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IGOR MARTINS / OBSERVADOR

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Helena Freitas, diretora do Parque de Serralves: "Com a crise climática haverá mais gente deslocada e mais conflitos. É inevitável"

Professora universitária e diretora do Parque de Serralves, Helena Freitas fala das ameaças ao planeta, critica as políticas públicas e lança desafios que diz serem urgentes: "Temos de nos mobilizar".

Helena Freitas (n.1962) sabe do que fala. A diretora do Parque de Serralves é professora catedrática na área da Biodiversidade e Ecologia no departamento de Ciência da Vida da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra, é coordenadora da unidade de investigação Centre for Functional Ecology – science for people and the planet, é coordenadora científica do FitoLab – Laboratório de Fitossanidade do Instituto Pedro Nunes, em 2019, foi selecionada para o Mission Board for Climate Change Adaptation da Comissão Europeia, representa o país na Intergovernmental Platform for Biodiversity and Ecosystem Services da ONU, e, entre muitas outras provas dadas, coordenou a Unidade de Missão para a Valorização do Interior.

“Temos que gerar cumplicidades, temos que ser capazes de criar harmonia, temos que ser generosos e partilhar, colaborar. Esta é a mensagem central da natureza, da qual fazemos parte.” A conversa foi incisiva, a crise climática exige que mudemos a nossa maneira de pensar e de agir, troquemos de sistema económico, energético, governamental. E tem que ser depressa, diz-nos. Partindo da realidade em que o planeta se encontra, Helena Freitas analisa a economia atual e as escolhas políticas, para nos alertar para a urgência da mudança. É que a questão ambiental é tão só a questão central para a transformação do mundo, acredita.

Quando falamos de crise climática, falamos de quê?
Falamos de uma alteração muito significativa do sistema climático planetário na qual percebemos que há uma tendência crescente para uma acumulação de gases com efeito de estufa que conduzem depois a um aumento da temperatura média do planeta. Esse aumento é registável e visível e tem sido de tal forma progressivo e impactante que condiciona os sistemas vivos de uma forma geral. Isto resulta de uma economia de base a partir da energia que escolhemos e que utiliza combustíveis fósseis. A ciência e a comunidade científica há várias décadas que vêm alertando para a necessidade de reduzirmos esta acumulação de gases. Esta situação de alteração da temperatura média do ar e de alteração dos regimes hídricos provoca os eventos extremos e a instabilidade do sistema climático, refletindo-se concretamente em algumas alterações como inundações, tempestades, incêndios, subida do nível médio das águas do mar… A Ciência hoje tem capacidade para dizer com segurança, e cada vez mais com maior segurança e robustez, porque há modelos cada vez mais confiáveis, que hoje temos uma janela de oportunidade muito curta para alterar este estado de coisas e que, mesmo alterando o paradigma energético, ainda assim, não vamos conseguir neste século estabilizar o sistema climático.

Desmobilizamos?
Não. Isto deve mobilizar-nos e não nos deve fazer desistir. Se não nos mobilizarmos o problema será cada vez mais grave. Os cenários que temos já são graves. Já estamos muito próximos do 1,5º C acima da temperatura média da Terra. Se ultrapassarmos este número, entraremos noutros cenários ainda mais graves. Os eventos que diretamente afetam as comunidades humanas estamos a percebê-los quando temos cheias ou inundações nas cidades; quando temos secas profundas e permanentes em contextos geográficos em que a pobreza abunda e onde há comunidades humanas muito vulneráveis, e que afetam também diretamente a produção alimentar; quando deixamos de ter acesso a água potável, porque deixamos de ter um regime hídrico favorável, e já estamos até a esgotar os nossos aquíferos, e já estamos a usar o que não devíamos usar, as nossas reservas de água; quando estamos a ter que deslocalizar comunidades inteiras de ilhas que estão a desaparecer. Isto tudo está a acontecer. A verdade é que a nossa perceção da realidade depende muito do nível de exposição que temos. Evidentemente, que se eu continuar a ter acesso a comida no supermercado e a água na torneira, não tenho o mesmo nível de perceção da gravidade do que aqueles a quem já lhes falta comida ou água. Há geografias e países que têm capacidade para começar a preparar mecanismos de adaptação a esta nova realidade que a grande maioria não tem.

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"A questão ambiental é a questão central para a transformação do mundo e para conseguirmos fazer um caminho alternativo com uma economia alternativa"

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

Daí que se possa considerar a crise climática como a maior ameaça aos direitos humanos?
Absolutamente. Não temos dúvidas de que os impactos são particularmente sentidos pelas comunidades mais vulneráveis, que tenderão a emigrar para arranjar soluções. Com a crise climática haverá mais gente deslocada e mais conflitos. É inevitável. Temos que criar algum contraditório e criar mecanismos de apoio. Percebemos que a vulnerabilidade é cada vez maior, as assimetrias estão a acentuar-se progressivamente e não estamos a ter capacidade de resposta. Pelo contrário. Estamos também num tempo em que as sociedades se estão a fechar por razões diversas. É de facto uma situação de grande tensão e complexidade. A questão ambiental é a questão central para a transformação do mundo e para conseguirmos fazer um caminho alternativo com uma economia alternativa.

Porque é que escolhemos os combustíveis fósseis quando se deu a Revolução Industrial?
A energia sempre foi uma questão central no progresso humano. E é preciso olharmos para a vida na cronologia planetária. A vida acontece no planeta há 3 mil milhões de anos, as árvores aparecem há 400 milhões de anos, nós só surgimos há 200 ou 300 mil anos, enquanto homo sapiens e enquanto espécie humana. O nosso registo planetário é muito recente. E, quando aparecemos e conseguimos ter um registo cognitivo que nos permite manipular objetos e perceber que é possível transformar e transformar a tal ponto que deixámos de ser caçadores recoletores para passarmos nós próprios a produzir os alimentos, fomos construindo soluções que nos permitiram aproveitar aquilo que surgia como disponível. A Revolução Industrial é um momento da nossa história em que a produção alimentar é crítica, a mobilidade começa a ser percebida como instrumental para conseguirmos um desenvolvimento comparativamente mais forte.

Descobrimos um mundo novo…
Sim. As comunidades humanas foram sempre desenvolvendo soluções para conseguirem ir mais longe. Essa aspiração é qualquer coisa de intrinsecamente humano.

Teremos de arranjar outros caminhos?
Na Idade Média, e durante muito tempo, tínhamos uma relação de respeito pela Terra, pelo Sol. Não dávamos por adquirido que o tempo ia ser assim e portanto tínhamos reservas alimentares. Tínhamos quase uma relação espiritual. Sentíamos que a Terra mandava em nós, e não nós a mandar na Terra, dependíamos dela. Era imprevisível. Não sabíamos se amanhã chovia. A alimentação foi sempre central. Tivemos sempre que assegurar a nossa sobrevivência. Mas, a partir do século XX, quando começámos a manipular de uma forma cada vez mais capacitada e eficaz a alimentação, isso permitiu-nos equacionar também um novo mundo.

Deixámos para trás a Terra?
Achámos que somos capazes de desligar da natureza e desse papel condicionante que ela tem até certo ponto. A partir de certa altura, somos nós que dominamos a Terra com a tecnologia. De facto, dá-se um desligamento perigoso, que a Ciência de alguma maneira também ajuda e facilita. Quando a Ciência nos posiciona no topo do vértice de uma pirâmide evolutiva, atingimos o patamar máximo de um processo evolutivo. É um erro brutal. Este desligamento leva-nos a confiar que é sempre possível encontrar soluções. E isso até certo ponto não é falso e é até positivo, tenhamos sempre a esperança de que consigamos arranjar soluções.

“Dependemos de estruturas de governança global que ainda estão muito reféns de economias que nos estão a matar e a destruir, de corporações de poderes e de forças de uma economia que já percebemos que não tem futuro.”

Nem que seja artificialmente.
Exato. E é aqui que entra a crise climática e também agora a pandemia, que nos confrontou com a nossa vulnerabilidade. Porque tendemos a esquecer essa nossa biologia, esquecemos que somos seres vivos expostos a um quadro de suscetibilidade que é absolutamente equivalente a qualquer outra espécie. 90% do ADN que tenho em mim não é meu, é de outras espécies que coexistem comigo e que são indispensáveis ao meu equilíbrio.

Nunca pensamos nisso.
Mas hoje, quando a nova medicina percebe que é preciso olhar para o microbioma e para o equilíbrio do microbioma e que por isso a nossa alimentação deve refletir uma avaliação mais holística da nossa saúde, tudo o resto tem que ser recuperado.

Estamos a pôr mais coisas em causa, nomeadamente a nossa alimentação?
Claro. As pessoas voltam a ter noção de que estamos interconectados e verdadeiramente interligados. Eu sou uma espécie, sou parte de um portefólio muito grande de milhões e milhões de organismos que existem e que são indispensáveis ao funcionamento da vida.

Esse paradigma ainda não está assente.
Esta transição ainda não foi feita. Percebemos que somos parte, mas é uma parte que ainda assim coordena, que ainda manda, que dispensa, ainda achamos que podemos dispensar o outro, seja ele qual for. Esse salto ainda não o demos e é isso que não nos permite fazer a transição para uma civilização ecológica.

Falamos da transição energética, que inclui até a alimentação, há imenso tempo, mas há sempre algum entrave, as metas parece que se podem sempre adiar…
E com custos que infelizmente não conseguimos perceber. Mas isso obriga-nos a estar cada vez mais confinados e mais limitados na nossa própria existência, mais fechados e incapazes de olhar o outro e de gerar as cumplicidades de que precisamos para a transformação e para a nossa própria harmonia coletiva.

Há uma geração mais nova que está mais alerta?
Vamos ter que estar. A situação que temos no planeta é, de facto, grave. Não vai haver forma de a escamotear ou esconder. Os cenários que temos impõem-nos uma alteração profunda da nossa vida e da relação com a natureza. Temos que recuperar o essencial, e o essencial, a meu ver, é sermos capazes de regenerar a relação com a natureza. A regeneração que formos capazes de fazer com a natureza é a nossa própria regeneração. Enquanto espécie também atingimos um nível de desequilíbrio que é insustentável. Não podemos, de facto, viver uns sem os outros. Temos que gerar cumplicidade, temos que ser capazes de criar harmonia, temos que ser generosos e partilhar, colaborar. Esta é a mensagem central da natureza, da qual fazemos parte.

Mas estamos a viver num sistema económico que nos diz o contrário?
Completamente. E não há dúvida que isto é um desafio tremendo. Dependemos de estruturas de governança global que ainda estão muito reféns de economias que nos estão a matar e a destruir, de corporações de poderes e de forças de uma economia que já percebemos que não tem futuro. E o que é grave é que estamos reféns de facto de entidades que estão vinculadas ao passado e que não nos apontam caminhos de futuro.

O primeiro passo é mesmo a transição energética?
É, porque ela está na base de uma transformação que, desde logo, nos retira dessa condição de reféns de uma história passada que já não fará o futuro.

O nosso medo será não conseguirmos ter energia suficiente, a velocidade que queremos?
Penso que somos tremendamente condicionados pelas narrativas que dominam e que nos dizem para termos cuidado com a mudança. Em grande parte, os conflitos a que estamos a assistir são conflitos que resultam da construção dessas narrativas. Elas vão prevalecer e vão continuar a condicionar-nos.

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"Não é só o sistema climático que está a ficar desequilibrado, estamos a destruir a natureza, estamos a dar cabo da biodiversidade. É fundamental percebermos que a natureza precisa de nós"

Anadolu via Getty Images

E como chegar à mudança se não temos essa consciência a nível cultural, a nível educacional? As políticas tardam…
Temos que perceber que estas situações a que estamos a assistir, situações de conflitos onde há diferentes poderes que nos condicionam as próprias escolhas, não são estanques. Devemos olhar para a comunidade científica que nos tem tentado ajudar. Temos que ter referências na nossa sociedade. A comunidade científica, apesar de também transgredir, tem uma missão muito forte, que é uma missão de responsabilidade social, a de responder responsavelmente às necessidades da humanidade. Esse trabalho está a acontecer. Há décadas que tem havido uma intensificação de todas as ciências. Todas as ciências estão hoje a trabalhar ativamente pela transição ecológica. Todas. Não há Ciência que esteja de fora deste desígnio. Este caminho é inevitável. Estamos a destruir o planeta.

O clima não é a”apenas” o clima.
Não é só o sistema climático que está a ficar desequilibrado, estamos a destruir a natureza, estamos a dar cabo da biodiversidade. É fundamental percebermos que a natureza precisa de nós. Para garantir a sustentabilidade e a continuidade dos sistemas vivos precisamos da natureza. Não vamos conseguir ter estes níveis de produção se continuarmos a destruir formas de vida como as dos insetos, por exemplo. As árvores também estão a morrer, cada vez mais suscetíveis à doença. Estamos a dar cabo das florestas tropicais de uma forma absolutamente obscena para dar resposta a um sistema alimentar que ainda é mais perverso. Estamos nas mãos de corporações que nos dirigiram nas opções alimentares sobretudo a partir da II Grande Guerra. Estas corporações não estão a trabalhar para nós, estão a trabalhar para elas. Deixámos de consumir uma série de produtos, produtos regionais, locais, deixámos de patrocinar até um tipo de agricultura mais amiga da nossa saúde. Entregámo-nos à força dessas narrativas que são poderosíssimas.

Com que consequências?
Temos uma grande parte do mundo a gastar fortunas a corrigir doenças que resultam de uma alimentação deficiente, que nos faz mal, que gera problemas de obesidade, problemas inequivocamente relacionados com a acumulação de químicos nos solos. E estamos a ser cada vez mais incapazes de chegar, apesar da produção excedente, a outra metade do planeta. A Europa dá-se ao luxo de desperdiçar um terço daquilo que produz! Desligámo-nos das relações de cumplicidade que são indispensáveis. Isto não faz sentido nenhum. Alguém acredita que é possível continuarmos a produzir com esta contaminação dos solos que estamos a ter e com esta contaminação das águas? E com as consequências desumanas que isto implica. É possível ter trabalhadores em condições miseráveis como acontece em Portugal a produzir alimento para alguns? Isto é obsceno! Isto não é uma economia que interesse à humanidade. A transição ecológica é uma regeneração coletiva que começa pela relação que temos com a natureza.

Como é que um país que tem os problemas que tem na saúde, na educação, na justiça, na habitação, consegue ter como prioridade a regeneração ecológica ou o ambiente? Como é que as pessoas tomam consciência disto?
Isto tudo faz parte. Não pensemos que pode ser compartimentado, agora a saúde, depois a habitação… A Política Pública é que tem que ter este entendimento. Não podemos pensar que resolvemos os problemas sectoriais da Política Pública se continuarmos prisioneiros daquilo que nos vendem como solução. Isso é que está profundamente errado. É evidente que a primeira orientação de uma agenda de Política Pública são as pessoas. Mas se são as pessoas, então tenho que pensar a saúde em função das pessoas e não dos interesses. Então vou ver que capacidade tenho para dar respostas respeitando as pessoas. Trata-se de um princípio de base que muitas vezes desaparece. Deve ser assim também na abordagem à agricultura. Eu não quero liquidar a agricultura de exportação. Mas a própria agricultura tem que estar, e sabe que tem que estar, permeável e capaz de incorporar aquilo que são as novas soluções e que permitem de facto fazer diferente. Isso é que tem que ser a prioridade e os incentivos têm que ir para aí. Terá de haver uma agenda de transição para todas estas áreas sectoriais que são vitais para o país, mas temos que ter a visão. E a visão passa por termos presentes os objetivos 2050. Eles são importantes não para termos uma bonita cartografia, mas para nos apontarem um caminho que está certo. Ainda hoje vejo muita gente a falar da Agenda 2030 como se fosse daqui a 40 anos! Temos que fazer o caminho mesmo, o de acabar com a fome, o de universalizar o acesso à educação… Têm que ser objetivos que nos tornam cúmplices globalmente.

“O mundo está de facto envolto numa teia nublosa de interesses que nos condiciona todos os dias para que não façamos aqui uma evolução. Temos que ser capazes de gerar incentivos para uma produção que queremos que seja, no curto, médio ou longo prazos sustentável.”

Mas vamos sempre adiando os objetivos.
Vamos sempre ser confrontados com situações em que temos que fazer escolhas. Em Portugal, a escolha concreta entre o montado de sobro, por exemplo, e a instalação de um conjunto de painéis fotovoltaicos. É evidente que este tipo de conflitos vão acontecer. Queremos fazer a transição energética, queremos que o país atinja 80% de energia renovável até ao final desta década, um objetivo muito nobre e muito interessante. Não vejo problema que o objetivo esteja lá e que trabalhemos em função dele. Mas é importante que percebamos, antes de mais, qual é o zonamento que o país tem para a instalação das renováveis e dos fotovoltaicos. Se quiser fazer uma escolha, tenho que poder fazer uma escolha fundamentada. Tenho que saber por que é que ponho aqui e por que é que ali não devo pôr. Se tenho soluções que condenam menos ou põem menos em causa recursos naturais, se tenho zonas mais ajustadas, por exemplo, a agroflorestas que me permitam fazer a transição do nosso sistema florestal… As políticas públicas têm que ser informadas do melhor conhecimento que hoje temos.

E há muito trabalho a fazer nesse campo?
Se tivermos transparência… Não tenho dúvidas que as assimetrias que temos são insustentáveis e altamente penalizadoras. Isso sim, põe em causa o nosso PIB. Se desperdiçamos 70 ou 80% do território, estamos a permitir uma fragmentação inaceitável. Isso não interessa e temos que ter capacidade para olhar para isto. O problema sistemático do nosso quadro de Política Pública é estarmos permanentemente agarrados por outro tipo de interesses. E estamos, não há dúvida de que estamos.

Temos em cima da mesa o Ministério do Ambiente, o Ministério das Infraestruturas, os recursos naturais e os grandes investimentos. O que fazemos?
E vamos tê-los cada vez mais em cima da mesa. As matérias ambientais vão ser cada vez mais objeto de conflitos designadamente na Europa, mas no mundo inteiro. Vamos ter cada vez mais isto a acontecer em África, na América Latina. A destruição da Amazónia é um atentado, mais uma vez obsceno, protagonizado por algumas pessoas que estão a enriquecer brutalmente à custa disto. Temos que nos interrogar sobre isto também na Europa. Dois terços da carne que consumimos vem do que está a acontecer na Amazónia. Temos que saber o que é que acontece à nossa produção, saber o que acontece aos nossos sistemas agropecuários. Se calhar também era bom percebermos o que está a acontecer à nossa produção, para onde estamos a exportá-la e porquê.

E estamos a exportá-la para onde?
Se for ver, é capaz de ficar surpreendida com a quantidade de carne que é exportada para a China e com a quantidade de aditivos e fertilizantes que estamos a receber da Rússia ou da Ucrânia. O mundo está de facto envolto numa teia nublosa de interesses que nos condiciona todos os dias para que não façamos aqui uma evolução. Temos que ser capazes de gerar incentivos para uma produção que queremos que seja, no curto, médio ou longo prazos sustentável. Se quero assegurar uma soberania alimentar, ela passa seguramente também por produzir cá. E as pessoas querem essa produção. Não vamos todos virar agricultores, mas se calhar não tinha mal nenhum se começássemos todos a produzir qualquer coisa em casa. Quando tenho um conjunto de vasos em casa e até produzo algumas das minhas ervas aromáticas, isso não faz de mim agricultora, se tiver no pátio do meu condomínio uma terrinha e entre nós conseguirmos produzir alguma coisa, isto não é nenhum retrocesso, antes pelo contrário, isto gera cumplicidades, gera uma relação, que é muito importante, entre a produção alimentar e o consumo. Precisamos disso e queremos isso. A humanidade será muito mais feliz e será também capaz de encontrar os caminhos da paz. As questões ambientais hoje são questões de paz. Como é possível haver um conjunto de cidadãos no mundo que nem têm vida para gastar o dinheiro que têm? Isto é uma economia justa? Faz sentido? Ideologicamente, considero-me uma social-democrata de inspiração mais nórdica, acho que é essencial garantirmos a todos as condições mínimas de habitação, emprego, saúde. E se o Estado não existe para isto, não vale a pena. E fazer esta transição não é só um imperativo ambiental, é um imperativo ético.

"Temos uma administração antiquada, um primeiro-ministro ajudado por ministérios sectoriais. O tempo não pede isto. O tempo pede mais intercomunicação."

IGOR MARTINS / OBSERVADOR

É isso que nos está a faltar, esquecemo-nos até do outro?
Estamos todos interconectados. Isto é a primeira mensagem da biologia. As árvores quando ocuparam o sistema terrestre não vieram sozinhas. Tiveram êxito porque tinham fungos. Escolheram os fungos e com os fungos ocuparam a Terra. E têm hoje um embrião que é o embrião mais extraordinário do mundo. Desenvolveram-no em milhões e milhões de anos. Estamos a matá-las hoje. Precisamos delas, bem como dos fungos que vieram com elas e que as ajudaram, entre outras coisas, a combaterem a doença.

Não estamos mesmo a ver-nos como parte disso.
Pois não. Mas somos. E somos quando aparece uma pandemia. Vamos ter muitas outras. Quando destruímos a floresta tropical também estamos a destruir hospedeiros de muitas destas formas de vida. Ainda por cima, a vida oferece-nos soluções. A maior parte das soluções terapêuticas que hoje a grande Ciência tem, são inspiradas na natureza.

Olhando para Portugal e para o momento atual, o lítio e o hidrogénio são recursos sólidos que temos. Vale a pena investirmos para os explorarmos? Demora muito tempo?
Esse é um dos grandes problemas da agenda da Política Pública, sobretudo quando ela é frágil, como é o nosso caso. Temos uma administração antiquada, um primeiro-ministro ajudado por ministérios sectoriais. O tempo não pede isto. O tempo pede mais intercomunicação. Por exemplo, em Portugal, a política agrícola nunca esteve a trabalhar diretamente com a política ambiental. Quando estamos a falar da seca, por exemplo, vemos um dos ministros a falar das barragens e o outro, no dia seguinte, a falar dos subsídios que vai dar. Isto não são soluções. Isto são remédios, terapêuticas de curto prazo, no imediato, e nós precisamos de mais do que isso. Há uma exigência à agenda política que também percebo que não seja fácil. Porque também é preciso que tenhamos interlocutores e protagonistas, equipas. E isto coloca alguma pressão sobre o poder decisório e o poder executivo. Agora chovem três anos de financiamentos a uma escala que nunca tivemos…

O Plano de Recuperação e Resiliência…
E é preciso rapidamente criar soluções e mecanismos céleres e relativamente justos de investir. A preocupação do Governo há de ser executar, executar, executar e recorre às soluções que tem. Reconheço que não é um desafio fácil. Mas vamos ter que ter um outro tipo de governação. Portugal não é um país muito rico em recursos naturais, mas também não deixa de ser. Ainda assim, estamos num quadro europeu, com uma agenda importante que ainda continua a apontar caminhos convergentes.

Mas teremos que pensar economicamente de outra maneira.
Exatamente. A agenda europeia é uma agenda disruptiva, de futuro e que nos pretende trazer e levar para a dita civilização ecológica, capaz de funcionar num respeito maior pela natureza, e que com ela traz um conjunto de programas que vão da agricultura à energia ou à indústria. Mas os países têm que configurar a sua estratégia nacional. Temos o objetivo de acabar com 50% dos aditivos químicos nesta década, mas nem sequer temos monotorização, nada disto é público. O que é absolutamente estratégico é começarmos a colocar os incentivos nesta convergência. Temos este caminho coletivo a fazer e os incentivos têm que ir para aí, designadamente na política agrícola, no caso português, temos mesmo que colocar incentivos nesta nova agricultura com o objetivo da sustentabilidade do sistema agrícola.

“Estamos a ser profundamente enganados. E já nem é só a questão do Estado. Estamos a ser enganados por um conjunto de players à escala universal que estão a mandar nisto tudo e em todas as áreas. É uma pena. São interesses que se revelam completamente desligados de saber se estamos em Boticas ou em Serralves.”

E quanto ao lítio e ao hidrogénio?
O hidrogénio faz parte de uma iniciativa europeia que procura soluções. O hidrogénio não é uma panaceia, surge num portefólio possível de soluções que ainda terá um grande caminho a fazer, mas que nos permite, pelo menos, acreditar que o caminho é possível. Sendo certo que o hidrogénio verde ainda é um cenário com um horizonte muito longínquo. Não vamos ter hidrogénio amanhã. Houve o fecho do Governo em torno desta solução e não sabemos se houve preferências ou não naquilo que devia ser um processo aberto. Isto prejudica a política pública naquilo que ela implica de decisão. Temos que ter mecanismos instalados que nos permitam perceber quais são os interesses e decidir também com as comunidades. Não é possível de outra forma. Não podemos pensar que somos iluminados, até porque não há iluminados, há soluções neste caminho de transição. E há um princípio de base: só posso fazer escolhas se tiver informação que me permita fundamentar a minha escolha. O que está a acontecer não é sério. Não podem dizer que a escolha é entre a instalação de uma fotovoltaica que vai alimentar uma instalação industrial e com isso estou disponível para acabar com dois, três, quatro mil sobreiros que alimentam uma indústria, alimentam a biodiversidade e correspondem à vontade e ao gosto das comunidades que ali estão inseridas. O benefício que vou ter tem que ser explicado, em comunidade. O papel do Estado é dizer porque é que os portugueses devem seguir aquele caminho.

Em que é que se fundamenta a escolha?
Repito, vamos ter crescentes conflitualidades em questões de matéria ambiental e não é só por causa do clima. É sobretudo pela natureza e pelos recursos naturais. A natureza é o grande ativo deste século. Focando-me agora no hidrogénio. Ele está num horizonte longínquo, Portugal quis fazer uma aposta estratégica que pode ser só uma bandeira que nos vai conduzir a outros caminhos. Mas fico com alguma suspeita quando vejo que o interesse vem de fundos norte-americanos, porque bem sei que temos na Europa países que são muito mais competitivos e que podem muito mais facilmente liderar este dossiê. Acho que podemos eventualmente liderar outros dossiês, onde somos mais capazes e onde fazemos a diferença. Porque é que não lideramos uma agenda agroecológica? Temos uma diversidade notável de espécies autóctones, temos contextos, habitats, 50% da nossa produção agrícola ainda vem da agricultura familiar, porque é que não acarinhamos a agricultura familiar? Porque é que não damos incentivos às pessoas que ainda têm, mesmo que em regime complementar de rendimento, a agricultura familiar? Porque é que damos incentivos ao olival intensivo a sul e estamos a condenar o olival tradicional a norte? Não pode ser.

E em relação ao lítio, o que devemos esperar?
O lítio serve o interesse de uma indústria também muito poderosa, que é a produção de baterias. Somos uma fração muito pequenina, inferior a 5% daquilo que pode ser a produção europeia. E há aqui vários argumentos. Vamos retirar o minério que tem alguns anos de vida e que está a ser necessário no curto prazo, mas sabemos que ele não vai ser necessário no futuro. Já sabemos que a Ciência está a trabalhar outras soluções para o armazenamento de energia. Aquilo que agora parece ser a solução mais capaz de dar resposta imediata, tem sido o lítio, mas não há indústria nenhuma que queira ficar na mão de um minério que só existe nalguns países e que se esgota. Vamos explorar o minério para depois outros acabarem o seu processamento, que é onde está grande parte do ganho, ou vamos alimentar uma indústria europeia ou mesmo não europeia através do fornecimento apenas do minério? Temos de facto o minério, um ativo, que vai entrar numa indústria que neste momento está ávida de o ter, mas vamos desconstruir uma paisagem, um contexto que neste momento ainda é vital e corremos realmente o risco que deixe de ser? A indústria da mineração também está só hoje a perceber que tem de trabalhar de forma diferente. Porque tipicamente a indústria da mineração deixava as escombreiras a céu aberto, contaminava as águas…

São narrativas fechadas e muito enganadoras…
Estamos a ser profundamente enganados. E já nem é só a questão do Estado. Estamos a ser enganados por um conjunto de players à escala universal que estão a mandar nisto tudo e em todas as áreas. É uma pena. São interesses que se revelam completamente desligados de saber se estamos em Boticas ou em Serralves. Eles querem lá saber de quem lá vive.

Mas nem o planeta é uma questão para eles.
A questão é que temos que ter respeito pelas pessoas, respeito por um legado, o respeito pela memória dessas pessoas. Isto hoje tem que nos interpelar. O Estado tem que começar a perceber isto e a respeitar a escolha das pessoas, que pode não ser a dele.

Não virá o Estado, e todo o seu poder consolidado, a ser ultrapassado por este novo paradigma?
Com certeza. Há aqui uma incompatibilidade crescente. Há tempos diferentes. Há tempos que estão a acontecer e que o próprio poder não percebe. Há ruturas em curso que vão crescer. Era muito importante que a nossa democracia tivesse capacidade para incorporar outras formas de governança. Precisávamos de ter modelos de governança mais ajustados a estas novas realidades.

Precisávamos de não ter medo e de ter informação?
Sim, continuamos a ser condicionados nas escolhas e a colocar dinheiros públicos em opções completamente erradas. O que me entusiasma são os jovens que vejo que estão a querer um caminho alternativo. A força da natureza está na colaboração, está na sua capacidade de dialogar. Nada nos aproxima mais da nossa condição humana do que a natureza.

[Matéria de Risco é uma rubrica de entrevistas com personalidades e agentes culturais sobre arte, sociedade e atualidade]

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