Discurso de Augusto Santos Silva
Sem esquecer o muito obrigado especial que devo ao grupo parlamentar do PS, proponente da minha candidatura, dirijo-me a todos porque de todos serei o presidente. Agradeço a confiança, senhoras e senhores deputados, que acabais de me manifestar, elegendo-me para presidente da AR, escolhendo-me para a prestigiosa posição de primeiro entre pares. Procurarei merecer a honra que assim me concedeis, exercendo uma presidência imparcial, contida e aglutinadora, preservando a individualidade de cada deputado, respeitando a independência e a agenda de todos os grupos parlamentares, defendendo o papel e a imagem do Parlamento e garantindo a todos as melhores condições para o exercício plenos dos mandatos, seja no plenário, nas comissões ou no contacto com os eleitores.”
Augusto Santos Silva tem colado a si expressões mais corrosivas, sempre fora do púlpito (onde tem cuidado), como aconteceu numa reunião à porta fechada do PS há alguns anos (quando ficou cunhado o “malhar na direita”, que na verdade “malhava” mais no BE e no PCP) ou quando, pensando ter as câmaras desligadas, comparou a concertação social a uma “feira de gado”. Perante as querelas que foi tendo, à direita e à esquerda, Santos Silva quis desde logo afirmar a sua imparcialidade no cargo e assumir-se como uma espécie de presidente de todos os deputados. E, nessa condição, respeitará a “agenda de todos”, numa garantia de que não irá privilegiar os partidos ou ideais que lhe são mais próximos. Sabendo de onde vem, faz uma menção especial ao PS, que o propôs para o cargo, mas promete ser aglutinador e “contido”. A contenção é algo que trabalhou muito, aliás, nos últimos seis anos como chefe da diplomacia portuguesa.
Saúdo as senhoras e senhores jornalistas cujo o trabalho de informação e mediação é tão importante para o conhecimento e o escrutínio do que fazemos.”
Houve tempos, em que a relação dos deputados (ou das maiorias de deputados) com a comunicação social não foi fácil no Parlamento. Na chamada “crise dos corredores” durante o cavaquismo — que levou o Presidente Mário Soares a chamar os jornalistas a Belém e provocou um boicote dos jornalistas à atividade parlamentar — houve momentos em que a relação foi bastante tensa. Já no tempo de José Sócrates alguns deputados protestaram por os fotojornalistas captarem os ecrãs dos computadores das galerias e fecharam esses mesmos ecrãs em protesto, num episódio mais isolado. Na mesma linha de Ferro Rodrigues, Augusto Santos Silva quis sublinhar que pretende garantir condições para a comunicação social conseguir fazer uma cobertura dos trabalhos parlamentares.
Saúdo a Presidência da República, o Governo e os tribunais com os quais o Parlamento prosseguirá uma relação de harmonia e respeito mútuo, no escrupuloso cumprimento dos preceitos constitucionais e da tradição democrática portuguesa.”
O sucessor de Santos Silva, Ferro Rodrigues, e Marcelo Rebelo de Sousa ficaram tão próximos nos últimos anos que se tornaram amigos — até para lá da relação institucional. Agora, o novo presidente da AR também faz questão de deixar uma palavra ao Presidente da República e também ao Governo PS, de onde vem. Pouco tempo depois da eleição, o Presidente da República divulgaria uma nota onde apresentou “cordiais felicitações” a Santos Silva e reiterou a “vontade da mais frutuosa solidariedade institucional entre o Presidente da República e o Presidente da Assembleia da República”:
É uma honra que excede, seguramente, o mérito pessoal, esta que me dais de ocupar a mesma cadeira em que após a madrugada libertadora se sentou Henrique de Barros e de me seguir a figuras como Almeida Santos, Jaime Gama, Mota Amaral, Assunção Esteves e Ferro Rodrigues, só para citar os que presidiram a esta casa no último quarto de século. Permiti-me uma menção particular ao último, não só por ser aquele a quem diretamente sucedo, mas sobretudo porque o Eduardo Ferro Rodrigues, com quem partilho um percurso político com mais de quatro décadas é, para mim, como tantos outros, uma inspiração maior de empenhamento cívico, coerência política, exigência ética e integridade pessoal, um exemplo vivo da máxima de Ricardo Reis: ‘Para ser grande, sê inteiro.’“
Além de lembrar o primeiro presidente da AR (ainda na Constituinte, Henrique de Barros), Santos Silva fez questão de enaltecer a honra que é ocupar o mesmo lugar que os seus antecessores, citando todos, quer os do seu partido, quer os que foram indicados pelo PSD (Mota Amaral e Assunção Esteves). Deixou uma palavra especial para o seu antecessor, que é do mesmo partido, citando o heterónimo de Fernando Pessoa (citado depois por André Ventura e por Rui Tavares).
O terdes escolhido a mim e na minha circunstância tem um significado político que me transcende e nele me devo concentrar. Tanto quanto sei sou o primeiro presidente com origem, atividade profissional e residência permanente na cidade do Porto. E só isso merceria uma referência, porque é uma maneira de demonstrar que aqui está representada o conjunto da nação e do seu território. Todavia, muito mais relevante do ponto de vista político e simbólico é o facto de hoje ser o dia inaugural da ocupação deste lugar se fazer por deputado eleito pelo círculo da emigração”.
O novo presidente da AR destacou que é o primeiro presidente da AR que é “do Porto” em todas as dimensões possíveis: nasceu, vive e trabalha na cidade. Numa altura em que António Costa é criticado dentro do próprio PS por ter um Governo centralista, Augusto Santos Silva fez questão de enaltecer que é do Porto e que contraria essa ideia de centralismo do PS.
Assim, a representação parlamentar do círculo parlamentar 2,3 milhões de portadores de cartão de cidadão português residentes no estrangeiros e dos mais de 5 milhões, que quando acrescentamos a estes os seus descendentes, estimamos formar as nossas comunidades, essa representação atinge toda a sua plenitude porque é assumida também porque quem é deputado é presidente do Parlamento. Elegendo para vosso presidente um deputado eleito pelas comunidades, não só fortaleceis a unidade nacional, como reforceis a nossa capacidade de projeção internacional e de influência global. Quaisquer que fossem as funções que ocupasse, fui sempre dizendo ao longo dos anos que a explicação para que a influência de Portugal excedesse em muito o que resultaria do efeito mecânico da sua dimensão demográfica, territorial, económica ou militar (…) é porque dispunha de dois fantásticos recursos de poder suave, de influência: as comunidades e a língua.”
Mais do que ser do Porto, Santos Silva quis enaltecer o círculo pelo qual foi eleito: o círculo de Fora da Europa. Mas isso tinha um objetivo, que se desvendaria pouco depois: mostrar como Portugal é global e um país com relevo no mundo superior à sua dimensão geográfica e populacional por ter uma grande comunidade de emigrantes. E esses emigrantes são imigrantes nos outros países, daí que os nacionalismos não façam sentido. Seria aí a meta onde o novo presidente da AR queria chegar. Mais do que isso — mais uma vez com a legitimidade de ter sido até segunda-feira o chefe-de-todos-os-diplomatas — Santos Silva disse que a presença de portugueses e luso-descendentes de outros países é uma forma de soft power e trunfo da diplomacia portuguesa.
E a que vem isto [da Língua] num discurso parlamentar? Vem e por duas razões fundamentais: a primeira é que basta olhar para a natureza pluricêntrica da Língua em que nos exprimimos, cada um na sua variedade, para compreender que o patriotismo só medra no combate ao nacionalismo. O patriota, porque ama a sua pátria, enaltece o amor dos outros pelas pátrias respetivas. E percebe que só na pluralidade das pátrias, floresce verdadeiramente a sua. O nacionalista, porém, odeia a pátria dos outros. Quer fechar a sua ao contacto com as demais, discrimina quem é diferente e em vez de hospitalidade, promete ostracismo. Basta pois, pensar num minuto na incrível força desta Língua de tantas pátrias que é a Língua Portuguesa, para entender que o bom requisito para ser patriota é não ser nacionalista. Isto é: não ter medo de abrir fronteiras, de integrar migrantes, de acolher refugiados, de praticar o comércio e as trocar culturais.“
Augusto Santos Silva faz a distinção clara entre patriotismo e nacionalismo, conceitos muitas vezes confundidos. Diz até que o primeiro pode combater o segundo. Minutos depois, o Chega, através do seu líder, acabaria por exacerbar o nacionalismo que o partido defende, não se demovendo. O novo presidente da Assembleia da República quis atirar aos que são contra a entrada de migrantes e que querem limitações à entrada de refugiados no País. O destinatário era claro: o Chega de André Ventura.
Os limites da linguagem são os limites do pensamento, como é sabido. O que significa também que os recursos da linguagem são poderosos recursos do pensamento. Este, por vossa vontade, vosso presidente, que considera que o seu mais nobre encargo é esse singelo de dar a palavra a quem a pede, gostaria que a liberdade de quem fica assim investido do poder da palavra, fosse adornada com o cuidado pela língua em que a palavra se exprime. A nossa Língua que, para invocar Virgílio Ferreira, Sophia ou Eugénio de Andrade, tem a vastidão do mar e a limpidez da luz. A Língua de Vieira, de Eça, de Drummond de Andrade, de Lispector, de Luandino, de Mia Couto de Saramago e de muitos outros não é de feição para vociferar fórmulas vazias. Língua em que soam postiças as frases que atiram pedras em vez de argumentos, que cegam em vez de iluminar.
Ferro Rodrigues só ajudou André Ventura quando lhe deu uma correção por o então deputado único utilizar a palavra “vergonha” em debates parlamentares. Augusto Santos Silva já vem com a lição estudada. Também quer contenção, mas em vez de dizer que não permite, diz apenas que “gostaria” que houvesse “cuidado pela língua em que a palavra se exprime”. É, na verdade, um “cuidado com a língua” em modo soft power. Usa depois a língua portuguesa para dizer que não encaixa bem em quem “vocifera fórmulas vazias”. Mais uma vez o alvo, de forma indireta, era facilmente identificado: André Ventura.
O sinal de pontuação que a democracia mais precisa é o ponto de interrogação. O sinal que mais dispensa é o ponto de exclamação, que ao contrário do que acontece com os fanatismos de toda a sorte, que a democracia deve usar com grande parcimónia. (…) A interrogação sacode os preconceitos, abre caminhos, convida a ouvir as várias respostas, trava o passo ao dogmatismo e à intolerância.”
Santos Silva volta a visar os “fanatismos”, os “preconceitos” e a “intolerância”. Defende, pelo menos na teoria, que está recetivo à crítica. Diz que o ponto de interrogação é fundamental num regime democrático. Ou seja: as opções tomadas em democracia devem ser questionadas.
Ouvi várias vezes Mário Soares dizer que a sua única arma como político, era a palavra (…) O Parlamento é a casa da palavra livre.
Apesar de estar a querer afirmar a sua imparcialidade, Augusto Santos Silva não esquece a sua origem, nem quem são as suas influências na política. Uma referência a Mário Soares, seja qual for, é algo que fica sempre bem a um socialista que está a iniciar-se num novo cargo (e, neste caso, logo a segunda figura da hierarquia do Estado).
Todas as ideias podem ser trazidas, mesmo aquelas que contestam a democracia, pois essa é a mais óbvia vantagem da democracia sobre a ditadura. Por mais esdrúxulas que sejam, a expressão das ideias pelos outros deve ser acolhida com cortesia, não é por impedir o outro de se exprimir que alguém fica com a razão. E as ideias próprias não precisam de ser gritadas porque a qualidade dos argumentos não se mede em decibéis. O único discurso sem lugar aqui, há-de ser o discurso do ódio. O discurso que insultar a dignidade humana seja a quem for, o discurso que insultar o outro só porque o outro é diferente, que discriminar seja qual for o motivo da discriminação, que incitar à violência e à perseguição [não tem lugar]. A liberdade e igualdade custaram demasiado para que agora pudéssemos aceitar regredir para novos tempos de barbárie.”
O novo presidente da Assembleia da República aceita (quase) tudo na casa da democracia. Aceita mesmo — tendo em conta que os deputados são eleitos pelo povo — que sejam apresentadas ideias que contestam a democracia. Mas define uma linha vermelha: discurso de ódio não passa no hemiciclo em que estiver a presidir. Mais uma vez o alvo estava identificado: era um aviso à navegação ao Chega.
Os tempos que vivemos na Europa e no Mundo são tempos particularmente difíceis. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e as suas consequências estratégicas económicas e sociais, se interpelem completamente a nossa consciência, também impõem a reafirmação do nosso posicionamento geopolítico e a elaboração e aplicação de políticas públicas que acautelem a economia, o emprego e a coesão social. Temos elevadas responsabilidades, quer nacional, quer internacionalmente, designadamente como membros da ONU, da UE e da Aliança Atlântica. Saúdo em particular as Forças Armadas, agora chamadas a novas tarefas que, se necessário, desempenharão com a dedicação e a proficiência com que têm pautado a sua intervenção em missões de paz e outras operações no exterior.
Também houve avisos para o Bloco de Esquerda e, em particular, para o PCP. Augusto Santos Silva lembra que vivemos “tempos difíceis”, decorrentes da guerra da “Rússia contra a Ucrânia” (a escolha de palavras não é inocente), e destaca as “responsabilidades” que o país tem “internacionalmente” como membro da ONU, da UE e também da “Aliança Atlântica”. Leia-se: NATO, a mesma que PCP e BE criticam.
O debate parlamentar requer o cumprimento de duas regras elementares: uma é o respeito por todos os mandatos que resultam de livre expressão de voto dos portugueses, quaisquer que sejam a sua representatividade eleitoral ou as suas propostas programáticas. A outra regra é o respeito pela vontade popular tal como ela se materializa na soma agregada dos votos individuais e se exprime na grandeza relativa dos grupos parlamentares. Por um lado, o número de deputados de um grupo não é razão bastante para pôr sequer em dúvida o exercício livre de cada mandato com os meios necessários e nas condições regimentais. Por outro lado, os direitos de cada deputado ou deputada não podem servir de pretexto para querer impor a distorção ou desrespeito pelas maiorias que o povo soberanamente constituiu. Eis o entendimento que prosseguirei enquanto presidente, confiando ser esse também o entendimento da câmara. Estes tempos difíceis, complexos, em que alguns dos pressupostos básicos da vida na Europa foram subitamente questionados, e em que a incerteza parece ser a característica determinante do ambiente económico e estratégico, são tempos propícios a toda a espécie de manipulações, de preconceitos e de messianismos. Tempos em que pode prosperar o populismo, com as suas simplificações abusivas, as exclusões sumárias, a negação do pluralismo e da diversidade, a invenção de inimigos e a substituição do debate pelo insulto.”
O novo presidente da AR parece deixar claro que todos os deputados são iguais e que, por isso, partidos como Chega não devem ser desconsiderados, até porque há uma regra a respeitar: a “vontade popular”. Mas, mais uma vez, Santos Silva tinha outro ponto de chegada. Que poucos deputados, por muita legitimidade que tenham, não podem ser mais influentes (nem ter mais protagonismo) que outras bancadas que são maiores ou até maioritárias. Há que garantir os direitos das bancadas minoritárias, mas sem “distorção ou desrespeito pelas maiorias”. E logo depois vêm mais indiretas para André Ventura (referência aos “messianismos”) e para o Chega (“populismo” e “simplificações abusivas”).
A sociedade portuguesa não está imune a este vírus [do populismo]. A melhor maneira de combatê-lo é não lhe conceder mais relevância do que aquela que o povo português lhe quis atribuir. E é impor à violência excluente dos seus obsessivos pontos de exclamação, a firme serenidade de quem sabe ter o apoio das pessoas e o conforto da razão. Uma razão que interroga, que problematiza, que ouve, que avalia, que corrige e é, por isso, ela sim: uma razão democrática.
É uma teoria de muitos que querem combater o Chega: melhor do que criticar ou denunciar, é ignorar. Augusto Santos Silva é defensor desta doutrina: os populismos crescem, quanto mais protagonismo e palco se lhes dá. Avisa, por isso, que só dará ao Chega a importância que o povo lhe deu (12 deputados) e não o impacto mediático que a bancada (ou as suas propostas) possa ter.