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Handel vai ao mercado de transferências
A Royal Academy of Music – sem relação com a actual escola de música londrina com o mesmo nome – foi fundada em Londres em 1719 com o propósito de providenciar um fluxo regular de espectáculos de ópera para entretenimento (e prestígio) dos seus fundadores, onde se contava a fina-flor da nobreza inglesa. Para a direcção artística da companhia foi escolhido Georg Friedrich Handel, cuja primeira ópera londrina, Rinaldo (1711), suscitara grande comoção e abrira o apetite do público britânico para a ópera italiana. Handel também apreciara a vida musical no outro lado do Canal, pelo que em 1712 fixara residência no país, compondo obras por encomenda para a realeza e aristocracia, antes de entrar ao serviço do Duque de Chandos em 1717 (ver “Handel: O aluno que em Itália se fez mestre” e “Arminio: O mau destino da ópera esquecida de Handel“).
As atribuições de Handel como “Master of the Orchester” na Royal Academy of Music não se limitavam à composição: era também responsável pela supervisão dos músicos da orquestra, pela adaptação de óperas de outros autores e por todo o processo de preparação, ensaio e execução das obras. Estava-lhe também confiado o recrutamento de cantores de craveira internacional e foi com esse intuito que, no Verão de 1719, Handel viajou até Dresden, então um dos principais centros operáticos da Europa.
A viagem foi profícua, pois estabeleceu contacto com o famoso castrato Senesino (Francesco Bernardi, de seu verdadeiro nome), que estava ao serviço da corte de Dresden, e quando este, no ano seguinte, teve um desentendimento com Johann David Heinichen, o Kapellmeister da corte, rescindiu o contrato e aceitou a proposta de Handel para se instalar em Londres – a troco, claro, de uma remuneração milionária (as estrelas da ópera tinham então um estatuto comparável ao que têm hoje as estrelas do futebol).
Em Dresden, Handel também reencontrou a soprano Margherita Durastanti, que conhecera durante a sua estadia em Itália em 1707-10 e estreara a sua ópera Agrippina , em 1709, em Veneza, e o seu oratório La Resurrezione, e também ela foi aliciada a juntar-se à Royal Academy of Music.
Outro dos cantores de primeiro plano que Handel reencontrou em Dresden foi o baixo Giuseppe Maria Boschi, que também cantara em 1709 na estreia veneziana de Agrippina e até já tinha actuado em Londres em 1710. Também ele foi convencido por Handel a juntar-se à Royal Academy of Music, e, tal como Senesino e Durastanti, mudar-se-ia para Londres em 1720.
Mas a viagem de Handel a Dresden terá tido outra consequência relevante: é muito provável que o compositor tenha assistido à estreia no teatro da corte da ópera Teofane, com música de Antonio Lotti, que esteve ao serviço da corte de Dresden entre 1717 e 1719. A ópera abrilhantou o casamento do rei Augusto III da Polónia (e eleitor da Saxónia) com Maria Josefa de Áustria e contou com as vozes dos já mencionados Senesino, Durastanti e Boschi. E é também provável que Handel tenha obtido nessa ocasião um exemplar do libreto de Teofane, da autoria de Stefano Benedetto Pallavicino, o poeta da corte de Dresden, pois o libreto de que Nicola Francesco Haym, secretário da Royal Academy of Music e o libretista de confiança de Handel naquela época, preparou para Ottone é uma adaptação do libreto de Teofane, com corte na extensão dos recitativos e supressão de personagens, mas retendo o texto de algumas árias quase na íntegra.
[“Dell’onda ai fieri moti”, ária de Ottone na ópera Teofane de Antonio Lotti, pelo contratenor Axel Köhler e orquestra dirigida por Reinhard Goebel, ao vivo em 2000. Esta é uma das árias cujo texto foi reaproveitado por Haym para o Ottone de Handel]
Os caprichos das vedetas
Em Agosto de 1722, Handel deu por terminada a partitura de Ottone, Rè di Germania, destinada à quarta temporada da Royal Academy of Music, mas até à estreia, que teve lugar a 12 de Janeiro de 1723, no King’s Theatre, a obra sofreu uma sucessão de alterações.
É preciso lembrar que, naquela época, os compositores não tinham o estatuto semi-divino que viriam a adquirir no século XIX – as figuras mais populares da ópera barroca eram os cantores e mesmo um compositor com o prestígio de Handel tinha, por vezes, que “negociar” as árias com as prime donne e prime uomi, que estavam a borrifar-se para a coerência dramática da obra e queriam era oportunidades para exibir os seus mirabolantes dotes canoros. E vedetas era coisa que não faltava no elenco da estreia de Ottone: além dos já mencionados Senesino (Ottone), Cuzzoni (Teofane), Durastanti (Gismonda) e Boschi (Emireno), alinhavam também o castrato Gaetano Berenstadt (Adelberto) e a mezzosoprano Anastasia Robinson (Matilda). Sabe-se que Robinson escreveu uma carta a um dos mecenas da Royal Academy of Music, queixando-se de que as árias que Handel lhe destinara não punham em devido relevo as suas qualidades. É possível que algumas das alterações sofridas pela partitura de Ottone entre Agosto de 1722 e Janeiro de 1723 tenham resultado dessa “negociação”, mas também há um relato de uma ocasião em que Handel não transigiu com os caprichos dos cantores.
Em Dezembro de 1722 chegara a Londres a mais recente contratação milionária da Royal Academy of Music, a soprano Francesca Cuzzoni, que vinha precedida pela fama de uma carreira triunfal de oito anos nos palcos italianos. Durante os ensaios Cuzzoni, a quem cabia o papel de Teofane, entendeu que a ária “False imagine” era demasiado simples e não oferecia oportunidade para ela exibir os seus atributos, pelo que se recusou a cantá-la. Handel, que possuía um sentido dramático mais apurado do que o compositor de ópera mediano e sabia bem o que convinha a cada momento da obra, teve um ataque de fúria e disse à soprano: “Madame, bem sei que sois um verdadeiro demónio, mas ficais a saber que eu sou Belzebu, chefe de todos os demónios!” E tomou a cantora pela cintura e fez menção de a atirar pela janela. Intimidada, Cuzzoni aceitou cantar a ária tal como Handel a escrevera e terá talvez acabado por dar-lhe razão, pois foi um dos trechos mais aplaudidos da estreia – houve mesmo um espectador que gritou do “piolho”: “Diabos a levem! Ela tem um ninho de rouxinóis na barriga!”.
[“Falsa imagine”, ária de Teofane por Julianne Baird e a Brewer Chamber Orchestra:]
O elenco de Ottone teve a particularidade de contar com três dos cantores que tinham estreado Teofane em Dresden, encarnando as mesmas personagens – Senesino como Ottone, Margherita Durastanti como Gismonda e Giuseppe Maria Boschi como Emireno. A estreia foi um sucesso: a ópera teve 14 récitas durante a temporada e foi representada em Paris – embora em privado, em vez de ser na Académie Royale, como tinha sido previsto. E enquanto algumas óperas de Handel não voltaram a ser ouvidas após a estreia, Ottone foi reposta em 1723 (seis récitas) e em 1726, 1727 e 1733 (três récitas cada), tendo Handel introduzido alterações em cada reposição.
A ópera teve um total de 34 récitas durante a vida de Handel, o que significa que foi a sua segunda ópera mais representada, apenas ultrapassada pelas 53 récitas de Rinaldo. A popularidade de Ottone era tal que foi reposta em 1734 pela Opera of the Nobility, que fora criada em 1733 para rivalizar com Handel e a segunda encarnação da Royal Academy of Music (a primeira falira em 1729). A Opera of the Nobility conseguira aliciar Senesino e Cuzzoni a desertar da Royal Academy of Music e nesta reposição de 1734 ambos cantaram os papéis da estreia de 1723, mas o papel de Adelberto foi confiado ao famoso castrato Farinelli, a mais dispendiosa contratação da Opera of the Nobility (os custos exorbitantes de manter um elenco “galáctico” acabariam por levar ambas as companhias rivais à falência pouco depois).
O que é revelador das relações de poder na ópera barroca é que na reposição de 1734 Farinelli cantou o papel de Adelberto sem usar nenhuma das árias que Handel lhe destinara na partitura de Ottone. Em seu lugar escolheu cantar árias extraídas de outras óperas de Handel – Riccardo Primo, Lotario e Partenope – e de outros compositores. Isto dá ideia do poder das vedetas canoras e do seu desprezo pela integridade das óperas, pela coerência do enredo ou pela consistência das personagens: o que importava era o fogo-de-artifício vocal. E era também isso que o público queria ver e ouvir. E estava disposto apagar bem por isso, pois uma testemunha relatou que “a procura por bilhetes [para Ottone] é tal que, embora o seu preço corrente seja de meio guinéu, se vendem por dois e três guinéus – é como se estivéssemos perante uma nova Bolha do Mississipi ou dos Mares do Sul” [duas bolhas especulativas cujo rebentamento, com poucos meses de intervalo, sobressaltara os mercados financeiros três anos antes].
Apesar das generosas remunerações pagas às novas contratações canoras, o sucesso de Ottone contribui para que o ano de 1723 gerasse um saldo positivo para as contas da Royal Academy of Music, que distribuiu dividendos pelos seus accionistas. Os resultados financeiros da Royal Academy of Music acabariam por despenhar-se, mas o sucesso artístico de Ottone perduraria, de forma que, décadas depois, o crítico e historiados Charles Burney (1726-1814) afirmaria que “o número de árias nesta ópera que ganharam o estatuto de favoritas supera, quiçá, o de qualquer outra ópera apresentada em Inglaterra”.
Um enredo telenovelesco
Verdade seja dita que o libreto de Ottone está longe de ser uma obra-prima do ponto de vista literário. O de Teofane já não o seria e os cortes nos recitativos – o público britânico tinha pouca paciência para longos recitativos numa língua que desconhecia – e a supressão de personagens da versão de Haym não contribuíram para melhorar a coerência dramática.
A acção desenrola-se em Roma no final do primeiro milénio. Ottone, rei da Germânia, prepara-se para se casar com a princesa Teofane, filha do imperador bizantino Romano, mas, na sombra, Gismonda, viúva de Berengario, que governara ilegitimamente a Itália, conspira para que o seu filho Adelberto lhe suceda. Enquanto Ottone está ocupado a dar luta a uma armada sarracena comandada pelo pirata Emireno, Adelberto ocupa o trono e faz-se passar por Ottone perante Teofane, que acabou de desembarcar vinda de Bizâncio. Não havendo ainda Facebook, Teofane não tem maneira de saber que está perante um impostor, embora ache que este Ottone é bem diverso daquele que conhecia de um pequeno retrato – é então que Teofane canta a mencionada ária “False imagine” (“Falsa imagem, enganaste-me/ Mostraste-me um rosto atraente/ E por ele me deixei seduzir”).
Porém, quando o casamento entre Adelberto e Teofane está em curso, Gismonda irrompe em cena, alarmada, avisando que Ottone entrou em Roma – e se Ottone entrou em Roma, interroga-se a perplexa Teofane, quem é este com quem estou prestes a dar o nó?
O verdadeiro Ottone acaba com efeito de chegar, trazendo como prisioneiro o derrotado Emireno, que dá a entender que é uma personalidade importante mas se escusa a revelar a identidade. Matilda, prima de Ottone, revela a este as maquinações de Adelberto e vitupera o traidor, que prometera casar-se com ela. Ottone enfrenta o impostor Adelberto, derrota-o e envia-o a fazer companhia a Emireno no calabouço. Com os “maus” presos, não parece haver obstáculo a que os “bons” se casem e sejam felizes para sempre, mas no coração de Matilda o amor que ainda sente por Adelberto sobrepõe-se ao despeito por ter sido traída e acaba por ir suplicar ao primo que liberte o seu noivo. Teofane surpreende Ottone a ser abraçado por outra mulher – a prima Matilda – e presume que se trata de uma amante. Está aberto caminho para uma longa série de equívocos e eventos rocambolescos que seria penoso reproduzir aqui.
[“Deh! Non dir, che molle amante”, ária de Ottone por Philippe Jaroussky e o ensemble Artaserse, ao vivo no Purcell Room, South Bank, Londres, 2005]
Interessa reter que Adelberto e Emireno se evadem, com a ajuda de Matilda, instigada por Gismonda, e que Adelberto aproveita a confusão para raptar Teofane. Esta ameaça o pirata Emireno com a terrível vingança do seu irmão, o príncipe Basílio, o que causa uma reviravolta: Emireno abraça Teofane manda acorrentar Adelberto e – ele é, na verdade, Basílio, que foi expulso de Bizâncio por um usurpador e foi recolhido e criado por piratas mouros, acabando por tornar-se um dos seus líderes. Teofane só não o reconheceu porque os anos de exposição ao sol e ao mar lhe conferiram um admirável bronzeado.
A ópera encaminha-se então para o inevitável final feliz: Ottone pode casar-se com Teofane, os “maus” Adelberto e Gismonda são perdoados por Ottone e Adelberto é perdoado por Matilda, que aceita casar-se com ele. Quanto a Basílio, irá recuperar o trono que lhe estava destinado, pois corre a notícia de que o tirano que o condenara ao exílio foi derrubado. Fim.
Os factos históricos
Otão II ou Otto II (955-983), filho de Otão I e Adelaide de Itália, tornou-se Rei da Germânia aos seis anos (961) e casou-se aos 16 anos (em 972) com a princesa bizantina Teofânia Escleraina, ou Theophanu (960-991), sobrinha do imperador bizantino João I Tzimisces, que tinha 12 anos à data do casamento. Em 973, aos 18 anos, Otão II recebeu a coroa do Sacro Império Germânico, sucedendo ao pai Otão I ou Otão o Grande (912-973). Fora Otão I a combinar o casamento de Otão II com Teofânia Escleraina, tendo em vista o estreitamento dos laços entre os Impérios Romanos do Ocidente e do Oriente.
Otão II teve uma irmão mais velha chamada Matilda (955-999), que entrou para o mosteiro de Quedlinburg aos 11 anos (em 966) e foi de imediato reconhecida como abadessa, de forma que não poderia ter sido prometida a Adalberto – na verdade nunca saiu da Alemanha e acabou por desempenhar funções de regente, uma vez que o pai e o irmão passavam quase todo o tempo em Itália.
Adalberto nunca se cruzou com Otão II e Teofânia Escleraina e é possível que já estivesse morto quando o par se casou. Na verdade, a sua história diz respeito a uma geração anterior: Adalberto nasceu entre 932 e 936 e faleceu entre 971 e 976 e era filho de Berengário II e de Willa (não de Gismonda). Em 950, Berengário II e Adalberto foram eleitos pela nobreza italiana para governar conjuntamente a Itália, sucedendo a Lotário II, mas como a sua posição era frágil, Berengário II pensou em reforçá-la obrigando a viúva de Lotário, Adelaide, a casar-se com Adalberto. Adelaide recusou o casamento e fugiu, mas foi capturada e metida na prisão. Foi então que Otão I invadiu a Itália, derrotou Berengário II e Adalberto, libertou Adelaide e se casou com ela.
Berengário e Adalberto mantiveram-se, todavia, como reis de Itália, mas os seus desafios à autoridade de Otão I e do papa levaram a que, em 961, Otão I, em resposta a um apelo do papa João XII, voltasse a invadir Itália, derrotasse as tropas de Berengário e Adalberto e se fizesse coroar rei de Itália no seu lugar – e imperador no ano seguinte. Isto não significou o fim de Berengário e Adalberto, que continuaram a conspirar a partir do exílio na Córsega. João XII, que chamara Otão I para o proteger de Adalberto e que coroara Otão I imperador, acabou por unir-se a Adalberto para expulsar Otão I, mas as tropas deste derrotaram facilmente as da dupla. Adalberto exilou-se novamente e passou o resto da vida a tentar recuperar o seu reino, chegando a tentar envolver Bizâncio no imbróglio – sempre em vão.
Se no libreto de Ottone/Teofane Haym/Pallavicino baralharam e remontaram a história de Itália a seu bel-prazer, a história de Bizâncio não foi mais bem tratada. Basílio II (958-1025) era filho de Romano II (imperador em 959-63) e Theophano (não confundir com Teofânia Escleraina) mas Teofânia Escleraina não era sua irmã. É, todavia, verdade que foi afastado do poder por um usurpador, o brilhante general Nicéforo II Focas, que deveria ter assegurado a regência durante a menoridade de Basílio (este tinha cinco anos quando o pai morreu) mas acabou por tomar gosto ao poder.
Para consolidá-lo, casou-se com a imperatriz viúva Theophano e ficou no poder até ser assassinado em 969, em resultado de uma conspiração urdida pelo sobrinho João Tzimisces e por Theophano, que, entretanto, se tornara amante de Tzimisces. João Tzimisces foi corado imperador e reinou até 976, admitindo formalmente os filhos de Romano II, Basílio e Constantino, como co-imperadores – uma vez que Tzimisces não deixou filhos, Basílio II, então com 18 anos, teria direito ao trono, mas foram precisos 13 anos de guerra civil, envolvendo facções da casa imperial bizantina e generais poderosos, antes que Basílio II conseguisse afirmar definitivamente o seu poder. Seja como for, não passou a juventude no exílio nem foi pirata, como pretendem os libretos. Mostrar-se-ia, isso sim, um eficaz e implacável comandante militar, como atesta o seu cognome Bulgaroktonos – “matador de búlgaros”.
A nova versão de Ottone
Apesar da sua popularidade no tempo de Handel, de ter sido das primeiras óperas barrocas a regressar aos palcos no século XX – em 1921, em Göttingen – e de ter tido uma recuperação da versão original em Londres em 1971, Ottone não tem sido alvo de muitos registos. No início dos anos 90 surgiram, em rápida sucessão, as duas primeiras “interpretações historicamente informadas”, por Nicholas McGegan e pela Orquestra Barroca de Freiburg (uma gravação de 1992 editada pela Harmonia Mundi) e por Robert King e o King’s Consort (uma gravação de 1993 editada pela Hyperion), mas não voltou a surgir um novo registo de Ottone em quase um quarto de século.
É bom lembrar que Handel compôs Ottone por medida para as melhores vozes do seu tempo e que reunir cantores à altura de Senesino, Cuzzoni, Durastanti, Boschi e Berenstadt não é fácil. Mas foi isso que o maestro grego George Petrou – que nos habituámos a ouvir à frente da sua Armonia Atenea (ver Divas e castrati: Estas estrelas pop têm 300 anos e Arminio: O mau destino da ópera esquecida de Handel) – fez nesta gravação para a Decca com o contratenor alemão Max Emanuel Cencic (Ottone), a soprano americana Lauren Snouffer (Teofane), o baixo russo Pavel Kudinov (Emireno), a mezzosoprano alemã Ann Hallenberg (Gismonda), o contratenor espanhol Xavier Sabata (Adelberto), a mezzosoprano ucraniana Anna Starushkevych (Matilda) e a orquestra Il Pomo d’Oro.
Uma das árias mais belas da ópera é “Ritorna, o dolce amore”, em que Ottone, que acaba de ser informado por Matilda das manigâncias de Adelberto, exprime a sua inquietação pelos contratempos que retardam o seu encontro com Teofane – Max Emanuel Cencic faz dela uma leitura de extraordinária sensibilidade e delicadeza e no da capo (repetição da parte A) oferece uma requintada ornamentação.
[“Ritorna, o dolce amore”, por Max Emanuel Cencic (Ottone) e Il Pomo d’Oro, com direcção de George Petrou]
O II acto arranca com três árias de invulgar expressividade e delicadeza: em “Lascia, che nel su viso”, Adelberto, que, derrotado por Ottone, é levado em grilhões, mostra que não é um vilão unidimensional: a sua ambição levou-o a trair Matilda, mas no fundo continua apaixonado por ela. Em “Ah, tu non sai quant’il mio cor sospira”, Matilda revela também a sua complexidade psicológica, pois apesar de irada pela traição de Adelberto, a visão do seu amado acorrentado desperta nela a pena e só deseja poder vê-lo livre novamente.
Por fim, em “Vieni, o figlio”, Gismonda, que, momentos antes, recusara, indignada, a sugestão de Matilda para que suplicasse a Ottone perdão para o seu filho Adelberto (“Eu, suplicar a Ottone? Pequena presunçosa, não ouses voltar a propor algo tão indigno de mim. Antes quero ver morto o meu filho do que rebaixar-me a tão vil acto”), acaba por mostrar que sob a sua fachada dura e calculista bate um terno coração de mãe. Ann Hallenberg tem nesta ária um desempenho particularmente tocante.
[“Vieni, o figlio”, por Ann Hallenberg (Gismonda) e Il Pomo d’Oro, com direcção de George Petrou]
https://youtu.be/z-zS4fJ97RA
A ária que melhor exprime o lado negro de Gismonda é “Trema, tiranno”, no Acto III, quando ela vai ter com Ottone, expressamente para lhe anunciar a evasão do cárcere dos seus dois inimigos, Adelberto e Emireno, e regozijar-se, sadicamente, com o impacto que a notícia tem sobre Ottone. A interpretação de Il Pomo d’Oro é acutilante e Hallenberg transborda de ódio e fúria – é um dos momentos mais electrizantes do disco e de toda a ópera barroca.
[“Trema, tiranno”, por Ann Hallenberg (Gismonda) e Il Pomo d’Oro, com direcção de George Petrou]
https://youtu.be/cSh13lUTMAI
Todo o elenco vocal é superlativo, com destaque para a prestação de Pavel Kudinov (Emireno), em “Del minacciar del vento si ride quercia annosa” – Emireno foi feito prisioneiro por Ottone, mas mostra-se desafiador e orgulhoso e a sua atitude perante o infortúnio é como a do carvalho secular que se ri das ameaças do vento, a cujos incontáveis assaltos tem sabido resistir. Atitude similar perante Ottone tem o agrilhoado Adelberto em “Tu puoi straziarmi”: “Podes torturar-me, podes atormentar-me, mas nunca poderás abater o meu coração indomável” – e também Xavier Sabata tem aqui um momento brilhante.
Handel tinha um talento especial para compor duetos e “Notte cara”, que fecha o Acto II, comprova-o. Gismonda e Matilda, que orquestraram a evasão de Adelberto e Emireno, celebram a cobertura que lhes foi dada pela noite: “Cara noite, a ti se deve o triunfo destas duas almas. És bem-vinda e não podem passar sem ti as empresas do amor”.
[Dueto “Notte cara”, por Juliana Gondek (Gismonda) e Patricia Spence (Matilda) e a Orquestra Barroca de Freiburg, com direcção de Nicholas McGegan (Harmonia Mundi)]
Outro ponto alto deste Ottone é a ária “Tanti affani ho nel mio core”, no início do Acto III, quando Ottone, subjugado pelos infortúnios que se abatem sobre ele – a evasão dos seus inimigos, o desaparecimento da amada Teofane – diz que “São tantos os afãs no meu coração que a dor me tolhe a respiração”, ao que Handel corresponde fazendo as cordas suspenderem a sua respiração. Cencic mostra – nomeadamente na entrada sem acompanhamento no da capo – por que razão é considerado um dos expoentes da ópera barroca.
A fazer-se algum reparo ao desempenho vocal do Ottone dirigido por Petrou, está em “All’orror d’un duolo eterno”, uma ária em que Matilda dá largas à sua fúria por Ottone ter recusado o seu pedido de clemência para Adelberto (“Se o céu vingador me negar um relâmpago que te fulmine, das profundezas do inferno convocarei fúrias e monstros para te perseguir”). Anna Starushkevych limita-se a uma leitura de moderada carga emocional, quando a circunstância pediria ira desvairada (não é difícil imaginar o que Cecilia Bartoli faria com esta ária).
Nas várias reposições de Ottone, Handel foi fazendo ajustamentos de monta na partitura, alguns delas, como usual na ópera barroca, em função das capacidades de cada cantor. A edição em apreço, embora siga a versão da estreia, em 1723, oferece como bónus três árias de Ottone inseridas na reposição de 1726. Uma vez que estas três árias novas não decorreram de mudanças no elenco – o cantor do papel de Ottone em 1726 era Senesino, tal como em 1723 – há que atribuí-las ao irrequieto espírito criativo de Handel, sempre disponível para descobrir novas facetas nas personagens e a fornecer-lhes música adequada.