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Vitória de Trump: os analistas enganaram-se?

Aviso aos leitores: este ensaio do historiador Bruno Cardoso Reis não é recomendado a quem sofra de Trumpite aguda ou Wokite crónica.

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Umas eleições com desfecho previsível?

Há duas posições muito populares nas notórias redes sociais sobre estas eleições. Claro que os EUA, esse inferno neoliberal e imperialista, iam voltar a eleger um mentiroso compulsivo, um mal-educado vulgar, um capitalista ganancioso. Claro que um génio político e económico, um verdadeiro amigo do bom e verdadeiro povo americano e europeu ia ser eleito. Em comum a muitas destas posições está a indignada pergunta retórica: como é que foi possível que a imprensa e os analistas nos tivessem enganado quanto ao resultado final das eleições?! Para esses, não tenho grande coisa a dizer. Confio que ainda haja umas quantas pessoas sensatas e politicamente maduras de esquerda e de direita – que são aquelas a quem este texto se dirige – que percebem que o que caracteriza as eleições numa verdadeira democracia é necessariamente e felizmente algum grau de imprevisibilidade.

As sondagens ajudam a perceber tendências de intenção de voto. Mas se fossem 100% fiáveis não era preciso ter todo o trabalho e despesa de ir votar e de contabilizar votos. As sondagens são evidentemente e confessadamente falíveis – as tais das margens de erro – desde logo porque as pessoas mudam de ideias e não concretizam intenções. É ainda mais assim em períodos de transição em que os padrões históricos usados para escolher amostras representativas e tratar os dados deixam de funcionar. Para quem quis ouvir fui insistindo nestes pontos.

O ponto fundamental é este, o facto de muita imprensa e analistas não terem declarado a vitória certa de Trump não é anormal, nem suspeito com os dados disponíveis. Aliás, só em ditaduras é possível prever com segurança quem vai ganhar as eleições, como qualquer pessoa minimamente atenta e séria pôde fazer, por exemplo, no caso de Putin, e das pseudo-eleições presidenciais na Rússia no início deste ano de 2024. Na Coreia do Norte também não há dúvidas sobre quem vai ganhar eleições enquanto o atual regime durar.

E esta não foi uma vitória fácil ou esmagadora de Donald Trump. Foi a eleição mais cara de toda a história dos EUA – no conjunto das eleições terá ultrapassado os 15 mil milhões de dólares. E a sua vitória não parece estar, para já, fora das margens de erro das sondagens nos Estados oscilantes. Falharam mais no voto popular. Mas isso em parte resulta do facto de a maioria dos recursos e sondagens se concentrarem nos Estados decisivos, e portanto a margem de erro tende a ser maior nos demais. E aí Trump conseguiu perder por menos em Estados como Nova Jérsia ou ganhar por mais na Florida que tipicamente não justificam grandes investimentos em sondagens. Nesse aspeto teremos tido realmente excessiva confiança nas sondagens sobre o voto popular nacional, mas por razões fáceis de perceber: não é ele que decide quem conquista a presidência dos EUA, embora seja relevante para a respetiva legitimidade política.

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Trump vence em 2024 com mais de 74 milhões de votos, mais ou menos os mesmos que teve em 2020 quando perdeu. Biden teve 81 milhões de votos em 2024. Harris desta vez terá mais de 70 milhões. E uma oscilação de algumas centenas de milhares de votos nos Estados decisivos ainda assim poderia ter dado uma vitória à democrata no colégio eleitoral. Obama em 2008 teve mais 10 milhões de votos do que o republicano McCain. Em 1980, Reagan venceu com quase nove pontos percentuais de vantagem o presidente Carter e só perdeu cinco Estados; em 1984 a sua vitória foi ainda mais esmagadora. Ou seja, esta foi realmente uma eleição menos renhida do que se esperava, mas está longe de ser uma vitória esmagadora e facilmente previsível no contexto do histórico de mais de dois séculos de eleições presidenciais.

Opinião, pois então

Para quem ainda não percebeu, convém deixar claro que eu não sou jornalista. Sou um historiador e internacionalista partidariamente desalinhado, embora com convicções liberais e progressistas, temperadas por uma valorização do bom-senso e da prudência, velhas virtudes cristãs. Não escrevo textos de opinião como se fossem artigos científicos, para isso existem revistas especializadas. Escrevo este tipo de artigos para dar opinião, sendo verdade que procuro que seja informada pela minha formação e experiência como historiador e internacionalista. Mas é sempre a minha análise, por isso devidamente assinada, não me escondo no anonimato ou por detrás de qualquer instituição. Nunca tive aliás o talento de esconder o que realmente penso de acordo com as conveniências.

Em última análise e unindo todos estes aspetos parece-me que a conclusão a tirar é, nas imortais palavras da campanha de Bill Clinton: “It’s the economy, stupid!”

Por isso, não escondi que considero a versão woke da história norte-americana ou europeia em boa parte um disparate factual e um erro politicamente tóxico. Um disparate e um erro que alimenta divisões e uma guerra cultural que só favorece os extremos, ajudando a explicar fenómenos como o de Trump. Também nunca escondi que considero uma nova presidência de Donald Trump – e o facto de, como muitas vezes afirmei desde 2020, o trumpismo me parecer um fenómeno que veio para ficar – como uma péssima notícia para a liberdade e a estabilidade nos EUA, na Europa e do mundo.

Não o digo com base em gostar ou não de Donald Trump como pessoa, o que seria um disparate mesmo que o conhecesse pessoalmente, mas com base naquilo que temos para o avaliar com o mínimo de objetividade: as suas intenções declaradas e as suas ações passadas. Respeito demasiado Trump e os trumpistas para pensar que o que dizem é tudo mentira e farão o contrário. Dito isto, não faço análise em função das minhas preferências, é inútil e é pouco interessante. Não foi pelo facto de considerar péssimas a invasão russa da Ucrânia em 2022 ou a eleição de Putin em 2024 que deixei de afirmar que eram respetivamente possíveis e certas antes de acontecerem. Disse e escrevi inúmeras vezes que Trump podia ganhar, embora nunca tenha afirmado que certamente isso iria acontecer. Porquê esta falha?

Uma vitória na História

A história dos EUA dizia-nos – e muitas vezes o repeti – que o mais normal nesta eleição seria um qualquer candidato republicano normal vencer. Os democratas estiveram no poder desde 2009 com exceção do mandato de Trump. Também há uma tendência global antigovernos desde a Grande Recessão, agravada pela pandemia. Ambas, tal como a Grande Depressão de 1929, alimentaram populismos que apresentam soluções simplistas assentes em messias salvadores e bodes expiatórios para problemas complexos explorando queixas legítimas face a elites muitas vezes incompetentes e corruptas. Nunca um partido tinha vencido com uma maioria dos norte-americanos tão insatisfeitos com o estado do país, indicando como sua principal preocupação a economia, sobretudo com uma inflação como não se via há muitos anos (e em relação à qual, há anos, critiquei por aqui a complacência da Administração Biden). Isso levou em boa parte, aliás, à derrota de Trump em 2020. Claramente isso, e uma imigração ilegal a níveis nunca vistos, pesou mais no final do que os 35% que se preocupavam sobretudo com o futuro da democracia. Ou o facto de muitos economistas de elite considerarem que as promessas eleitorais de Trump levarão a mais e não menos inflação.

Até agora, Grover Cleveland tinha sido o único Presidente a perder a reeleição e a voltar à Casa Branca

Porque é que não afirmei então taxativamente que Trump ia certamente vencer e apenas disse que podia vencer? Porque não gosto de dar certezas que não tenho. Trump faz toda a sua carreira com base no facto de não ser um republicano tradicional. Muitos dirigentes históricos republicanos e a maioria dos antigos ministros de Trump vieram dizer que ele não era um verdadeiro conservador, que tinha sido incompetente como Presidente e era perigosamente fascinado com autocratas e ditadores. Mais: apenas um Presidente em toda história dos EUA conseguiu perder a reeleição, manter-se politicamente ativo e voltar à Casa Branca: Grover Cleveland, em 1893. Mas Cleveland tinha ganho no voto popular nas eleições de 1888, o que ajudou a manter a sua liderança política dos democratas. Agora parece evidente que a opção de Trump de recusar reconhecer a derrota em 2020 não o fez pagar um preço político elevado, pelo contrário, acabou por lhe permitir emular Cleveland e convencer os seus partidários de que ele não tinha perdido legitimamente e merecia uma segunda hipótese na Casa Branca.

Também sublinhei várias vezes que, desde o século XIX, o único vice-Presidente que conseguiu ser eleito imediatamente a seguir ao mandato do “seu” Presidente foi George H.W. Bush, em 1988, quando Reagan tinha uma taxa de aprovação popular estratosférica, a economia estava a bombar e os EUA estavam à beira de vencer a Guerra Fria. Escrevi que, apesar de tudo disso, Harris ter substituído Biden voltou a tornar a eleição competitiva, e mantenho. Com Biden a sondagens apontavam para uma derrota esmagadora. Como também mantenho que Harris até excedeu as expectativas em campanha. O problema é que essas expectativas eram baixas e esta seria uma campanha difícil para qualquer candidato democrata, em particular para uma vice-Presidente de um Presidente impopular. É claro que, como várias vezes afirmei, Biden nunca se deveria ter recandidatado e desistiu tardiamente. Como também afirmei várias vezes antes do resultado final ser conhecido que Harris parecia estar a falhar numa tarefa fundamental, distanciar-se de Biden. Isso foi claramente fatal e decisivo, lamento não ter tido a certeza de que seria assim.

Para Kamala, insistir em falar de Latinx em vez de Latinos parece que não foi muito mobilizador entre os homens latinos que desta vez 54% terão votado em Trump, contra 44% em Harris, quando em 2020 59% terão votado em Biden.

Em última análise e unindo todos estes aspetos parece-me que a conclusão a tirar é, nas imortais palavras da campanha de Bill Clinton: “It’s the economy, stupid!” Com Clinton e Obama ou Biden a economia mobilizou apoios, com Harris colada a Biden desmobilizou votantes. A aposta do Partido Democrático numa política identitária assente em causas fraturantes – embora nesta como na campana de Biden com sucesso, se tenha procurado afastar um pouco disso – também parece complicar a tarefa de criar grandes coligações nacionais maioritárias. Insistir em falar de Latinx em vez de Latinos parece que não foi muito mobilizador entre os homens latinos que desta vez 54% terão votado em Trump, contra 44% em Harris, quando em 2020 59% terão votado em Biden.

Podia ter apostado num vencedor com base numa fezada. Pareceu-me mais sério e mais interessante ir apontado pistas – da história até às sondagens – sobre o que esperar. Essas pistas a mim não permitiram ter certezas, até por que a História está feita de padrões, mas também de ruturas. Só agora consigo começar a tentar perceber com mais rigor quais dessas pistas terão sido mais válidas, como procurei aqui explicar. Mas estas são conclusões preliminares, e novos dados poderão levar-me a mudar alguma delas.

Sobre o que esperar internamente e externamente, nomeadamente no que nos diz respeito a um segundo mandato de Trump – com base nos dados disponíveis – o leitor que teve a paciência de ler até aqui terá de aguardar pela segunda parte deste ensaio.

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