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"Ivo Rosa também não presidiu a distribuições" de processos. Carlos Alexandre atira ao colega e conta como rompeu com funcionária

Carlos Alexandre assumiu, no processo em que é arguido, que, até 2016, nem ele nem o juiz Ivo Rosa assistiram à distribuição de processos. E não poupou a funcionária de quem se dizia ser próximo.

O juiz Carlos Alexandre não poupou o colega Ivo Rosa, que levantou suspeitas quanto à forma como o processo Marquês lhe caiu nas mãos, nem a funcionária que todos diziam ser sua protegida — e que, como Carlos Alexandre, é também arguida num processo movido por José Sócrates por suspeitas de eventuais irregularidades na distribuição do processo que colocou o antigo primeiro-ministro socialista em prisão preventiva. No depoimento que prestou ainda enquanto testemunha, o juiz do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) assumiu que, até abril de 2016, nunca assistiu a qualquer distribuição dos processos que entravam no tribunal que é conhecido por Ticão. Nem ele nem o colega com quem tem somado divergências. Também criticou a forma como a sua funcionária judicial dirigia a secção e partiu sem sequer se despedir do magistrado que a tinha indicado para aquele tribunal.

Carlos Alexandre é, desde meados de fevereiro, arguido, juntamente com a funcionária judicial, Teresa Santos, que lhe atribuiu o processo do Marquês em setembro de 2014. José Sócrates quer que ambos sejam julgados pelos crimes de abuso de poder, falsificação praticada por funcionário e denegação de justiça e pediu, por isso, a abertura de instrução do processo que tinha já sido arquivado, e cujo debate instrutório corre agora no Tribunal da Relação de Lisboa, por se tratar de um magistrado.

O procurador Joaquim Moreira da Silva, do Tribunal da Relação de Lisboa, rejeitou, porém, voltar a ouvir todas todas as testemunhas que já tinham sido ouvidas na investigação, que acabou arquivada em dezembro sem encontrar qualquer crime. O mesmo em relação aos agora arguidos, optando por recuperar os depoimentos prestados há cerca de meio ano.

José Sócrates

O ex-primeiro ministro, José Sócrates, quer quer Carlos Alexandre e a sua funcionária sejam julgados

EPA

O inquérito a este caso tinha sido aberto a 5 de maio de 2021, depois de Ivo Rosa ter concluído na sua decisão sobre o caso Marquês que 128 dos 251 processos distribuídos no Ticão, entre setembro de 2014 e abril de 2015, tinham sido atribuídos manualmente. Por esta altura, já o Conselho Superior da Magistratura tinha também feito uma inspeção à forma como se sorteavam os processos e tinha concluído que, além do Marquês, também o processo dos Vistos Gold tinha sido atribuído de forma não eletrónica pela escrivã ao juiz Carlos Alexandre. O órgão que regula e disciplina os juízes concluiu que “ficou por provar o concreto modo pelo qual a referida senhora escrivã de direito chegou àquela atribuição”. E, não havendo motivos para participação disciplinar ou criminal, propunha a criação “de um grupo de trabalho para acompanhar e equacionar” a distribuição dos processos por via eletrónica, lê-se no relatório que consta no processo consultado pelo Observador.

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A distribuição de processos a que ninguém assistia

O juiz Carlos Alexandre, a quem foram atribuídos estes processos, acabaria por ser ouvido a 24 de junho entre as 14h42 e as 16h11 e explicou que, até abril de 2016, nunca assistiu à distribuição de qualquer processo — data a partir da qual passou a existir uma escala de magistrados para presidirem à distribuição. Até aqui, a distribuição era feita pelos funcionários sem qualquer magistrado. Aliás, o próprio “Ivo Rosa, entre setembro de 2015 (data em que assumiu funções no TCIC) e abril de 2016, também nunca presidiu a qualquer distribuição”, afirmou em sua defesa.

No seu depoimento, que consta no processo consultado pelo Observador, Alexandre reiterou desconhecer como os casos mais mediáticos lhe foram parar às mãos e descartou também qualquer “relação de proximidade” com Teresa Santos, a funcionária que lhe atribuiu o processo. De facto, afirmou, o magistrado reconheceu ter recomendado a funcionária para aquele lugar no TCIC, pela sua experiência, mas depressa a relação entre ambos esfriou, diz, pelo modo como ela geria a secção “com alguma rispidez”.

“Ivo Rosa entre setembro de 2015 (data em que assumiu funções no TCIC) e abril de 2016, também nunca presidiu a qualquer distribuição”
juiz Carlos Alexandre

Nas declarações que tinha feito ao inspetor do CSM, e que também fez questão de entregar neste processo, acabaria por dar mais pormenores sobre esse relacionamento que, a certa altura, terá arrefecido, como o próprio referiu. O magistrado explicou que Teresa Santos decidiu, “por motivos que desconhece”, “centralizar na sua posse todas as atividades de intermediação entre os juízes” — o que foi atestado por outros funcionários que também prestaram declarações no processo e que disseram que deixaram de poder entrar nos gabinetes dos magistrados e falar com eles diretamente. Houve mesmo uma funcionária que pediu para mudar de local de trabalho, queixando-se de Teresa Santos.

“Todo e qualquer papel avulso, correspondência, quer vinda de intervenientes processuais quer do DCIAP, e bem assim tudo o que viesse no carro da secretaria do DCIAP ou de outras entidades, como o DIAP, tinha de ser submetido à sua triagem, e por seu intermédio submetido aos juízes”, descreveu. Situação esta que, disse Carlos Alexandre, lhe causou “desagrado”, levando-o mesmo a manifestar esse sentimento à juiz que presidia à comarca, o que originou “um esfriamento” na relação entre ambos.

Esse afastamento foi sentido pelos restantes funcionários, embora não soubessem as razões. Terá sido de tal forma que Carlos Alexandre acabou por mudar a sua morada junto de algumas entidades, como a Associação Sindical de Juízes Portugueses, para não receber ali correspondência. Carlos “viu-se confrontado com o facto de até a sua correspondência pessoal ou proveniente da ASJP lhe ser entregue apenas por intermédio da senhora escrivã, o que motivou que alterasse a domiciliação de tal correspondência para a sua residência pessoal”, lê-se no depoimento que prestou ao CSM.

“[Teresa Santos] Certamente adotou as melhores práticas para garantir  a aleatoriedade da distribuição"
juiz Carlos Alexandre

Carlos Alexandre acredita, porém, que Teresa Santos cumpriu sempre as regras e que “certamente adotou as melhores práticas para garantir a aleatoriedade da distribuição, desconhecendo em absoluto o depoente a forma concreta como a senhora procedia a essas operações de distribuição”. A escrivã acabou por sair do Ticão na primavera de 2016 para ocupar o lugar de administradora judiciária na comarca de Lisboa Norte, segundo recordou Carlos Alexandre, frisando que ela nem “se despediu” do magistrado quando deixou de exercer função no Tribunal Central de Instrução Criminal.

O Citius teve vários problemas em 2014 com a reorganização judiciária

LUSA

Funcionária aponta dedo ao sistema informático

Dias antes de Carlos Alexandre, foi a própria Teresa Santos quem prestou declarações no processo, mas as suas críticas foram apenas dirigidas ao sistema informático. A funcionária explicou que “o sistema informático do TCIC funcionava mal pois nunca foi atualizado” e, por isso, os processos eram entregues por protocolo. O que, explicou, se prendia “especialmente com o carácter sigiloso da maior parte dos inquéritos e com o receio de intromissões abusivas no sistema informático”.

"O sistema informático do TCIC funcionava mal pois nunca foi atualizado"
Funcionária judicial Teresa Santos

Teresa Santos explicou então que a distribuição eletrónica era feita manualmente, colocando na capa alternadamente as letras “A” ou “B” — “A” para o juiz Carlos Alexandre e “B” para o juiz João Bártolo, o que chegou a gerar confusão. “Chegou a haver confusões por serem processos muito grandes e às vezes não era remetido o primeiro volume onde estava a letra. “Tal situação atingiu um estado insustentável”, explicou

Ivo Rosa teve que lembrar ao IGFEJ que quem manda são os tribunais

Carlos Alexandre, que chegou a ser o único juiz do Ticão ao longo de quase uma década, explicou também que até à reorganização judiciária, em 2014, todos os processos lhe eram naturalmente atribuídos. Só em setembro de 2014, quando o juiz João Bártolo chegou ao Ticão, se colocou a questão da distribuição. Na altura, com a reforma judiciária, a plataforma informática Citius ficou num verdadeiro estado de de sítio, ao transferir os processos dos tribunais extintos para os outros. “A entrada em vigor da reorganização judiciária teve várias vicissitudes, com situações de crash informático”, disse. Então, ele próprio sugeriu um novo modelo de distribuição ao Conselho Superior da Magistratura, que foi aceite, e que passava por manter nas suas mãos os processos em instrução que estavam pendentes; e os que dessem entrada a partir de 1 de setembro seriam atribuídos, alternadamente, entre o juiz 1 e o juiz 2.

Tribunais mudam mas não saem do mesmo Citius

Esta foi, aliás, uma das respostas que o Conselho Superior da Magistratura enviou ao juiz Ivo Rosa quando este, durante a instrução do processo Marquês, analisava as suspeitas levantadas pelas defesas de José Sócrates e de Armando Vara na distribuição dos processos. Os dois arguidos atacavam assim o juiz Carlos Alexandre e queriam mesmo que os atos por ele praticados fossem considerados nulos, derrubando assim a investigação. A informação do CSM foi, porém, ignorada por Ivo Rosa, por não versar sobre “a questão colocada nos autos”: a de saber o estado do funcionamento dos meios eletrónicos (Citius) em setembro de 2014, quando o processo Marquês foi distribuído manualmente a Carlos Alexandre.

Carlos Alexandre é agora arguido a pedido da defesa de Sócrates

JOÃO RELVAS/LUSA

Corria o mês de novembro de 2018 quando Ivo Rosa formalizou essa pergunta ao IGFEJ, que gere as plataformas informáticas dos tribunais, e a resposta deste instituto — afirmando que essa questão estava a ser alvo de uma inspeção do CSM — não agradou ao magistrado, levando Ivo Rosa a insistir que os tribunais “têm direito à coadjuvação das outras autoridades”. “Este TCIC ignora, uma vez que não dispõe de qualquer informação nos autos nesse sentido, a existência de qualquer auditoria do CSM sobre a questão em causa. Em todo o caso, a existir uma auditoria por parte do CSM, não será seguramente sobre a questão colocada neste autos, dado que a questão aqui em causa jurisdicional e a competência para a mesma compete a este tribunal”, respondia Ivo Rosa, visivelmente irritado com a falta de resposta. Nesse despacho, o juiz sublinhava que tinha dado cinco dias ao IGFEJ para responder e que o instituto não só não o tinha feito, como não tinha justificado as razões para não o fazer.

No início de dezembro desse ano, o IGFEJ respondia que a intervenção de 2014 sobre o sistema Citius tinha incidido sobre os tribunais a extinguir e os novos tribunais, descartando problemas no Ticão. “Atendendo que o TCIC é um tribunal de competência alargada, o mesmo não foi objeto de qualquer intervenção”. Mais: “Não há, no entanto, reporte de qualquer impossibilidade, tendo sido registado apenas um pedido de alteração de contadores, remetido pela comarca de Lisboa a 6 de novembro de 2014 e satisfeito nesse dia”, respondia, dando assim argumentos para Ivo Rosa reforçar as suas suspeitas. São, aliás, estes os argumentos que a defesa de Sócrates tem esgrimido no Tribunal da Relação de Lisboa, com uma próxima sessão agendada para 22 de abril.

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