“Quando penso em grandeza, penso em Ayrton Senna. Ele foi grandioso.”
Ayrton Senna marcou uma era na Fórmula 1 e no desporto nos anos 80 e 90. Foi um dos mais geniais pilotos que o mundo algum dia viu. Tinha carisma. Arriscava. Era um apaixonado pelo que fazia, apaixona por tudo o que fez e gostava ainda de ter feito. E todo o legado ficou traduzido no seu funeral, em maio de 1994, um momento que nunca se poderá quantificar (mais de um milhão de pessoas) e que deve sobretudo ser qualificado (como único). Hoje, comparam Lewis Hamilton a Senna. E isso vale tanto ao mais para o inglês do que os quatro títulos mundiais.
Em junho deste ano, no Canadá, quando igualou as 65 pole positions do brasileiro, a família de Senna deu ao britânico uma réplica do capacete do antigo campeão mundial (com a garantia de que o original estava guardado também para si). Hamilton emocionou-se. Não foi capaz sequer de dizer uma palavra. Agradeceu com um olhar que dizia tudo. E beijou o capacete, como se estivesse a segurar uma espécie de Santo Graal da Fórmula 1. Até aí, coincidência ou não, o inglês tinha ganho duas provas, menos uma do que Vettel; a partir daí, ganhou sete contra apenas uma do alemão. Essa começou a ser a viragem, confirmada desde Silverstone.
“Gostaria de saber falar português para expressar todo o meu amor e apreço pela família de Senna, por me ter dado este presente, pelo Ayrton e pelos brasileiros em geral”, atirou no primeiro comentário, alguns momentos depois da surpresa. Mais do que igualar os quatro títulos mundiais de Sebastian Vettel e Alain Prost, ficar apenas a um de Juan Manuel Fangio ou ver Michael Schumacher a três de distância, Hamilton superou as conquistas do brasileiro. E essa é a maior vitória daquele que é considerado o Ayrton Senna da nova geração.
Lewis Hamilton, hoje com 32 anos, tinha apenas nove quando o ídolo teve o fatídico acidente no GP de Itália. E há uma história curiosa dessa altura. Uns meses depois, após vencer mais uma corrida de karts de miúdos, estava ao lado do patrão da McLaren, Ron Dennis, e foi pedir-lhe um autógrafo. Aproveitando a deixa, apresentou-se. “Olá, sou o Lewis Hamilton. Já ganhei o Campeonato Britânico e um dia vou conduzir os vossos carros”, disse. “Liga-me daqui a nove anos, vamos arranjar qualquer coisa nessa altura”, respondeu-lhe Dennis. Mas não demorou tanto – em 1998, já estava a convidá-lo para fazer parte do programa de desenvolvimento da McLaren.
O britânico nascido em Stevenage, que é hoje o piloto da Fórmula 1 com mais pontos, mais vitórias em diferentes circuitos e mais poles, sempre foi um fenómeno desde pequeno. E tudo começou quando o pai lhe ofereceu aos seis anos um carro de controlo remoto. Vendo o encanto (e o jeito) de Lewis, seguiu-se um kart, no Natal. O futebol (onde chegou a jogar com Ashley Young, hoje no Manchester United), o karaté e o críquete ficaram definitivamente de lado: o que queria mesmo era carros e velocidade, algo que o pai foi alimentando a muito custo, passando a ser empreiteiro e sacrificando-se com três trabalhos em simultâneo até passar a manager do filho.
Em 2001, quando curiosamente já competia com o antigo campeão Nico Rosberg (que se retirou no final da última época), Michael Schumacher viu nele alguém que iria chegar à Fórmula 1. “É um piloto com qualidade, muito forte e tem apenas 16 anos. Tem a mentalidade de corrida”, comentou. E porque recuperamos essa opinião? Porque, apesar de ter contrato com a McLaren desde setembro de 2006, só foi anunciado em novembro como “número 2” da equipa para não ofuscar o anúncio da retirada do germânico com mais títulos mundiais conquistados.
Lewis tornou-se o primeiro negro a sagrar-se campeão em 2008 (ao contrário do que se escreveu na altura, não foi o primeiro a participar numa corrida) e repetiu o triunfo em 2014, 2015 e 2017, estes três pela Mercedes. Hoje, ninguém tem dúvidas de que se trata de um dos pilotos mais completos da história da Fórmula 1, mesmo num estilo agressivo e que às vezes arriscava em demasia. “Em parte é porque via Ayrton Senna quando era novo e pensava ‘Esta é a forma como gostava de conduzir quando tivesse a oportunidade’. Toda a minha abordagem foi desenvolvida a partir daí”, comentou o britânico numa entrevista onde foi instado a falar sobre a capacidade de explosão em pista.
E tal como Senna, Hamilton é muito mais do que um piloto de Fórmula 1. Para o bom e para o mau, nunca passa ao lado. É também isso que faz dele o rosto mais visível de uma nova geração dos desportos motorizados.
Dos romances amorosos (teve uma longa relação com Nicole Scherzinger, vocalista das Pussycat Dolls, mas já o ligaram também a Rita Ora, Winnie Harlow, Sofia Richie, Lindsey Vonn ou Barbara Palvin, só no último ano) aos episódios com carros fora de pistas (foi apanhado mais do que uma vez em excesso de velocidade e teve um acidente no Mónaco), passando pelas declarações polémicas como quando assumiu que “tinha trabalhado duas vezes mais para triunfar na Fórmula 1 por ser negro”, Lewis Hamilton é notícia por tudo e mais alguma coisa. Até porque tem todo um outro lado out of the box como tocar bem piano, ter o corpo cheio de tatuagens (a maior parte com ligações religiosas) ou ser um fã das obras de arte de Andy Warhol. Mas às vezes também pode ser protagonista por questões simplesmente caricatas, como a vez em que “atropelou” um tal de… Bill Clinton.
“Fui convidado para a festa de homenagem dos 90 anos de Nelson Mandela e foi fantástico porque quando cheguei estava na mesa de Bill Clinton, a dois lugares dele. E a Oprah tambem, foi uma loucura. Mas entretanto reparei que o Will Smith também lá estava e eu sou um grande fã do ‘Fresh Prince’. Então pensei: ‘Quero ir conhecer o Will’. Quando todas as pessoas se começaram a levantar, apressei o passo para ir falar com ele, mas quando estava a passar pelas pessoas pisei com força o pé de alguém. Quando me virei, era Bill Clinton. Nunca tinha estado tão nervoso e nem pedi desculpa, acabei por seguir”, recordou numa entrevista em 2015.
Ainda assim, o miúdo que chegou à Fórmula 1 há dez anos está diferente. Mais maduro, mais calculista sem perder a veia explosiva, mais focado nos temas paralelos que podem melhorar o rendimento na pista e que antigamente lhe passavam ao lado. Hamilton é aquele piloto com um regime rigoroso de ginásio que inclui alguns exercícios com o capacete. Mas não foi essa a principal mudança nos último tempos.
“Desde que me tornei vegetariano, depois de alguns comentários que fui vendo, sinto-me como nunca me senti antes, física e mentalmente. Todos os anos estive muito bem mentalmente, mas dei o salto em termos físicos após ter mudado a minha dieta. Deixei de comer carne vermelha há dois anos, comia peixe a maior parte do ano mas agora também cortei com isso”, referiu por mais do que uma vez este ano o piloto britânico.
Hoje há alguém que diz “Quando penso em grandeza, penso em Ayrton Senna. Ele foi grandioso”. Esse alguém é Lewis Hamilton. Mas também haverá alguém a dizer “Quando penso em grandeza, penso em Lewis Hamilton. Ele é grandioso”. Porque esse é um dos principais predicados dos grandes líderes de gerações: conseguem respeitar o legado dos antepassados, dão o seu cunho pessoal ao presente e inspiram os pilotos do futuro. Ayrton Senna fez isso nos anos 80 e 90; Lewis Hamilton está a fazer isso nos nossos dias. E o recorde de Juan Manuel Fangio está ali ao virar da curva.