O Governo recusa a utilização da palavra austeridade, como a oposição pretende caracterizar esta proposta do Orçamento do Estado para 2022, que vai entrar em vigor para meio ano. Fernando Medina, ministro das Finanças, que defendeu este Orçamento como seu (ainda que boa parte já venha da proposta de outubro, chumbada no Parlamento), respondeu: “Em nenhum dicionário este é uma política de austeridade”, voltando, no entanto, a aplicar a expressão que tem vindo a ser aproveitada por todos os ministros das Finanças destes legislaturas de António Costa: é um orçamento “de contas certas”.
As contas certas revelam-se na projeção de défice de 1,9%, à espreita, no final da legislatura, para um excedente. Uma projeção do défice que já vem do programa de estabilidade, que reviu o défice para 2022 em baixa depois de 2021 ter trazido também um saldo orçamental negativo melhor do que o esperado (défice de 2,8%).
Significa que face a 2021, o défice é reduzido em mais de mil milhões de euros. Isto apesar das medidas extraordinárias resultantes da escalada de preços agravada pela guerra na Ucrânia. De qualquer forma, o valor inscrito para estas medidas ainda são inferiores aos registados com a emergência pandémica em 2021. De acordo com a proposta de Orçamento, as medidas de emergência Covid-19 custaram, em 2021, 6.667 milhões de euros, valor que desce para menos de dois mil milhões (1.943 milhões) em 2022. Só aqui fica uma margem de 4,7 mil milhões de euros.
Ora, segundo a proposta as medidas de mitigação do choque geopolítico em 2022 deverão atingir 1.335 milhões, contabilizando-se mais 459 milhões de euros para linhas de crédito.
Ou seja, as medidas extraordinárias para a Covid-19 e para o choque geopolítico atingem no conjunto 3.278 milhões, menos que as despesas que representou a crise pandémica em 2021.
Estas medidas têm, assim, um impacto menor do que o conjunto dos apoios para fazer face à crise pandémica. Essa é uma das justificações para que, apesar da crise geopolítica, o Governo mantenha o défice numa projeção de 1,9%. Ainda assim, Medina disse acreditar que para fazer face ao aumento dos combustíveis, “Portugal será dos países europeus nos quais é maior o esforço público relativamente à mitigação do preço sobre os combustíveis, medidas que se aplicam a todos”, defendo que esta é, assim, “a estratégia adequada e não acrescentará um motor adicional ao motor da inflação que está a ser importada”.
Inflação temporária, espera Medina
Fernando Medina afina pelo diapasão dos que acreditam que esta escalada na inflação é temporária e circunscrita a alguns produtos/bens. Tem sido esse o discurso do BCE e do Banco de Portugal e é nessas duas estacas que o ministro das Finanças assenta as suas explicações e a base do cenário macroeconómico.
Um cenário que foi revisto em dois aspetos: no crescimento económico (que fixa agora a 4,9%) e na taxa de inflação. Esta foi revista em alta face à proposta de Orçamento chumbada que foi apresentada em outubro, mas também face ao programa de estabilidade que entrou no Parlamento em março. Fica agora prevista uma inflação harmonizada (IHPC) de 4% e um IPC de 3,7%.
A projeção para a inflação é agora ajustada às que foram feitas pelo Banco de Portugal e Conselho das Finanças Públicas.
Na conferência de imprensa na qual apresentou o documento, Fernando Medina argumentou que o Orçamento procura responder à conjuntura, mas “procura fazê-lo de uma forma muito eficaz e verdadeira para com o futuro”. Puxando dos galões de economista — lembrando ser essa a sua formação –, falou dos processos inflacionários. “O que não podemos fazer, e essa é uma orientação clara do Ministério das Finanças e do Governo, e nós não vamos, via políticas nacionais, alimentar o motor da inflação. Temos um motor a gerar inflação — nos combustíveis e na componente externa – seria um erro de grandes dimensões e que seria pago pelos mais vulneráveis se colocássemos ao lado o motor interno a fazer crescer a inflação”.
Isto para dizer que não vai haver nova atualização de salários para a administração pública, além daquela que foi dada em janeiro, de 0,9%. O argumento é o que António Costa já tinha referido: não alimentar a espiral inflacionista. Até porque o Governo mantém a opinião que a inflação está duplamente circunscrita: no tempo — apesar da “volatilidade e incerteza” — e na origem — circunscrita aos bens energéticos e de alimentos que integram a cadeia alimentar.
Inflação garante mais receitas
Se a inflação for alta, o orçamento até acaba por beneficiar se houver essa inflação aliada a crescimento económico, terá impacto inverso se o crescimento não acontecer.
“Tudo depende de como a economia vai andar até ao final do ano”, mas Fernando Medina acredita no valor que agora coloca de crescimento.
E assim a crescer 4,9% a economia e com uma taxa de inflação de 4%, as receitas previstas atingem 101 mil milhões de euros (cerca de 99 mil milhões de euros de receita corrente), sendo 56 mil milhões de euros de receitas fiscais, o que é superior face aos 52,8 mil milhões de 2021 e face aos 54,2 mil milhões face ao orçamento de outubro. As receitas com impostos sobre produção e importação atingem 34,5 mil milhões (face aos 32,2 mil milhões de 2021), e os impostos sobre rendimentos e património estão orçamentadas em 21,8 mil milhões de euros (face aos 20,5 mil milhões de 2021).
O que significa que a receita total vai crescer mais (6%), segundo o Orçamento, que a despesa (4,1%), sendo certo que do lado da despesa há um aumento nos custos com pessoal (abaixo até do crescimento global das despesas, já que aumentam 3,6%), mas há uma queda em relação aos juros e ao consumo intermédio.
E, claro, o PIB nominal — que é o que reflete os preços correntes com impacto da inflação — sobe (7,5%) pelo efeito de haver inflação. Isso também ajuda a explicar que o défice se mantenha previsto nos 1,9%, mas Medina acrescenta a esta justificação as opções políticas. “Temos já um número de anos suficientes de contas certas para saber que é um objetivo central para vida dos portugueses e das empresas. É a melhor arma face aos custos do financiamento externo que a nossa economia se confronta”.
Crescimento revisto em baixa
O Governo, e essa é uma das alterações face a outubro e mesmo face a março (programa de estabilidade), prevê agora um crescimento do PIB de 4,9%, abaixo dos 5% de março. Medina considera realista esta projeção, até pelo efeito de arrastamento (o chamado carry over) que advém do crescimento superior ao esperado de 2021 (4,9%). Se tudo ficasse inalterado, esse efeito de arrastamento já permitiria ter um crescimento de 3,7%, salientou o ministro na conferência de imprensa. “Mantemos por isso 4,9% e temos confiança nesse valor. Pode ser atingido”, acreditando nos sinais positivos já detetados no primeiro trimestre, com os aumentos de contribuições, pagamentos multibanco, receita de IVA, redução da taxa de desemprego.
Também há que ter em conta que 2022 compara com 2021, ano em que arrancou com confinamentos devido à pandemia da Covid.
Para a base deste cenário macro, o Governo já inscreve um valor do barril do petróleo (bem) acima do que tinha na proposta chumbada. O brent está agora estimado em 104,6 dólares, face aos 67,8 dólares da proposta de outubro e mesmo de 92,6 dólares do programa de estabilidade. E apesar de se antecipar uma subida nas taxas de juro, o valor inscrito para a despesa com o serviço da dívida não sobe.
O investimento público sobe, por outro lado, à boleia do PRR (plano de recuperação e resiliência).
O défice estrutural no caminho de se tornar excedente
Mas este é, conforme Medina repetiu, um orçamento de contas certas, assumindo que não é o momento para políticas expansionistas. “Adotar uma política expansionista é a resposta adequada quando confrontados com crises de procura. Não é necessariamente a boa resposta para uma crise de oferta, como a de agora, em que estamos com um sobressalto sobre fatores de produção, por isso, uma política mais expansionista fiscal não seria a recomendável. O que é recomendável é prosseguirmos este caminho de consolidação, para, num momento de dificuldade, de natureza diferente, podermos ter mais margem para podermos reagir. Se estivermos encostados aos 3% [de défice — as regras europeias impõe um défice abaixo de 3%] um dia que a nível europeu não seja prolongada a exceção [as regras estiveram suspensas por causa da pandemia] Portugal não teria essa margem de exercício de política orçamental”. Assumindo que é um orçamento de “segurança, de proteção, e reforço dos nossos instrumentos para podermos fazer face às adversidades”. Para reafirmar: “Não era recomendável uma política expansionista, e por isso não é adotada por nós.”.
E assim o défice estrutural ficará nos 1,2%, abaixo do registado no ano passado (-1,4%). Este saldo permite aferir as contas numa base normalizada, sem medidas extraordinárias e sem ajustamento ao ciclo, dando indicação sobre se um orçamento é contracionista ou expansionista. Uma redução tende a indicar contração. Este défice tem vindo a diminuir nos últimos governos. É já com sinal positivo que Medina apresenta a projeção para o saldo primário (não contabilizando os juros). Deverá ficar num excedente de 0,3%.
Indicadores que Medina acredita que põem o país no caminho da consolidação e, concluiu, “contas certas são um ativo do país.”