos. Mas o número real pode ser bem maior. O site Visite Évora, por exemplo, fala em mais de dez recintos megalíticos, mais de 100 menires, 800 antas e ainda em 450 povoações megalíticas. Números que mostram a riqueza e a importância dos achados arqueológicos da zona de Évora.
Porque é que há tantos monumentos megalíticos em Évora?
Se olharmos para um mapa, mesmo que incompleto, dos monumentos megalíticos do concelho de Évora, ficamos com a impressão de que, um pouco por toda a região, existem menires e antas à espera de serem encontrados. E isso não podia estar mais certo. Esta proliferação de vestígios arqueológicos explica-se pelo facto de, na Pré-História, o Alentejo (em especial a região centro) ser um ponto essencial de passagem para o homem pré-histórico. Segundo o site Visite Évora, isto devia-se ao facto de a região ser a única onde se tocavam as bacias hidrográficas de três grandes rios — o Tejo, o Sado e o Guadiana. “As planícies alentejanas eram perfeitas para as últimas comunidades de caçadores-recoletores aí praticarem o seu modo de vida”, refere o mesmo site.
“Atendendo à quantidade de vestígios, o Alentejo devia ter mais população residente do que tem atualmente”, adiantou Leonor Rocha. “Com toda a tecnologia e todo o conforto que nós temos achamos que, coitados, eles tinham uma má vida. Mas, para eles, não era assim tão má. O clima era semelhante ao atual e já tinham cabanas relativamente protegidas, feitas com troncos de madeira e forradas a barro, tinham tecelagem, faziam roupas. Já estavam mais protegidos do que as populações paleolíticas nómadas, que viviam em função dos animais. [Neste caso], estamos a falar das primeiras sociedades sedentárias — praticavam a agricultura, tinham os seus rebanhos. Estavam a começar a agregar-se ao território. Nesta fase inicial, uma das teorias que existe é a de que estes monumentos serviam como marcas de posse da paisagem.”
Segundo a arqueóloga, é no Alentejo que existe a maior concentração de monumentos megalíticos europeus, a seguir à Bretanha, rica sobretudo em menires. “Conhecem-se poucos menires em Espanha e cromeleques nenhuns. O Alentejo é um privilegiado. E isto é o que chegou à nossa altura! Tal como as antas, supomos que os menires também foram muito destruídos. Temos evidências de que alguns deles foram usados antes, sendo que a maioria é anterior às antas”, explicou Leonor Rocha. Aos dias de hoje, chegaram sobretudo antas (ou dólmenes), como mostram os números cedidos pela Câmara Municipal de Évora, construídas segundo uma tipologia que “está muito padronizada”. E o que é que isso quer dizer?
As antas portuguesas, por norma, são compostas por uma câmara e um corredor. “A câmara tem normalmente uma planta poligonal, normalmente com cinco, sete ou nove esteios [pedras que seguram a laje superior]. Temos muitas dentro dos números ímpares, porque era de mais fácil construção. Mas, mesmo dentro do número ímpar, 80% devem ser de sete esteios.” Os corredores são por norma curtos, sendo que o mais comprido é da anta de Reguengos de Monsaraz, com 16 metros de comprimento. Pelo menos que se conheça.
“Ao fim de seis mil anos, é normal que estejam muito estragadas”, disse a arqueóloga. “Os corredores acabam por ser os que foram mais destruídos. Muitos dos monumentos têm marcas de terem sido partidos deliberadamente para retirar matéria prima. Compreende-se que, existindo um conjunto de pedras que, durante séculos, as pessoas nem sabiam para o que serviam, fosse buscar pedras ali e não a uma pedreira”, afirmou ainda.
A Gruta do Escoural, um achado único no país (e na Europa)
É a cerca de três quilómetros de Montemor-o-Novo, a caminho da vila de Santiago do Escoural, que fica a Gruta do Escoural, um complexo subterrâneo descoberto, por puro acaso, nos anos 60. Este é, sem dúvida, o monumento pré-histórico mais importante da região, uma vez que é o único sítio em toda a Península Ibérica onde se podem ver ao vivo e a cores gravuras e pinturas do Paleolítico Superior (entre 50 mil a dez mil anos a.C.). E, ao contrário de muitos outros monumentos, não é difícil de dar com ele.
A Gruta do Escoural está hoje à guarda de Sónia Contador. É ela que agenda todas marcações e que faz as visitas guiadas. É também ela a única pessoa responsável pelo Centro de Interpretação do Escoural, estabelecido em 2016 num pequeno edifício cedido pela junta de freguesia de Santiago do Escoural, de onde partem todas visitas. O espaço, com grossas paredes alaranjadas, não é muito grande, mas reúne algumas informações gerais sobre a gruta e também alguns dos vestígios que foram aí encontrados (se bem que a grande maioria se encontra guardada no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa).
Sónia nem sempre é fácil de encontrar. A guia divide o seu tempo entre a secretária do Centro de Interpretação e a porta da Gruta do Escoural e admite que é natural que, quem não tem marcação, acabe por bater com o nariz na porta. “Se não estou aqui, é porque estou a fazer uma visita”, explicou ao Observador, quando a conhecemos no início de fevereiro. É que, apesar de “cerca de 90%” dos visitantes marcarem a sua visita com antecedência, existem sempre aqueles que aparecem à última hora. Ou então nos dias em que a gruta está fechada.
Sónia repara que, muitas vezes, depois dos dois dias de folga, domingo e segunda, a maçaneta da porta que dá acesso à gruta não está como o deixou. Há sempre algum visitante curioso que tenta entrar.
Existem dois horários de visita, um de manhã e outro à tarde. Entre março e outubro, o espaço pode ser visitado das 9h às 13h ou das 14h às 17h. Nos outros meses, as visitas funcionam entre as 9h30 e as 13h e entre as 14h30 e as 18h.
As visitas acontecem de terça a sábado (entre domingo e segunda o Centro de Interpretação está fechado) e devem ser marcadas com, pelo menos, 24 horas de antecedência. No verão, porém, Sónia Contador alerta que um dia de antecedência pode não ser suficiente — é nos meses quentes que a gruta e recebe o maior número de visitantes. Os grupos não podem exceder as dez pessoas. Não por capricho, mas porque o espaço é apertado e um número maior de pessoas dificulta a circulação.
Mas nem sempre foi assim. O monumento abriu de forma regular nos anos 70, depois de ter sido escavado e estudado por arqueólogos do Museu Etnológico de Lisboa, que ocorreram ao local assim que souberam da descoberta. Durante as décadas seguintes, as visitas iam-se fazendo de forma irregular, “precária e com poucas condições”. Eram asseguradas por um “antigo trabalhador nas escavações e que acabaria por ser integrado nos quadros da função pública”, contou ao Observador a historiadora Ana Paula Amendoeira, Diretora Regional de Cultura do Alentejo.
Os que ali vivem ainda se lembram de Francisco Porteiro. Foi ele que, durante mais de trinta anos, guardou a entrada da Gruta do Escoural a partir de uma pequena casa branca, construída mesmo ali ao pé. Com o seu Petromax, o Sr. Francisco — como era conhecido — mostrava de boa vontade as figuras e gravuras a quem por ali aparecesse. Quando se reformou, em meados de 2000, foi como se o Sr. Francisco levasse a gruta com ele.
“Nunca foi possível garantir de forma regular a sua substituição”, confessou Ana Paula Amendoeira, que ocupa o cargo de diretora regional desde 2013. A partir daí, as visitas passaram a ser “asseguradas através de programas precários do Instituto do Emprego, o que causava instabilidade e frequentes alterações no modelo de visita”. E o inevitável acabou por acontecer: em 2009, a Gruta do Escoural fechou portas.
Passados dois anos, foi “objeto de um projeto de reabilitação das infra-estruturas”. Com uma cara lavada, a gruta lá reabriu ao público. Só que os problemas com a contratação de pessoal continuaram, ”pelo que a Direção Regional em cooperação com a Câmara Municipal de Montemor-o-Novo, a Junta de Freguesia de Santiago do Escoural e a Associação local Amigos Unidos pelo Escoural, promoveu a celebração de um protocolo em fevereiro de 2016, de forma a garantir a permanência e continuidade no modelo de funcionamento”.
O protocolo não tem nenhum prazo de validade: a sua continuidade está dependente “dos resultados que, até agora, foram considerados muito positivos por todas as partes”, explicou Ana Paula Amendoeira, acrescentando que, desde que foi assinado, a Gruta do Escoural recebeu 3.650 visitantes, num aumento de 35% face ao ano anterior. Apesar disso, a diretora admite que ainda está “longe da capacidade máxima possível (40 por dia) no presente modelo de funcionamento (ainda que a capacidade de carga estimada seja até um pouco superior)”. A entrada é paga — os bilhetes custam 3 (para adultos) ou 1,5 euros (para séniores a partir dos 65 anos) — e “as receitas são arrecadadas pela Direção Regional que por sua vez e em colaboração com a Câmara, garante as transferências de verbas necessárias para a Associação manter o serviço”.
As pinturas que o tempo ainda não conseguiu apagar
A entrada para a Gruta do Escoural fica numa pequena elevação, no mesmo local da Herdade da Sala onde, nos anos 60, existia uma pedreira de mármore. Foi aí que, a 17 de abril de 1963, Valentim Domingos Fernandes e Olímpio Gaixinha a descobriram acidentalmente, durante um rebentamento de rotina. Na altura, o local tinha um aspeto muito diferente — não havia a grande clareira que existe hoje nem a entrada que dá acesso ao interior da gruta. Tudo estava tapado por rochas e ninguém fazia ideia do que se encontrava por debaixo.
Inicialmente, os arqueólogos pensaram tratar-se simplesmente de “mais um local de práticas funerárias neolíticas”, como refere António Carlos Silva, arqueólogo responsável pelo monumento, no livro Escoural: Uma gruta pré-histórica no Alentejo. Na região, há muito conhecida pelos seus vestígios pré-históricos, abundam as chamadas antas (ou dólmenes), monumentos que eram usados pelo homem pré-histórico para sepultar os seus mortos. Por isso, não seria de estranhar que a Gruta do Escoural fosse mais um desses locais dedicados ao culto dos mortos.
Só mais tarde é que a chuva intensa veio revelar a verdadeira riqueza da Gruta do Escoural — as suas pinturas rupestres. Ultrapassado o ceticismo inicial quanto à sua antiguidade (acredita-se que o local tenha sido ocupado entre os anos 30 a dez mil a.C.), a gruta veio a afirmar-se como “o único lugar do território português onde estavam identificadas manifestações típicas da chamada Arte das Cavernas” (as pinturas do Vale do Côa, na Guarda, só foram descobertas muito tempo depois). Mas não só.
Até a Gruta do Escoural ter sido descoberta, pensava-se que que a arte paleolítica era “uma manifestação cultural exclusiva das comunidades de caçadores que habitavam as regiões periglaciares do sul de França ou do norte de Espanha”. Ou seja, a Gruta do Escoural representou uma mudança de paradigma, “tal como as fantásticas descobertas das margens do Côa demonstraram que a arte paleolítica não era apenas uma arte da escuridão das cavernas, dominada por uns quantos iniciados com acesso exclusivo a obscuros santuários”, afirma António Carlos Silva no seu livro.
De acordo com Sónia Contador, acredita-se que a gruta tenha estado fechada desde o ano três mil a.C., mas não se sabe exatamente porquê. Mas há teorias: “A partir dessa altura, alguma coisa ou algum fator acabou por fazer com que se encerrasse. Existe a ideia de que poderá ter sido propositado — a população ou o grupo que aqui estivesse poderá ter encontrado uma forma de a selar, mas não se sabe bem porquê”, explicou a guia. Outra teoria defende que o fecho da gruta terá sido natural, talvez causado por “um terramoto, um deslizamento de terras”.
Outro motivo que torna a gruta “especial” é o facto de ser a única na Península Ibérica em que podemos entrar e ver imagens pertencentes ao Paleolítico Superior. “A mais parecida, onde existem imagens da mesma altura, é a de Altamira, no norte de Espanha. No entanto, as visitas não são feitas na gruta original — as pessoas apenas podem visitar uma réplica”, explicou Sónia. Essa restrição deve-se ao facto de, durante muitos anos, as visitas a Altamira e também a Lascaux, no sudoeste de França, terem sido feitas sem qualquer tipo de controlo.
“O dióxido de carbono que expiramos não é nada bom para este tipo de imagens, como é óbvio”, frisou a guia. “Quando juntamos o dióxido de carbono à humidade que está no interior, isto leva à formação de um ácido carbónico”, que contribui para o deterioramento das imagens. “Não é uma só pessoa que causa um problema, mas a contínua presença de pessoas — cerca de 60 mil por ano! — fazia com que os níveis de dióxido de carbono atingissem níveis muito preocupantes. Juntamente com outros fatores, isso levou a que as autoridades tivesse de tomar” uma medida mais drástica.
À semelhança de Altamira ou Lascaux, a maioria das imagens da Gruta do Escoural também são de animais, “porque se acredita que as populações que aqui estiveram usaram esta gruta principalmente como santuário”. “Acredita-se que as imagens terão sido feitas mais ou menos entre 30 a dez mil anos a.C., o que significa que pertencem ao Paleolítico Superior. As populações dessa altura eram nómadas e o grupo que estaria a viver aqui estaria de passagem. Provavelmente usou esta gruta temporariamente, como santuário”, referiu a guia.
Apesar de a Gruta do Escoural ter sido descoberta em abril de 1963, só mais tarde é que os arqueólogos se deram conta das pinturas que decoram as paredes de calcário. “Quando começou a chover com mais intensidade e água começou a escorrer, é que as formas que estavam na parede começaram a ser mais visíveis”, explicou a guia. Isto porque, se as paredes estiverem húmidas, os traços vão notar-se muito mais — “vai existir um contraste maior entre os traços da imagem e a rocha que é sempre mais clara”. “Temos a vida facilitada se esse contraste existir. A maior parte do tempo não existe água e, por isso, é muito mais difícil compreender os traços. O que é o caso de hoje.”
Como não havia água para nos ajudar, Sónia mostrou-nos a primeira figura com a ajuda de um laser. À medida que ia percorrendo os seus contornos avermelhados — as pernas, o dorso, a crina –, ia-nos ajudando a construir mentalmente a imagem de um equídeo, desgastado pelo tempo. “O grande problema desta imagem em concreto são estas manchas esbranquiçadas”, disse, apontando para a parede clara. “Isto chama-se calcite, e a calcite não é só isto que estão aqui a ver — são todas as formações que estão na superfície da rocha, espalhadas por toda a gruta.”
Algumas são semelhantes a linhas salientes, outras parecem estalactites, formadas a partir de várias camadas de calcite que se sobrepuseram. “Esta formação que parece que a rocha está meio lisa também é calcite”, explicou Sónia. “A água vai escorrendo e, com o tempo, vai deixando sedimentos que se vão desenvolvendo e acabam por ganhar este aspeto.” Apesar de ser graças à calcite que é ainda possível ver as antigas pinturas (foi uma camada inicial deste mineral que permitiu fixar o pigmento), é ela a principal responsável pelo desaparecimento gradual das mesmas. Com o passar do tempo, e à medida que a calcite se vai desenvolvendo, a arte rupestre da gruta vai sendo cada vez menos visível.
Perguntam muitas vezes a Sónia porque é que não se faz nada para evitar que a calcite continue a desenvolver-se, só que “a rocha é um organismo vivo”, como refere a guia. “A rocha está sempre a mudar, ao contrário da tela de um quadro, que é um material artificial. Qualquer intervenção que pudesse ser feita podia ajudar a curto prazo mas a longo prazo podia ser prejudicial.” É que o grande problema da calcite é que é impossível retirá-la sem destruir o que está por baixo.
A quantidade de calcite que existe na gruta apoia também a teoria de que, durante a Pré-História, o Alentejo não era a região seca que é hoje. “Muita água teve de escorrer por aqui, até mesmo com alguma intensidade”, adiantou Sónia Contador.
“Por exemplo, no caso desta imagem — isto sai, mas o que está por baixo, os pigmentos da imagem, vão acabar por sair também. Isso iria destruir a imagem ainda mais depressa do que a natureza.” Mas Sónia não perde a esperança e espera que, um dia, inventem uma solução para o mineral que, a pouco e pouco, vai engolindo as imagens do Escoural. “Os avanços na tecnologia estão sempre a acontecer, talvez venha a ser possível… Mas, neste momento, ainda não é.”
Um pouco mais abaixo, existe uma outra imagem pintada a negro, também de um equídeo. “A maior parte das imagens são de cavalos.” Isto porque “os principais animais que existiriam [naquela altura na região] seriam equídeos e auroques”, um antepassado dos atuais bovídeos. “As populações acreditavam que se desenhassem as imagens de animais os deuses (ou o que fosse em que acreditassem) os ajudariam a colocar mais animais no seu caminho”, explicou a guia.
Apesar de não haver certezas, acredita-se que esta e outras imagens tenham sido realizadas com pigmentos naturais. “Terão usado carvão e ocre [que confere o tom avermelhado], mas estudos um pouco mais recentes mostram que existem outros componentes no pigmento, nomeadamente osso, mas não sabemos exatamente como é que se chegou àquele pigmento. Deve ter havido muita tentativa e erro e existem muitas teorias”, referiu Sónia Contador.
Num outro ponto da gruta, atravessada de um lado ao outro por uma plataforma de madeira, estão as gravuras — de auroques e também de cavalos. Uma destas gravuras — que se supõe ser a representação de uma ou mais cabeças de cavalos –, é provavelmente a figura mais famosas da Gruta do Escoural. Gravada numa rocha baixa e inclinada, a sua posição privilegiada permitiu-lhe sobreviver melhor à passagem do tempo. “Como a rocha está nesta posição é muito mais difícil a água escorrer por cima destes traços”, salientou Sónia Contador. “A erosão não é tão óbvia e não vai acontecer tão depressa como já aconteceu com todas as outras imagens.”
Por cima dela dormiam dois morcegos, aparentemente alheios ao que por ali se passava. “Este sítio deve ser a suite presidencial porque está quase sempre aqui um morcego!”, brincou Sónia Contador, que não se incomoda nada com a presença dos pequenos animais. “São muito fofinhos e adoráveis!” Apesar de viverem na interior da gruta há muito tempo, os morcegos são cada vez menos. “O máximo que já vi juntos foram cinco”, admitiu a guia. “Quando a gruta foi encontrada, há pessoas já com alguma idade que se lembram de ver muitos no teto. Mas, com as mudanças que foram ocorrendo, este habitat já não é tão apetecível para eles.”
Porque é que é tão difícil encontrar os monumentos pré-históricos de Évora?
A esmagadora maioria dos monumentos pré-históricos eborenses — incluindo os mais famosos como o Cromeleque dos Almendres ou a Anta Grande do Zambujeiro — está localizada no interior de propriedades privadas. Leonor Rocha fala em cerca de 99% da totalidade, uma realidade que dificulta o acesso dos monumentos ao público. “Alguns estão relativamente acessíveis, mas temos propriedades que estão vedadas com vedações de três metros de altura”, contou a arqueóloga. Outras têm portões fechados a cadeado e, por vezes, nem os próprios arqueólogos têm ordem de entrada para poderem ver se o “monumento ainda está lá”.
Ana Paula Amendoeira admite que é “um problema no que respeita ao acesso ao público”, mas também “no que respeita à sua salvaguarda e conservação”. “Nos dois casos referidos, até porque são monumentos nacionais, os proprietários não levantam obstáculos à visita, mas há muitos monumentos conhecidos em Évora e que constam até de vários roteiros, cujo acesso atualmente está limitado pelos proprietários, alegando razões económicas, securitárias, privacidade, etc.”
Glossário
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Anta (ou dólmen): monumento funerário megalítico coletivo composto por vários menires, formando uma câmara, encimados por uma grande laje na horizontal. A câmara pode ser circular ou poligonal.
Cromeleque: conjunto de menires dispostos em círculo ou em elipse (como é o caso do Cromeleque dos Almendres).
Menir: monumento megalítico (ou seja, feito de pedra) composto por uma única pedra alta, fixa verticalmente no solo.
Neolítico (ou Período da Pedra Polida): período que se estendeu entre cerca de sete mil e 2.500 a.C, caracterizado pelo aparecimento dos primeiros instrumentos de pedra polida, a domesticação de animais e desenvolvimento da cerâmica e agricultura.
Paleolítico (ou Idade da Pedra Lascada): período pré-histórico caracterizado pelo uso de pedra intencionalmente lascada em armas e ferramentas. Divide-se em três momentos: Paleolítico Inferior, Médio e Superior. Foi também durante este período que surgiram as primeiras formas de arte de que há registo.
O Paleolítico Superior, durante o qual a Gruta do Escoural foi habitada, situa-se entre 50 mil e 10 mil anos a.C.
De acordo com Diretora Regional de Cultura do Alentejo, o estado de conservação dos monumentos é “muito diverso” e a grande maioria interessa “sobretudo do ponto de vista científico-arqueológico”. Ou seja: nem todos têm “potencial interesse turístico”, mas existem cerca de 300 que o têm.
Questionada sobre se existe algum protocolo firmado com os proprietários que permita visitar os monumentos em causa, a Câmara Municipal de Évora explicou que, quando foi criado o Roteiro do Megalitismo de Évora, “foram encetadas negociações com os proprietários no sentido de criar condições para visitar alguns dos monumentos mais marcantes”. “Esse processo foi bem sucedido e resultou na criação de portelas de acesso e colocação de sinalização específica”, garantiu a autarquia. O que nem sempre se verifica. Porquê?
Segundo a Câmara Municipal, a situação atual deve-se às mudanças de proprietários que, naturalmente, foram acontecendo na zona nos últimos anos. Isso criou “dificuldades à manutenção do circuito”. “Somando ao anterior as dificuldades financeiras que impedem a Câmara Municipal de Évora de fazer a reestruturação que gostaria e a destruição de sinalização, tanto devido à passagem do tempo como ao vandalismo redundou nesses problemas que reconhecemos e queremos solucionar logo que possível.”
Como causa para a situação atual, a Diretora Regional de Cultura do Alentejo apontou ainda a “escassez de recursos por parte das administrações regionais e locais”, defendendo que o grande problema resulta, de facto, da “titularidade privada, que tem dificultado qualquer plano de valorização global deste património”.
Apesar das dificuldades de acesso e sinalização, a Câmara Municipal de Évora garante que tem feito tudo ao seu alcance para “melhorar as condições de acesso aos monumentos, quer através da manutenção de caminhos ou construção de parques de estacionamento”. Prova disso é o número crescente de visitas a dois dos “ex-libris do megalitismo ibérico” — Anta Grande do Zambujeiro e Cromeleque dos Almendres.
Para Leonor Rocha, porém, o problema não está só na falta de recursos — está também na mentalidade. “Continuamos a ter grandes propriedades — as antigas, em que as herdades têm vindo a passar de geração em geração e que têm uma sensibilidade completamente diferente em relação ao património, e as que estão a ser vendidas a pessoas que não têm nada a ver com o Alentejo. As dificuldades que temos, nós investigadores, é com essas propriedades”, confessou a arqueóloga, que sempre foi recebida da melhor forma pelos donos de antigas propriedades.
“A maior parte das nossas herdades estão dedicadas ao gado, têm grandes rebanhos, ou então estão viradas para a caça. Infelizmente eu já constatei isto — as pessoas entram e deixam a porteira aberta. Se uma ovelha sai, eles são os responsáveis. Em relação aos da caça, eles cedem [a propriedade] para a exploração da caça. As associações [que as exploram] também acham que ter muitas visitas afasta a caça, que é uma fonte de rendimento [para quem aluga o terreno]. Conjuga-se o fator económico com os outros.”
E nem sempre é fácil gerir os interesses de todos. Os proprietários, nem sempre sensibilizados para a questão do património, mostram-se hesitantes em cederem o espaço onde os monumentos se encontram e em criarem condições para que possam ser visitados, como aconteceu com o cromeleque e menir da Herdade dos Almendres. “Às vezes é mais fácil quando estão ao pé das estradas nacionais. Em Coruche, conseguiram fazer um percurso porque têm os monumentos junto às estradas. Conseguiram fazer um percurso e visitas guiadas“, contou a arqueóloga. Contudo, apesar de “não ser por 20, 30 metros quadrados que vão ficar com a produção estragada”, a maioria dos proprietários encara as antas e menires como propriedade sua. Só que não o são — “a terra já teve muitos outros proprietários antes dele”, afirmou Leonor.
A verdade é que a situação é complexa e dificilmente se resolverá. Num artigo de 2008, Leonor Rocha, juntamente com o arqueólogo Manuel Calado, avançou com a possibilidade da criação de um parque temático em Évora, semelhante aos que já existem em França. “Era uma ideia. Tínhamos visitado alguns que existiam no sul de França”, como o parque do Musée des tumulus de Bougon ou o Parc Pyrénéen de l’Art Préhistorique, em Tarascon-sur-Ariège. “Temos dois grandes conjuntos de vestígios em Portugal — os romanos ou os dentro do Megalitismo ou associado ao Megalitismo. Achámos que faria sentido fazer uma coisa dentro desse género aqui. Mas era uma coisa que exigia outros recursos. Só agora é que, em Mora, conseguimos chegar ao museu, o primeiro especializado no Megalitismo [em Portugal].”
Para a arqueóloga, é lamentável que as pessoas procurem “lá fora” o que já existe cá dentro. E isso por puro desconhecimento. Mas, tendo em conta o que se passa em Évora, é muito provável que isso continue a acontecer. Por muitos e muitos anos.