Imaginamo-lo especado em frente à janela, olhar pregado num horizonte rural que se prolonga sem fim à vista. Imaginamo-lo, também, anestesiado, encerrado em casa quando antes saltava de cidade em cidade e de mala às costas.
Do lado de fora da janela, um país fechado, primeiro, enclausurado por uma pandemia que remeteu a maioria às suas paredes interiores — e um país, depois, em convulsão nas ruas, agitado pela indignação causada pela forma como um joelho de um polícia branco, Derek Chauvin, asfixiou e matou um negro chamado George Floyd. Um país que afinal eram dois, que iria às urnas profundamente dividido.
Em março de 2020, com o mundo ainda muito distante de discutir se se estavam a administrar muitas ou poucas vacinas contra a Covid-19 (e a dois meses de se ficar a conhecer o nome de George Floyd), o que se sentia era uma anestesia geral: gente sentada à televisão, de telefone na mão ou computador ligado, ávida de perceber o que raio se estava a passar num mundo que já não reconhecia, incapaz de se concentrar em qualquer outra coisa que não nesse estranho vírus.
No interior da tal casa que só podemos imaginar, um americano de chapéu, óculos e penugem farta na barba e cabelo — ar desarrumado q.b. de intelectual rural, de hipster experiente e campestre que privilegia uma certa desaceleração existencial — começou a fazer o que muitos músicos, anestesiados pela incerteza e consumidos pela ansiedade, não conseguiram: pegar na guitarra e no caderno e escrever canções.
Estávamos em março de 2020— o mês em que, grosso modo, o mundo se apercebeu em massa de que uma coisa contagiosa chamada “novo coronavírus” não era um problema exótico, impossível de importar ou de se espalhar como pólvora pelo globo. E o americano de chapéu, que só quer que o deixem levar a vida no seu próprio tempo enquanto vai compondo e cantando a sua música, chama-se MC Taylor.
MC Taylor fazia, em 2020, 45 anos. Nascido em Durham, no estado da Carolina do Norte — localizado no sudeste dos Estados Unidos da América —, teve muitos empregos antes de se tornar músico profissional. Foi por exemplo, vendedor por telefone de fatos de banho e biquínis, cozinheiro de refeições rápidas de galinha, professor de educação física e rececionista numa clínica de ressonâncias magnéticas.
Não é propriamente um percurso tradicional na música, mas Taylor teve as suas idiossincrasias: como conta num ensaio (“Mourning in America”) escrito a propósito do seu mais recente álbum, só no final dos seus 30s é que passou a ter na música uma profissão.
Quando a música passou a ser um trabalho a tempo inteiro para MC Taylor, este cantor, compositor e multi-instrumentista — mas que vemos mais regularmente de guitarra (acústica e elétrica) nos braços — tinha o mesmo projeto que tem hoje, intitulado Hiss Golden Messenger. Formou-o em 2007, com um amigo chamado Scott Hirsch. Há quem lhe chame banda, mas na verdade a âncora foi sempre ele, MC Taylor, o músico que imagina as canções e que gosta de chamar depois (muitos) amigos para estúdio para as gravar e as engrandecer com instrumentos, camadas e vozes.
Antes de começar a pensar em fazer canções novas para o disco que editou há poucas semanas, Quietly Blowing It, MC Taylor tinha já mais de uma dezena de álbuns de estúdio editados como Hiss Golden Messenger — a que temos de somar ainda três mini-álbuns, ou “EPs”, sete discos gravados ao vivo e colaborações esporádicas para projetos discográficos com outros músicos como Steve Gunn e Michael Chapman.
Os discos foram-se sucedendo ao longo dos anos, com êxito suficiente para que Hiss Golden Messenger passasse a ser um nome tido em conta na música indie — e, não menos importante para o sustento de MC Taylor, para que pudesse passar a viver a tempo inteiro da música.
A chegada à editora Merge abriu-lhe novas portas e discos como Lateness of Dancers, de 2014, Hallelujah Anyhow, de 2017 e sobretudo Terms of Surpreender, de 2019 (que até lhe valeu uma nomeação para os Grammy) mediatizaram a sua música na América, tornando-a mais conhecida dos apreciadores da música de guitarras da chamada americana — uma espécie de chapéu de chuva estilístico que caracteriza um caldeirão com várias estéticas misturadas, que vão do country à folk, dos blues ao velhinho rhythm and blues, do rock and roll ao gospel. Enfim: o cancioneiro popular clássico da América.
Chegado a 2020, a reputação de Hiss Golden Messenger não era má — havia um punhado de boas canções, um conjunto de discos que se enquadravam esteticamente num universo musical clássico-popular, uma impressão digital que mostrava que MC Taylor conhecia os nomes maiores do blues, do country, da folk e do gospel. Mas ficava sempre a impressão de que os discos não comprovaram suficientemente esses créditos, que a inspiração na escrita e composição das canções não era arrebatadora, que nesses campos estilísticos havia quem andasse a fazer música melhor. Desde logo, e apenas a título do exemplo, o seu amigo e conterrâneo de Durham, Phil Cook.
As coisas alteraram-se agora, porque Quietly Blowing It é o disco que MC Taylor precisava de fazer e que a América e todos nós precisávamos de ouvir, num ano em que nesta estética musical fizeram-se também outros bons álbuns como The Pet Parade (Fruit Bats) e Texas Music Forever (Cactus Lee) — para não falar de outros discos com alguns pontos de contacto mas não tão declaradamente norte-americanos, como Pale Horse Rider (Cory Hanson), ou vincadamente mais exploratórios, como An Overview On Phenomenal Nature (Cassandra Jenkins).
Pode a música relatar o negrume destes tempos com esperança?
Há um mito na música popular, como aliás na arte em geral, que sugere que quanto maior é o inferno interior do artista, melhor pode ser a criação. Seja fundado ou não, não contem com MC Taylor para desconstruir a tese. É que Quietly Blowing It não foi apenas um álbum feito durante uma pandemia, o que já era motivo mais do que suficiente para depressões.
Antes da Covid-19 virar o mundo do avesso já MC Taylor estava, e pegamos nas próprias palavras que escreveu no ensaio “Mourning in America” (“Fazendo o luto na América”), “frito”, “com um esgotamento”, “exausto”, “deslocado”, “incerto quanto ao que estou aqui a fazer”. A 24 de julho, escrevia uma entrada no seu diário que terminava assim: “Estou pronto para estar em casa. Creio que consigo”. Quase dois anos depois, é assim que Taylor vê esse período: “Precisava de tempo e de espaço para fazer o luto de alguma coisa, embora não estivesse certo do quê”.
Primeiro, desacelerou. Depois, em março de 2020, quando se sentou a compor canções já confinado em sua casa, precisava de “paz” e procurou (escreve-o no ensaio que publicou) filtrar o mínimo possível a música e as palavras em que pensava, censurando-se menos, confiando mais no instinto.
Até ao verão — até à altura em que, um pouco por todo o lado, os países começaram a aliviar as primeiras medidas mais duras para travar os contágios —, MC Taylor esteve imerso nas melodias e nas palavras que viriam a ouvir-se neste álbum. O que lhe saiu foram, segundo escreve, “canções sobre a vida como a sentia a partir da minha pequena janela, olhando para o meu quintal em Durham, na Carolina do Norte”.
No interior, MC Taylor era um “espectador” — no exterior, lembra ele, viam-se “uma epidemia de coronavírus”, “protestos de direitos civis em massa na sequência do assassinato de George Floyd por polícias em Minneapolis”, incêndios “descontrolados na Costa Oeste” e “uma eleição presidencial na América” que espelhou o quão desunidos estavam os estados norte-americanos, como os EUA estavam fraturados.
Para o caderno, Taylor transpunha escritos e letras sobre “coisas que senti que eram importantes e sobre as quais deveria prestar um testemunho para mim mesmo: classe social, dinheiro e trabalho, alienação, desorientação, má comunicação, ódio de si mesmo, alterações climáticas”. E também “o inverso” de tudo isto: “encontrar esperança e inspiração em pequenos momentos e movimentos, viver de forma produtiva, criar uma família, encontrar e oferecer um santuário [um espaço de refúgio e segurança] e a ideia do tempo como agente de cura”.
Voltamos atrás: Quietly Blowing It é um álbum que tem a peculiaridade de ter sido feito por um artista em mudança durante um período de convulsão do seu país e do mundo. E isso percebe-se na música, mas antes é aconselhável ir à raiz das ansiedades de Taylor que se espelham no disco: o músico precisava de parar de viajar e viver freneticamente, aceleradamente, de hotel em hotel e, talvez prosaicamente, precisava também de se apaziguar consigo mesmo para encontrar nas canções algum otimismo. Se isto foi um luto, foi-o também de um estilo de vida: o de um saltimbanco das canções.
Não é que o disco seja absolutamente explícito a cada verso e a cada canção sobre o ambiente social em que foi feito e sobre o estado de espírito de MC Taylor. Mas Quietly Blowing It soa a uma viagem por um cabo das tormentas interno, a uma sessão de terapia individual e comunitária.
Não sendo liricamente um portento, tendo até alguns excertos de poesia dúbia, é um álbum exemplarmente tocado, construído e cantado. E com um punhado de grandes canções, o que não é dizer pouco. A primeira, “Way Back In The Way Back”, é logo uma delas: uma guitarra acústica a ser tocada com a maior placidez do mundo, a paz que se encontra depois de uma tempestade, a vasta paisagem americana rapidamente pintada na canção (“you can call me the wheel / all I wanna do is roll it / from Tucson to Tulsa / This long-distance love, babe / what a lonely thing to call it)”, a promessa de que “estaremos bem de manhã”, sopros jazzísticos a entrar com suavidade, MC Taylor já acompanhado por outras vozes a cantar em harmonia: “Up with the mountains / down with the system / that keeps us in chains”.
Em “Mighty Dollar”, o terceiro tema, o disco entrada em toada rhythm and blues, uma velha banda rock and roll encarnada em rapazes destes tempos a gingar contra as disparidades económicas, contra o “homem pobre perder e o homem rico ganhar”. E ouve-se MC Taylor cantar “wanna holler”, inspirado pela genialidade de Marvin Gaye que, há 50 anos, via uma América ainda mais desigual e cantava “Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)”.
Let me tell you all about it
The poor man loses and the rich man wins
Chasing down that mighty dollar
All you got is getting smaller
Poor man loses and the rich man wins
Na canção que dá título ao disco, MC Taylor volta ao modo baladeiro, parecendo cantar ao mesmo tempo sobre um desencontro afetivo e sobre “o estado das coisas / não parecer muito bom / na TV /, há um motim a acontecer”, usando a expressão (“There’s a riot going on”) cunhada pelos Sly & The Family Stone no álbum de 1971. Um disco que, de certo modo, também refletia tempos conturbados sem que fosse explicitamente sobre eles (como o era, por exemplo, o mais socialmente explícito e direto What’s Going On de Marvin Gaye).
A melhor balada que se ouve está porém em “It Will If We Let It”, por só o ser dissimuladamente: é uma cantiga calma, desapressada, que começa com acordes espreguiçados mas em que de repente, por via de harmonias vocais (entrada de outras vozes) e de uma ligeira aceleração de ritmos, traz um groove de soul. Tudo enquanto MC Taylor vai refletindo sobre as consequências da ausência física, o risco de se estragar uma relação pela vida em trânsito: “Were you happy? I ignored it / I was telling / other stories”.
É a um profeta que Taylor soa em “Hardlytown”, voz a cantar bem alto, uma harmónica a manter-nos em terreno bem americano e rural, um refrão de rebelião a impor-se — “People get ready”, surripiando e homenageando as palavras e o título da canção dos anos 60 (importante no movimento dos direitos civis) dos The Impressions de Curtis Mayfield. E é em cenário espiritual que permanecemos na belíssima “If It Comes In The Morning”, com um otimista que nos canta que “a esperança é contagiosa” e que pede “Lord, hear my cry / I’m ready to try / if it comes in the morning”.
Quem estiver a seguir ao ritmo da música, canção a canção, ainda terá pela frente quatro temas — e duas pérolas, uma “Painting House” baladeira e jazzística que nos recorda do quão importante é um bom coro de vozes para este universo musical espiritual americano e, mesmo a terminar o álbum, o tema final “Sanctuary”, o cancioneiro americano do country alternativo e do rhythm and blues a desaguar na receita da terapia musical de MC Taylor:
Feeling bad
feeling blue
can’t get out of my own mind
I know how to sing about it”.
A rematar, um coro para nos levantar da letargia e nos injetar de vida, uma referência à morte recente do mestre da country John Prine (“Handsome Johnny had to go, child”), um conselho para lidar com as tragédias (“Get used to the bad news / It’s all part of the show, child”), um músico e o seu grupo de amigos à procura do “other side”, de amanhãs que cantam, das cinzas no meio do luto, da esperança contagiosa por entre destroços sociais.
Quietly Blowing It não é, afinal, apenas uma viagem interna, a passagem interior de um homem por um luto rumo à luminosidade — são dores individuais mas também coletivas e comunitárias com as quais se convive caminhando em frente, tendo (ingenuamente ou não) esperança na longa estrada que se avista. MC Taylor, Hiss Golden Messenger, dá-nos boleia a todos.