Há imagens que se tornaram icónicas pelas mais diferentes razões. Pelo momento histórico em que foram criadas ou expostas, outras precisamente por aquilo que mostram, tornando-se inesquecíveis. Cinco mulheres nuas, em fotografias de grande escala – a chamada série Big Nudes, de Helmut Newton – fazem parte deste grupo restrito de imagens que pairam num imaginário coletivo. Mas no caso deste fotógrafo germano-australiano, estas são apenas algumas das fotografias que fizeram dele um nome incontornável nas últimas décadas.
Inevitavelmente, voltamos a este universo de imagens, polémicas e provocadoras, com a sensação premente de que são produto de uma época, mas também de uma rutura com diversos tabus. E é também com esse olhar que entramos em Helmut Newton – Fact & Fiction, a grande exposição retrospetiva da Fundação Marta Ortega Pérez (Fundación MOP), patente na Corunha, em Espanha, dedicada à vida e obra do lendário artista, que pode ser visitada até maio do próximo ano.
Não há espaço nem luz para preconceitos ou estereótipos. É no escuro e por entres sombras que se desvenda um universo fotográfico sem precedentes, onde a moda e a arte se cruzam num corpo comum e inquebrável. Além da série Big Nudes, estão expostas mais de uma centena de fotografias que revelam diferentes períodos (e ideias) da carreira de Helmut Newton – dos anos 60 até ao princípio do novo milénio. Em cruzamento com as famosas mulheres nuas, inspiradas nos retratos dos polícias que conseguirem deter o grupo Grupo Baader-Meinhof, um conjunto de quatro mulheres em pose de desfile surgem à esquerda vestidas e à direita nuas, na mesma posição. Sie Kommen (Dressed) e Sie Kommen (Naked) – numa tradução livre, ‘elas estão a chegar’, ‘vestidas’ ou ‘nuas’ – são duas impressionantes fotografias em diálogo entre si e mais uma achega dessa obra que deixou um legado controverso. Mas há mais.
Ao longo das diversas salas do Muelle de Batería, o antigo complexo industrial agora adaptado para receber esta exposição, ecoam nomes de diversos designers de moda como Yves Saint Laurent ou Karl Lagerfeld ou ainda personalidade icónicas como Grace Jones ou Naomi Campbell. Paira, sobretudo, o signo e a marca de Newton, fotógrafo tantas vezes odiado quanto celebrado. “Podemos olhar para qualquer imagem e dizer: ‘Isto é uma fotografia do Helmut Newton’. Não há muitos fotógrafos sobre os quais se possa dizer isto”: as palavras de Anna Wintour, mítica editora da revista Vogue, presentes no documentário Helmut Newton: The Bad and the Beautiful (2020), abreviam caminho para se falar do legado que aqui se expõe. Newton foi um prolífico criador de imagens a cores e a preto e branco.
São trabalho de um genuíno visionário que continua a ter uma grande influência na fotografia contemporânea e nas artes visuais. A retrospetiva é a terceira apresentada pela Fundação MOP seguindo-se à exposição de Peter Lindbergh e Steven Meisel. Helmut Newton – Fact & Fiction trata-se de um projeto impulsionado pela estreita colaboração entre a Fundação Helmut Newton, que tem como comissários Philippe Garner, Matthias Harder e Tim Jefferies que idealizaram uma exposição à medida do espaço da Fundação MOP, no porto da Corunha, concebido por Elsa Urquijo Arquitectos.
Quem tem medo de Helmut Newton?
Tudo começa na fotografia de pequena dimensão. Antes mesmo de se entrar no edifício onde reside a maioria da exposição, um conjunto de polaroids a cores revelam o seu ímpeto criativo. As mulheres, o ambiente solarengo e veranil, mas também o olhar do observador, masculino ou não, já refletem a temática dominante. Chegados ao edifício principal, um conjunto de vídeos trabalha no contexto sobre a carreira de Newton, com testemunhos do próprio, mas também das muitas personalidades e modelos com quem trabalhou. Entre recortes de jornais, capas de revista e alguns adereços, é uma foto do próprio Newton, respaldado num cadeirão, que faz a antevisão para a viagem que ali começa. Estamos de facto no seu próprio mundo. Há holofotes e vários focos de luz que nos conduzem. O artista – cujo centenário se comemorou em 2020 – diria simplesmente ‘ação’ para que o filme pudesse ser então projetado.
Ao Observador, o curador Matthias Harder explica que estamos perante uma retrospetiva singular que mostra as diferentes facetas de Newton. “Em diferentes épocas, ele foi vanguardista e um verdadeiro partisan da fotografia”, realça. “Rompeu com os dogmas estabelecidos na própria fotografia e no mundo da moda estabeleceu um outro modo de ver” – por vezes próximo da escopofilia e fetichista, mas sempre artístico. Há um lado de enfant terrible e Helmut Newton chegou a ser rotulado como king of kink, mas subiste uma característica iminente a todas as suas fotografias, que não se deve esquecer: o olhar de um radical, de um artista que de forma provocadora procurou estourar com as convenções que o mundo da moda e da fotografia carregavam até então.
Voltamos à exposição. Há salas onde se revelam fotos inspiradas em filmes de Hitchcock, outras com paisagens imensas e naturezas mortas fotografadas de forma irrepreensível, ecos de industrialização no mundo em constante mudança e retratos de figuras como Andy Warhol, David Bowie, Margaret Thatcher e Charlotte Rampling. O universo da moda nunca deixa de estar presente. A famosa fotografia “Rue Abriot”, de 1975, onde uma modelo feminina, Vibeke Knudsen, surge de cabelo curto, vestido com um fato feito por Yves Saint Laurent é exemplo disso. Não só constitui a primeira aparição de uma foto de Newton na edição francesa da Vogue, como o tornaria num dos fotógrafos sensação daquela época. Entre outros exemplos de fotos marcantes, está a fotografia de Elsa Peretti, como bunny vestida por Halston, no meio dos grandes arranha-céus de Nova Iorque, bem como uma fotografia de Newton inspirada num quadro de Diego Velásquez. O seu trabalho é multireferencial.
Ao longo das diferentes épocas que surgem representadas, não deixam de constar corpos vívidos que nos oferecem um verdadeiro espetáculo visual que é igualmente cénico. Nas suas fotografias, os corpos ocupam um palco de forma performática e teatral, onde a realidade se mistura com a ficção. Helmut Newton era metódico. Escolhia o espaço, as poses e o seu processo criativo era moldado pelas mudanças que o próprio absorvia na sociedade. Quem constrói, afinal, a sua verdade? – impõe-se a questão. “Há muitos aspetos importantes que impactam a forma como podemos olhar para o seu trabalho. Não importa apenas o fator choque. Ele criou algo novo. Trabalhava de forma astuta e adorava a forma como compunha as suas ideais antes mesmo de fotografar”, explica Matthias Harder. Mas para isso, muito contribuíram, acrescenta o curador, os criadores revolucionários, nomeadamente no campo da moda que conheceu. “Foi um período de auge, onde muitos destes nomes, como o Yves Saint Laurent, estavam no pico da sua criatividade.”
Sapatos de salto alto, uma boquilha para cigarro e um par de mamas plásticas
Na obra de qualquer artista que se tenha tornado determinante na história da arte, há sempre mitos que o acompanham – muitas vezes construídos pelos próprios. Olhe-se o caso de Warhol, Joseph Beuys, Dali ou Picasso, sendo esta premissa também verdade para muitos designers de moda que revolucionaram este campo criativo e estético no século XX. De igual forma, Newton transporta essa aura. O título da exposição, no entanto, não se reporta somente às possíveis ficções que se criaram em torno da sua vida, mas não deixam de ecoar na forma como olhamos para as suas fotografias. A fotografia como médium e o seu resultado final, transborda uma reflexão sobre o que é montagem e realidade pura. Dir-se-ia que numa fotografia já nada é verdadeiramente real. Outros diriam que é um espelho da realidade. Outros até, que a fotografia é um vestígio último da essência humana.
Na glosa que se cria entre factos e ficção, consuma-se um princípio de leitura (devidamente contextualizado) para o trabalho de Helmut Newton. A sua linguagem visual é audaz, empoderante, intimista e sem tabus. Não deixa de ser portador de uma semiótica polémica, em especial quando analisada na atualidade. É o trabalho de um caçador em busca de presa, mas por vezes é também ele a presa dos seus próprios modelos. Há um lado eminentemente poético e melancólico associado às suas fotografias, sobretudo quando olhadas hoje. Transpiram a estética de um outro tempo que não deixa de se cruzar com o nosso. É convergente, sendo isso mesmo que faz com que estas fotografias sejam produto de uma época, mas também objetivos que sobrevivem na atualidade.
Helmut Newton faz parte de um grupo estelar, cujo trabalho é reconhecido quase instantaneamente e nos quatro cantos do mundo. É também alguém que é amplamente imitado por todos os que o precedem na fotografia e no universo da moda. “O seu grande ato revolucionário foi mudar completamente a forma como as mulheres eram retratadas nas páginas das revistas de moda. Agora eram as mulheres que apreciavam o design e a moda, o poder e o esplendor dos seus corpos; mulheres elegantemente sedutoras e intocáveis. As suas fotografias estavam para lá do seu tempo: lançou as bases para os fotógrafos que o seguiram de uma forma extraordinária”, realçou Marta Ortega no comunicado lançado pela fundação sobre a retrospetiva.
Um provocador itinerante
Helmut Newton, nascido Helmut Neustädter (Berlim, 31 de outubro de 1920 — Los Angeles, 23 de janeiro de 2004) viveu a sua adolescência num contexto de ascensão do nacional-socialismo, “rodeado de imagens nazis” — “tempos assustadores”, como ele próprio recorda, que deixam para sempre as suas “marcas”. Saiu da Alemanha em 1938, tendo-se iniciado, dois anos antes, como assistente de Yva (pseudónimo de Elsie Neuländer Simon), célebre fotógrafa da República de Weimar que viria a ser assassinada num campo de concentração.
A poética de Kurt Weill, o didatismo de Bertolt Brecht, passando pelo misto de observação e sarcasmo da pintura de George Grosz, constituíram-se como elementos que um jovem Newton absorveu. Foi para a Austrália, onde conheceu a sua mulher e companheira de vida, June Newton. Seguiu para a França e para os Estados Unidos, onde se eternizou. Provocador, mas também misógino, como Susan Sontag o descreveu, devem, no entanto, separar-se as águas, explica o curador da exposição. Há o lado pessoal e íntimo, e muitas fotografias que vão para lá da moda e das mulheres não têm sequer esse ímpeto que hoje se poderia confundir com uma forma de machismo primário.
Nesta retrospetiva conta-se a história do criador por detrás da lente fotográfica. É uma história muitas vezes marcada por contradições. Newton chegou a ser “mais célebre que muitas das personalidades que fotografou”, explica Philippe Garner, vice-presidente da fundação dedicada ao artista. Helmut Newton, que morreu em 2004 após um acidente de viação, em Los Angeles, era um verdadeiro diretor de cena, capaz de uma construção artificial, mas que no fim de contas se tornava credível aos olhos de qualquer espetador. Viveu para superar os limites do real através da fotografia onde se manteve, como diz o curador, sempre jovem e entusiasta, tal como no primeiro dia. Nos papéis que assumiu artisticamente criou uma combinação entre a realidade e a ficção, claro está, que uma vez nos assola através do poder das imagens que nos legou.