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Homem de palavras: Ruy Belo de A a Z

Este sábado no Fólio, em Óbidos, é dedicado a Ruy Belo e à sua obra. Nuno Costa Santos recorda palavras-chave do poeta, numa memória através dos versos.

“Basta a cada dia a sua própria alegria/ e é grande a alegria quando iguala o dia”. Este sábado, dia 1 de outubro, o Fólio festeja um dos maiores escritores portugueses, nascido em 27 de Fevereiro de 1933. Este é um dicionário feito de entradas que cruzam a vida e a obra do autor, recorrendo, sem reticências, a alguns versos que marcam a sua escrita.

Amizade. E amor. E árvores, “principalmente as que dão pássaros”. Detenhamo-nos na amizade, celebrada pelo poeta de um modo aberto e inequívoco, sem defesas: “Nos dias de hoje ou nos tempos antigos/ não preciso de menos que todos os meus amigos”. Os versos são de “À Memória da Céu”. Mas há mais, num poema como “Peregrino e Hóspede Sobre a Terra”: “O meu país são todos os amigos/ que conquisto e que perco a cada instante”. A amizade do poeta não era teoria. Era convívio. Era memória. Fazia-se da mesa e da partilha, semeada no seu passado rural, lembrado nestes versos de “O Jogo de Chinquilho”: “Até este café onde sentado olho e penso por olhar/ é afinal o mesmo onde bebi a meias com meu pai/ a primeira cerveja uma cerveja vinda/ através do calor do dia de verão”.

Beleza. O esteta Ruy Belo ia buscar inspiração à Natureza, ao Verão, ao mar, a artes várias, da arquitectura à música, da pintura à escultura. Em Óbidos está aberta ao público uma exposição de fotografias da autoria de Duarte Belo, seu filho, de peças de cerâmica que povoavam a casa da família. Se quisermos destacar uma arte que entrou pela sua poesia dentro foi o cinema. Dois poemas paradigmáticos dessa relação. “Na morte de Marilyn” e “Esplendor na relva”, título de um dos seus filmes favoritos.

Consolação. O mar era paixão assumida. “Não sei se gosto mais do mar/ se gosto mais da mulher/ Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher” (“Uma Forma de Me Despedir “). A praia da Consolação, em Peniche, era uma das praias onde passava os verões em família e com os amigos. Outra era a praia da Senhora da Guia, em Vila do Conde. Não foram raras as vezes em que arriscou a vida ao nadar em mares bravios. Numa delas chegou a entrar em coma. Quando dele saiu, vindo de algas e corais, escreveu a “Fala de um Homem Afogado ao Largo da Senhora da Guia no Dia 31 de Agosto de 1971”.

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Deus. Depois deus. Após ter vivido o que classificou como uma “aventura mística”, foi-se transformando num dos “vencidos do Catolicismo”, consagrados num poema dedicado a um conjunto de católicos progressistas, do qual faziam parte figuras como João Bérnard da Costa e Pedro Tamen. “Nesta vida é que nós acreditamos/ e no homem que dizem que criaste/se temos o que temos o jogamos/ ‘Meu deus meu deus porque me abandonaste?”.

[trailer do documentário “Ruy Belo. Era uma vez”, que vai ser exibido este sábado no Folio]

Espinho. Ruy Belo era um autor que nomeava, no plano literário, o chão concreto que pisava. Espinho transformou-se no lugar de “Literatura Explicativa”, poema no qual afirma numa espécie de jogo que o ciclo dos dias diz mais do que aparenta: “O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol/nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol”. Acaba por ser mais uma reflexão sobre a passagem do tempo e o fim de tudo.

Futebol. “A poesia é, por natureza, difícil. Como o futebol”. Disse-o numa entrevista que se pode encontrar no volume “Na Senda da Poesia”. O futebol era uma das paixões do poeta, afecto que partilhava com José Medeiros Ferreira na elitista Faculdade de Letras de Lisboa. Ambos liam o jornal “A Bola” e Belo, era, na qualidade de defesa central da equipa da Faculdade, um jogador implacável, pelo qual poucos passavam.

Gulbenkian. É uma instituição que lhe foi e é importante. Quando voltou de Roma, em 1961, recebeu uma bolsa com fins académicos. Em 2011, nos 50 anos da publicação de Aquele Grande Rio Eufrates, realizou-se na Fundação um encontro organizado por Paula Morão, Nuno Júdice e Teresa Belo.

Humor. O Homem de Palavra(s) é lembrado sobretudo como um “fugitivo da catástrofe” que trazia a morte sempre consigo. Uma leitura menos superficial dos seus poemas neles encontrará versos igualmente construídos com um humor ora irónico ora amavelmente satírico. O pequeno “Epígrafe para a nossa solidão” é um deles: “Cruzámos nossos olhos em alguma esquina / demos civicamente os bons dias:/ chamar-nos-ão vais ver contemporâneos”. Mas há mais divertimento espalhado na sua lírica. Em versos como estes: “Se nem resolvi ainda o problema da unha do dedo mínimo/ como pretender ter resolvido o mínimo problema?”; “a minha grande esperança é o café”; “que alegria ser poeta português/ Portugal fica em frente”.

Infância. “Somos crianças feitas para grandes férias”. A poesia de Ruy Belo é marcada pela sua infância, passada em São da Ribeira, freguesia do concelho de Rio Maior, com actividades como “o jogo do berlinde o trinta e um pedradas/ nas cabeças nos ninhos nas vidraças”. No poema “O Jogo do Chinquilho” escreveu sobre a possibilidade de reviver uma felicidade primordial: “Renasce neste largo a minha infância/a minha vida tem aqui nova nascente/ e jorra de repente com o ímpeto do início”.

Juventude. É um dos temas fundamentais da sua poesia. A juventude como tempo que se perdeu, como paraíso do passado. “E Tudo Era Possível”, de “Homem de Palavra(s)”, é um poema sobre esses irrecuperáveis dias juvenis, mas não deixa de ser um texto luminoso. Abre assim: “Na minha juventude antes de ter saído/ da casa de meus pais disposto a viajar/ eu conhecia já o rebentar do mar/ das páginas dos livros que já tinha lido”.

Nas suas palavras, escreveu os poemas “nos breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto”, revelando que a sua respiração poética era mais forte do que qualquer tentativa de agrilhoamento.

Liberdade. Tinha ficha na PIDE. Colaborou em O Tempo e o Modo, tomou posição na crise académica de 1962, assinou em 1965 o manifesto dos 101 católicos a favor do Manifesto da Oposição Democrática e, em 1969, candidatou-se, com nomes como Mário Soares, Gonçalo Ribeiro Teles e Francisco Sousa Tavares, como deputado por Lisboa nas listas da CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática) às eleições para a Assembleia Nacional. No poema “O Urogalo” (“Transporte no Tempo”) escreve que “o urogalo vive solitário e livre e/ a solidão e a liberdade condição de vida/podem custar a vida àquele que vive/ mas isso não importa”.

Mulher. Em “Uma Forma de Me Despedir” revelou uma dúvida: “Não sei se gosto mais do mar/ se gosto mais da mulher/ Sei que gosto do mar sei que gosto da mulher”. As musas vão comparecendo na poesia daquele que celebrou as “suaves raparigas”. Sem elas não teria escrito alguns dos mais densos poemas de temática amorosa como “Solene Saudação a Uma Fotografia” ou “Encontro de Garcilaso De La Vega Com Dona Isabel Freire, em Granada, no Ano de 1526”. Ou “Muriel”, belíssima consagração poética de uma impossibilidade amorosa: “Tu és a mesma mas nem imaginas/como mudou aquele que te esperava”.

Noite de Madrid. “Na Noite de Madrid” é o título de um poema em que Belo relata o momento em que viu um homem morto no asfalto quando “os vivos” voltavam dos bares “com música nos olhos”. Fixa um tempo decisivo na sua vida, altura em que, entre discotecas e espectáculos, realizou os excessos que não praticara quando era novo. Foi sentindo cada vez mais a solidão de uma cidade que ficava demasiado longe do mar. Recriando uma formulação sua, ele vinha para a vida e deram-lhe dias.

Opus Dei. Quando foi para Coimbra estudar Direito começou a ter contacto, através de encontros culturais, com a Opus Dei, na qual permaneceu durante dez anos. Assumiu os cargos de director literário da Editorial Aster e de chefe de Redacção da revista Rumo. Com o tempo começou a considerar a organização opressora da sua vocação de escrever.

Portugal. Um dos seus poemas mais conhecidos e repetidos por figuras de diferentes quadrantes políticos e sociais é “Portugal Futuro”, um país “aonde o puro pássaro é possível”. Este é um território imaginado, bem distante daquele que lhe causava mal-estar e onde lamentava ter nascido, fixado no verso que abre “Morte ao Meio Dia”, “No meu país não acontece nada”, mais tarde reproduzido por José Cardoso Pires em “Alexandra Alpha”.

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Ruy Belo

Queluz, Monte Abraão. Foi o lugar onde viveu com a sua família numa casa – e sabemos, através de um conhecido poema, o quanto valorizava as casas e a intimidade. Junto à porta do prédio onde viveu entre 1970 e 1978 existe agora uma placa, numa iniciativa da União de Freguesias de Massamá e Monte Abraão.

Rio Eufrates. Aquele Grande Rio Eufrates, saído em 1961, foi o debute editorial de Ruy Belo. O título inspira-se numa passagem do Apocalipse, XVI, 12 — “E o sexto anjo derramou a sua taça sobre aquele grande rio Eufrates” — e é o mote para um livro no qual é evidente uma demorada conversa com a Bíblia. Nas suas palavras, escreveu os poemas “nos breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto”, revelando que a sua respiração poética era mais forte do que qualquer tentativa de agrilhoamento.

Sono. O sono – ou a falta dele – era uma questão para Ruy Belo. A “peste da insónia” fatigava-o e obrigava-o a tomar barbitúricos. É de dizer que sem a insónia não teria escrito muito dos seus poemas, aqueles longos poemas onde aliava uma capacidade de tocar nas grandes feridas mantendo sempre uma técnica seguríssima, de muitos recursos estilísticos. Também se podia escolher aqui a palavra sentimento. Que não haja, no entanto, enganos em fazer interpretações literárias e rimas biográficas demasiado directas. “Não costumo por norma dizer o que sinto/ mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa”.

Teresa Belo. Apaixonou-se por Maria Teresa Carriço Marques, nascida em Vila do Conde, numa altura em que ambos eram alunos da Faculdade de Letras de Lisboa. Teresa Belo, como se tornou conhecida entre os seus, a sua “musa discreta”, com uma “graça inesperada”, “expressão sempre surpreendente da surpresa”. A pessoa que lhe deu a liberdade de que necessitava para se cumprir por inteiro, sem restrições, como escritor. Em 1966 casaram e tiveram depois três filhos, Diogo, Duarte e Catarina. A cerimónia do casamento contou com um pormenor burlesco, revelador da personalidade do poeta. Ruy terá chegado tarde à igreja porque se deixara ficar, distraído, na pensão, a olhar o mar.

Universidade. Além do poeta, também existiu o Ruy Belo académico. Tirou duas licenciaturas – uma em Direito, outra em Letras – e doutorou-se ainda muito novo. Em 1971, depois de não ter sido colocado como professor universitário em Portugal, foi para Madrid com a missão de se tornar leitor de português na Universidade Complutense. De regresso ao seu país, em vez de ir para o ensino universitário, tendo em conta a profundidade e sistematização dos seus conhecimentos culturais, foi obrigado a dar aulas no ensino nocturno de uma escola secundária. A sua própria escrita foi sempre antecedida de muito estudo dos processos literários – e disso são prova as inúmeras anotações que fez nos seus cadernos.

Declarou que a vida, “esse processo que perdi”, não lhe interessava e que era na poesia que morava o sentido. Mas sem a sua vulnerabilidade à vida não seria o poeta que foi.

Vida. Registou em “Não Sei Nada” uma reflexão radical: “A minha vida passou para o dicionário que sou. A vida não interessa. Alguém que me procure tem de começar — e de se ficar – pelas palavras”. Declarou que a vida, “esse processo que perdi”, não lhe interessava e que era na poesia que morava o sentido. Mas sem a sua vulnerabilidade à vida não seria o poeta que foi (“temi amei preocupei-me com problemas fui feliz vivi a vida emocionei-me”). A sombra perpassa a sua poesia mas sempre como contraponto das possibilidades da vida que o poeta sentia na sua máxima intensidade. “O receio da morte é a fonte da arte”.

Xixi. Sim, xixi. No mar. Em “Na Praia” Belo, fazendo prova do seu picaresco sentido de observação, escreveu sobre um desporto muito praticado e pouco nomeado. Escolheu o ch mas podia ter escolhido o x, sem ferir o bom português: “Raça de marinheiros que outra coisa vos chamar/ senhoras que com tanta dignidade/à hora que o calor mais apertar/ coroadas de graça e majestade/ entrais pela água dentro e fazeis chichi no mar?”.

Y, de Ruy. O y com que se apresentava como escritor e que o distinguia do cidadão Rui de Moura Belo que nasceu a 27 de Fevereiro de 1933 em São da Ribeira e que morreu em Queluz, Sintra, a 8 de Agosto de 1978. O y de um poeta que dialogou com Fernando Pessoa (“Pessoa é o poeta vivo que me interessa mais”) e se dirigiu a Herberto Helder, em “Vat 69”, ao mesmo tempo que assumia que “a eternidade é não haver papéis”.

Zenha. Depois de, em 1958, se ter doutorado em Roma em Direito Canónico, foi convidado por Francisco Salgado Zenha para lidar, no seu escritório, com casos de dissoluções matrimoniais, nas quais era importante ter alguém que soubesse do assunto. Escrevia as alegações em latim. De pé, como lembra o advogado Duarte Teives. E como no poema. “A natureza é certo muito pode mas um homem de pé pode bem mais”.

Nuno Costa Santos, 41 anos, escreveu livros como “Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco” ou o romance “Céu Nublado com Boas Abertas”. É autor de, entre outros trabalhos audiovisuais, “Ruy Belo, Era Uma Vez” e de várias peças de teatro.

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