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Foi o mais duro golpe na liderança do Hamas. Esta quarta-feira de madrugada, o líder político do movimento terrorista Ismail Haniyeh foi morto na capital do Irão. Como quase sempre acontece com operações no exterior, Israel não reinvindicou o ataque mas é quase certo que o assassinato teve mão dos serviços secretos israelitas. Já esta quinta-feira, Telavive confirmou também a eliminação do líder militar do Hamas Mohammed Deif, morto num bombardeamento a Khan Younis, em meados de julho. Há pelo menos 20 anos que Telavive tenta ‘decapitar’ os líderes dos braços político e militar do Hamas, com sucesso limitado. Mas agora, com Haniyeh e com Mohammed Deif, mortos, terá o Hamas capacidade para continuar a resistir e prolongar a guerra na Faixa de Gaza?
As últimas 48 horas podem ter-se revelado determinantes para responder a essa pergunta. Na madrugada de quarta-feira, a residência em que se encontrava Ismail Haniyeh (o influente líder político do Hamas, exilado há anos no Qatar) foi alvo de um ataque em plena capital do Irão — inicialmente falava-se num míssil de longo alcance, havendo agora a informação de que se tratou de uma bomba detonada à distância. Nascido em 1963 no campo de refugiados de Shati, na Faixa de Gaza, Haniyeh era considerado um moderado no seio do movimento islamista, embora tenha defendido, em 2012, que a resistência do povo palestiniano deveria continuar por todas as formas possíveis: “popular, política, diplomática e militarmente”, lembra a Reuters.
Foi um dos principais impulsionadores da transformação do movimento militar em partido político, percebendo desde cedo a necessidade de legitimação do Hamas pelo voto popular. Em 2004, foi escolhido para integrar a liderança secreta do grupo e em 2006, um ano depois de os militares israelitas se terem retirado da Faixa de Gaza (depois de uma ocupação que durou 38 anos), tornou-se primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana, embora tenha ocupado o cargo durante pouco tempo. Divergências entre a Fatah, o histórico movimento de libertação da Palestina, e o Hamas ditaram o afastamento de Haniyeh — que voltaria ao ativo apenas em 2017, para assumir a liderança política do grupo, assegurada no exílio, desde 2004, por Khaled Meshal.
Israel tenta, há duas décadas, eliminar os líderes do Hamas
Foi nessa condição, de líder máximo do movimento, que se desdobrou em contactos diplomáticos nos últimos anos, nomeadamente junto da Turquia e do Irão (dois aliados do movimento e arqui-inimigos de Israel), com o objetivo de angariar financiamento e armamento para a resistência palestiniana.
O assassinato de Haniyeh foi apenas o último dos muitos levados a cabo por Israel este século. Em 20o2, um ataque aéreo israelita ao bairro de Al-Daraj, a leste da cidade de Gaza, matou 18 pessoas, entre elas então fundador das Brigadas Al-Qassam, as milícias armadas do Hamas, Salah Shehade, recorda o portal de notícias turco Anews. Em março de 2004, um outro ataque à cidade de Gaza matou Ahmad Yasin, fundador do Hamas e figura de destaque da Primeira Intifada palestiniana.
[Já saiu o primeiro episódio de “Um rei na boca do Inferno”, o novo podcast Plus do Observador que conta a história de como os nazis tinham um plano para raptar em Portugal, em julho de 1940, o rei inglês que abdicou do trono por amor.]
Numa fase em que o Hamas se encontrava sob fogo intenso das tropas israelitas, o sucessor de Yasin foi morto pouco depois. Em abril de 2004, o médico Abdel Aziz Al-Rantisi perdeu a vida num ataque aéreo. Até ao ano passado, destacam-se outras duas mortes de figuras importantes do grupo: a do líder militar das Brigadas Al-Qassam, Ahmad al-Jabari, em 2012, e a do líder político e militar Nizar Rayyan, em 2009.
Agora, tal como há duas décadas, Israel parece seguir a mesma estratégia: eliminar aos altos dirigentes do Hamas, de modo a retirar ao grupo terrorista a capacidade de organização, numa tentativa de destruir o grupo. Desde o dia 7 de outubro, quando o Hamas levou a cabo um ataque a Israel que fez cerca de 1200 mortos, que Telavive tem visado os mais altos responsáveis do Hamas.
Metade dos responsáveis da ala militar do Hamas terão sido mortos desde outubro
Logo a 31 de outubro, ao mesmo tempo que Israel dava início à operação militar terrestre na Faixa de Gaza, foi morto Ibrahim Biari, o comandante do batalhão de Jabaliya, na cidade de Gaza. Segundo o Wall Street Journal, o ataque aéreo, a uma zona densamente habitada, provocou mais de 120 mortos.
A 2 de janeiro, as forças armadas israelitas assassinaram um dos fundadores da ala militar do Hamas e considerado o principal interlocutor entre o Hamas e o Hezbollah — o grupo xiita libanês que tem atacado o norte de Israel. Próximo de Yahya Sinwar, o mais influente líder do Hamas ainda vivo, Saleh al-Arouri foi morto num ataque aéreo em Beirute, no Líbano, juntamente com outros dois comandantes do Hamas.
Em março, outra baixa de peso. Marwan Issa, vice-comandante da ala militar do Hamas em Gaza e um dos mentores dos ataques de 7 de outubro, foi morto num ataque das Forças de Defesa de Israel a um complexo de túneis sob o campo de refugiados de Nuseirat, no centro da Faixa de Gaza.
Faltava, contudo, eliminar o trio de topo do grupo: Ismail Haniyeh, o líder político; Mohammed Deif, o líder da ala militar; e Yahya Sinwar, líder do Hamas na Faixa de Gaza.
Em julho, o objetivo começava a desenhar-se, através de um bombardeamento levado a cabo pelas IDF contra os arredores da cidade de Khan Younis. No ataque, morreram 90 pessoas, entre eles Rafa Salama, o comandante em Khan Younis das Brigadas al-Qassam, e, confirmaram agora as IDF, também Mohammed Deif, líder do braço armado do Hamas em Gaza e considerado o autor moral dos ataques de 7 de outubro de 2023. Responsável máximo pelas brigadas do Hamas há mais de 20 anos, Deif era conhecido como “o gato de nove vidas”. Procurado por Israel desde 1995, acredita-se que tenha sobrevivido a pelo menos sete tentativas de assassinato, ainda que com mazelas. Teria perdido um olho, um pé e parte de um braço e dormia sempre num local diferente, de modo a escapar aos ataques israelitas, lembra a Deustche Welle.
????For the past 264 days, IDF ground, air and naval forces have been operating in Gaza in order to achieve the goal of eliminating the threat of Hamas.
Here is a summary of our operational activity so far:
????Eliminating half of the leadership of Hamas' military wing; including 6… pic.twitter.com/glr4cmous8
— Israel Defense Forces (@IDF) July 17, 2024
Inicialmente, Israel não tinha confirmado a morte, o que acabou por acontecer esta quinta-feira. Há duas semanas, as Forças de Defesa de Israel divulgavam na rede social X um balanço das operações de desmantelamento da capacidade militar do Hamas. Por essa altura, já tinham sido mortos metade dos mais altos líderes militares do grupo, incluindo seis comandantes de brigadas, 20 de batalhões e 150 comandantes de companhias.
Israel diz que Hamas se está a “desintegrar”, grupo promete continuar “a marcha da resistência”
Com a morte de Deif, estará Israel mais perto de “destruir o Hamas” (um dos principais objetivos da operação militar em Gaza, segundo reafirmado várias pelo primeiro-ministro Netanyahu), ou, como sempre aconteceu até agora, o Hamas continuará a resistir? Já esta quinta-feira, o ministro da defesa israelita publicou um fotografia no X em que se mostra, de novo, junto ao já célebre quadro onde vai assinalando os responsáveis militares do Hamas mortos por Telavive. Yoav Gallant congratulou-se com a morte de Mohammed Deif.
É um “marco significativo no processo de desmantelamento do Hamas como autoridade militar e governamental em Gaza”, escreveu o ministro israelita, sublinhando que a operação de 13 de julho, que conduziu à morte de Deif, reflete “o facto de o Hamas se estar a desintegrar”. “Os terroristas do Hamas podem render-se ou serão eliminados”, avisou Gallant, realçando que Israel “não descansará até essa missão estar cumprida”.
Muhammad Deif, the ‘Osama Bin Laden of Gaza,’ was eliminated on 13.07.24. This is a significant milestone in the process of dismantling Hamas as a military and governing authority in Gaza, and in the achievement of the goals of this war.
The operation was conducted precisely and… pic.twitter.com/WCgL5fBkEC
— יואב גלנט – Yoav Gallant (@yoavgallant) August 1, 2024
Também em reação à morte de Deif, o ministro da Finanças de Israel veio garantir que o colapso do Hamas está “mais perto do que nunca”. “Muitos milhares de terroristas, incluindo os mais graduados, foram eliminados e continuaremos a fazê-lo até os destruirmos a todos, restabelecermos a segurança e devolvermos as pessoas raptadas a casa”, escreveu Bezalel Smotrich na rede social X.
Neste momento, da cúpula da organização terrorista, apenas resiste Yahya Sinwar, o líder do Hamas na Faixa de Gaza. Sinwar, de 61 anos, nasceu no campo de refugiados de Khan Younis e aproximou-se desde cedo do fundador do Hamas, Ahmed Yassin. Assumiu o serviço de segurança interna do grupo, nos anos 80, e foi nesse cargo que perseguiu pessoas acusadas de colaborarem com Israel e palestinianos que praticavam aquilo que o grupo designava como “atividades imorais”, como a venda de material pornográfico e a homossexualidade.
Sinwar é o único da cúpula do Hamas que continua vivo, perfilam-se sucessores de Haniyeh
Preso por várias vezes em Israel, passou mais de 20 anos detido, tempo que aproveitou para se tornar fluente em hebraico, lembra o Globo. Em 1988, foi preso Sinwar por ter orquestrado o sequestro e o assassinato de dois soldados israelitas. Condenado por Israel, nesse mesmo ano, pelo assassinato de 12 palestinianos, recebeu quatro sentenças de prisão perpétua, que nunca chegou a cumprir, escreve a BBC. Seria libertado em 2011 na sequência de uma das maiores trocas de prisioneiros entre as duas partes. Uma avaliação do governo israelita sobre Sinwar durante o seu tempo na prisão descreveu o seu caráter como “cruel, autoritário, e com habilidades incomuns de resistência, astúcia e manipulação“. É, aliás, considerado um membro da ala mais radical do Hamas.
Depois de subir na hierarquia do grupo, foi nomeado líder do Hamas na Faixa de Gaza em 2017 e acredita-se que terá tentado enganar os responsáveis israelitas com uma aparente moderação do discurso. Logo em 2018, enviou mensagens, incluindo ao próprio primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, afirmando que estava cansado da guerra, e que seu objetivo era transformar Gaza numa sociedade funcional e pacífica. Um discurso que, como apontam alguns analistas, terá merecido credibilidade. O objetivo era convencer Telavive de que a prioridade para o Hamas era a melhoria das condições de vida da população (a atribuição de mais de 18 mil autorizações para que palestinianos pudessem trabalhar em Israel foi uma das conquistas de Sinwar), e não a luta armada — de que Sinwar sempre foi um acérrimo defensor.
Em 2018, Sinwar incentivou publicamente os palestinianos a romperem a cerca de fronteira que separa a Faixa de Gaza de Israel, numa altura em que se multiplicavam os protestos contra a decisão da administração norte-americana, liderado por Donald Trump, de mudar a localização da embaixada em Israel, de Telavive para Jerusalém. Considerado por Israel como “a face do mal”, Sinwar continua na liderança do grupo na Faixa de Gaza, agora mais isolado pelas mortes de Haniyeh e Deif.
Com a morte do número um do Hamas, o nome apontado para a sucessão é, como aponta a Reuters, o de Khaled Meshal, uma figura influente do grupo terrorista, que ficou conhecido por ter sobrevivido à celebre tentativa de assassinato levada a cabo pelos serviços secretos israelitas, em 1997, com recurso a veneno em Amã, a capital da Jordânia. Ficou em coma mas resistiu. Nascido perto da cidade de Ramallah, na Cisjordânia, Meshal já desempenhou as funções ocupadas até esta quarta-feira por Haniyeh: em 1996, tornou-se líder político do Hamas no exílio. Viveu no Kuwait, Jordânia, Qatar e Síria, até ser substituído por Haniyeh em 2017. Aos 68 anos, tem acumulada uma importante experiência diplomática.
Outro dos potenciais sucessores de Haniyeh é Khalil al-Hayya, um alto funcionário do Hamas e vice-líder militar em Gaza, que também vive no exílio, e também já foi um alvo de uma tentativa de assassinato por parte de Israel. Num comunicado, al-Hayya garantiu, esta quarta-feira, que o Hamas continuará a resistir. “O Hamas e o povo palestiniano não vão parar a marcha de resistência”, escreveu, citado pelo Jerusalem Post. “A resistência jura responder a essa agressão, e a entidade sionista merece pagar um preço alto por este crime”.
O jornal norte-americano New York Times refere ainda uma terceira hipótese: Mousa Abu Marzouk, membro da ala política do Hamas, e um dos fundadores do grupo terrorista. Com uma carreira feita no estrangeiro, entre os Emirados Árabes Unidos e os Estados Unidos, chegou a chefiar o departamento político do Hamas — sendo que foi acusado de ter financiado e organizado ataques terroristas em Israel. Marzouk chegou a estar preso em solo norte-americano durante quase dois anos e vive agora entre o Qatar e o Egito.