É fácil esquecermo-nos de que certas obras de arte que contemplamos em museus, atrás de baias de proteção ou de vitrinas, começaram por ser objetos de decoração ou de uso pessoal. Essa utilização é, ou pode ser, um dos vários fatores de interesse dos objetos em questão. Isto é especialmente válido na joalharia.
Anéis, pulseiras, colares e outros adereços podem ser avaliados em função dos seus materiais, das técnicas utilizadas na sua criação ou ainda pelo facto de terem sido usados em determinadas ocasiões por figuras relevantes.
Certas joias foram criadas não só com o propósito de serem usadas, mas também com o intuito de serem encaradas, desde o primeiro momento, como obras de arte. Certos exemplares da obra do mestre joalheiro francês René Lalique encaixam nesta descrição.
René Lalique e Calouste Gulbenkian tiveram uma relação pessoal e próxima, entre finais do século XIX e a morte do artista, em 1945. Gulbenkian reparou cedo no talento do joalheiro francês e as primeiras aquisições que lhe fez ocorreram num tempo em que este ainda não era muito conhecido, o que contribuiu para a proximidade da relação. É a apresentação do seu trabalho na Exposição Universal de Paris, em 1900, que garante a Lalique um lugar de destaque no panorama artístico da época.
A obra de Lalique insere-se, primeiramente, no movimento da chamada Arte Nova. As referências que utilizou vão da Antiguidade à Idade Média. Transportou para a sua arte o simbolismo literário e o oxímero inaugurado por Baudelaire no poema “As Flores do Mal”, visível nas joias da coleção que representam orquídeas e papoilas.
Noutras obras, Lalique explorou o conceito de metamorfose, de que é exemplo uma das mais célebres joias da coleção, o peitoral Libélula. Já na fase final da sua carreira, a partir de 1925, dedicou-se em exclusivo ao fabrico de objetos em vidro numa fábrica própria na Alsácia, com moldes que permitiam a sua reprodução, seguindo os princípios decorativos introduzidos pela Arte Déco.
Lalique foi mais do que um joalheiro. Quis, desde sempre, criar um efeito marcante e transportar para as suas obras um pensamento artístico complexo. Daí que nunca tenha hesitado em usar materiais semipreciosos, orgânicos e industriais, como o esmalte ou o vidro, rompendo com o uso exclusivo de metais e pedras preciosas. Para si, o valor estava na obra, mais do que nos materiais utilizados.
Entre as razões que levaram Calouste Gulbenkian a sentir-se atraído pela obra de Lalique estão as referências do artista ao rosto e ao corpo feminino, mas também o fascínio pela natureza e os seus mistérios. É curioso perceber que Gulbenkian, não tendo sido propriamente recetivo ao movimento simbolista na pintura, acabou por adquirir joias-objetos e livros-objetos concebidos segundo essa estética.
Na sua casa de Paris, Gulbenkian reunia as obras de René Lalique – entre taças, pisa-papéis, facas para papel, mas também pulseiras, peitorais e gargantilhas – numa divisão própria. A casa de banho dessa habitação foi também desenhada por Lalique, que recorreu a pequenos mosaicos de vidro e folha prateada para cobrir o teto abobadado e desenhar a quadrícula no chão.
Já em Lisboa, as obras de Lalique continuam a ter lugar de grande destaque. A Sala Lalique, que existe desde a abertura do Museu Calouste Gulbenkian, em 1969, reúne a coleção de cerca de 170 objetos da sua autoria. De referir, como curiosidade final, que estas peças desempenham um papel central em “Crónica dos Bons Malandros”, de Mário Zambujal, um best-seller escrito no início da década de 1980, posteriormente adaptado ao cinema e à televisão, e que versa, precisamente, sobre um grupo peculiar de assaltantes que tenta assaltar o museu para levar as peças de Lalique.