Já estão disponíveis em Portugal dois fármacos para ajudar a deixar de fumar, comparticipados pelo Serviço Nacional de Saúde: o genérico do Champix (que era o único fármaco comparticipado, antes de ter sido retirado do mercado, em 2021) e o Xistab (que tem como substância ativa a citisiniclina). A medida é aplaudida pelos especialistas, mas a comparticipação destes dois medicamentos está sujeita a receita médica, o que pode constituir um obstáculo para os fumadores, tendo em conta a dificuldade de acesso a consultas de cessação tabágica. No SNS, o tempo de espera chega a um ano em muitos hospitais, diz a Sociedade Portuguesa de Pneumologia.
“Continuamos com muitas dificuldades de acesso às consultas de cessação tabágica”, uma situação, sublinha a pneumologista Sofia Ravara, que tem vindo a piorar desde a pandemia. “Têm fechado muitas consultas nos cuidados de saúde primários. O número de locais onde se faz consulta diminuiu, muitas consultas fecharam por causa da pandemia e não voltaram a abrir”, garante a médica, que trabalha no Hospital da Covilhã. Por outro lado, e sobretudo nas zonas onde há maior carência de médicos de família, as consultas de cessação tabágica passam para segundo plano, por falta de disponibilidade das equipas médicas. “Como os médicos de família estão sobrecarregados a tratar doenças crónicas e doentes com múltiplas comorbilidades (e têm de lidar com muita burocracia) não têm tempo para a cessação tabágica”, diz a especialista, também professora na Universidade da Beira Interior.
Consultas nos centros de saúde e hospitais “são insuficientes”, diz pneumologista Sofia Ravara
A consequência é que muitos doentes ficam sem acesso a estas consultas nos cuidados de proximidade e os hospitais não conseguem dar resposta a todas as solicitações. “Por outro lado, é difícil escoar os fumadores que são referenciados no SNS para as consultas, porque elas são insuficientes“, diz a médica.
“Há muitos centros de saúde onde estas consultas não existem e a cobertura está muito longe daquela de que necessitaríamos. Deveríamos ter um acesso generalizado e rápido e não é isso que acontece“, lamenta o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, António Morais. A juntar à falta de recursos médicos, acresce que tem vindo a aumentar, nos últimos anos, a procura por este tipo de consultas, o que levou a um agravamento dos tempos de espera, que podem chegar a ultrapassar um ano, realça Sofia Ravara. É, por exemplo, o caso dos Hospitais de Coimbra. “Recebi email de uma fumadora que diz que a médica de família não a referencia porque a lista de espera no hospital de Coimbra é muito grande, mais de um ano”, conta a médica.
“A procura aumentou porque cada vez mais os fumadores sabem que existe tratamento e procuram-no. E muitos deles não o encontram, ficam desesperados. E, em resultado disso, os tempos de espera aumentaram, mas sempre existiram porque não há uma organização eficiente dos serviços de cessação tabágica em Portugal”, lamenta a também coordenadora da Comissão de Trabalho do Tabagismo da Sociedade Portuguesa de Pneumologia.
Fumadores têm a partir de outubro dois medicamentos comparticipados para largar o vício
Os elevados tempo de espera prejudicam, muitas vezes, a motivação dos fumadores, o que dificulta o processo de desabituação. “O tempo de espera [para as consultas] desincentiva as pessoas, que se perdem e acabam por se esquecer que têm a consulta dali a mais de um ano. A motivação tem altos e baixos e varia ao longo do tempo e temos de aproveitar aquela janela de motivação”, explica a médica.
Pneumologistas criticam desinvestimento na área da cessação tabágica
Não há, no entanto, números atualizados relativos ao número de locais onde se realizam estas consultas ou números referentes aos tempos de espera, como acontece com a generalidade das consultas hospitalares. Os últimos dados (avançados pela Direção Geral da Saúde à Lusa), reportam-se ao ano de 2022 e apontam para a existência de 152 locais de consulta, uma redução significativa face aos 235 registados em 2019, ainda antes da pandemia. Também o número total de consultas realizado continuava, nesse ano, abaixo do período pré-pandemia: foram realizadas quase 33 mil consultas, face às cerca de 42 mil de 2019. O Observador solicitou à DGS os dados relativos ao ano passado, mas não obteve resposta.
“Quando há uma crise ou sobrecarga no SNS, por causa da gripe ou, mais recentemente, da pandemia de Covid, [estas consultas] são sempre as primeiras a serem afetadas. Há um desinvestimento”, critica Sofia Ravara, que defende é “necessário um aumento de consultas” e, também, alguma inovação, com uma aposta nas consultas de seguimento à distância — uma prática que a pneumologista já iniciou no Hospital da Covilhã e que, salienta, tem várias vantagens. “A consulta de cessação tabágica é das consultas em que o seguimento não presencial é mais eficaz. Remove muitos obstáculos”, realça.
Para o presidente da Sociedade Portuguesa de Pneumologia, as consultas de cessação tabágica não devem estar limitadas aos serviços de Pneumologia. “Todos os serviços que tratam doentes que têm doenças relacionadas com o tabaco (Cardiologia, Pneumologia, Oncologia, Cirurgia Vascular) deveriam ter consultas de cessação tabágica, mas só existem essencialmente na Pneumologia e não há uma coordenação com os cuidados de saúde primários”, realça António Morais.
Sofia Ravara sublinha que “a cessação tabágica é a medida mais eficaz para, num período, diminuir a mortalidade e a doença associada ao tabaco”. E sublinha que travar o consumo de tabaco deve ser uma intervenção considerada prioritária para os médicos. “Sabemos que a primeira linha de tratamento de uma doença crónica (seja a diabetes, seja uma doença respiratória ou cardíaca) é deixar de fumar. É das primeiras medidas que os médicos devem tomar”, realça a pneumologista, lamentando, contudo, que “nem todos [0s médicos] tenham formação para tratar os fumadores e fazer aconselhamento sem aumentar a resistência do fumador”.
Para a especialista, uma intervenção eficaz (no sentido de combater o consumo em massa de tabaco) requer uma conjugação de quatro fatores: uma regulação eficaz, que passa, defende Sofia Ravara, por “estender os ambientes sociais sem fumo de tabaco e sem nicotina, por um aumento sério do custo do tabaco todos os anos e um preço mínimo alto, para evitar que as pessoas mudem para as cigarrilhas, tabaco de enrolar ou aquecido”; campanhas de sensibilização para os fumadores, “difundidas nas redes sociais, nos locais de trabalho”; uma intervenção clínica de rotina breve por parte dos médicos, uma vez que, realça, “faz parte do papel do médicos saber motivar o doente a deixar de fumar e não dizer só que as pessoas devem deixar de fumar (isso não é nenhuma intervenção); e um acesso facilitado a programas de cessação abrangentes, com medicamentos de baixo custo, linha telefónica SOS, rede de consultas alargada com seguimento telefónico e telemedicina, programas nos locais de trabalho e na comunidade.
Dois fármacos comparticipados pelo SNS: custam 26 e 60 euros/mês
Foi precisamente no âmbito dos medicamentos que o Infarmed avançou na última semana, quando aprovou a comparticipação de dois medicamentos para deixar de fumar: um genérico do conhecido Champix (com a substância ativa Vareniclina) e o Xistab (com a substância ativa Citisiniclina). Ao Observador, a autoridade nacional do medicamento confirma que os dois já estão disponíveis com comparticipação — uma decisão aplaudida pelos pneumologistas.
“O facto de a Vareniclina ter voltado a estar comparticipada vai permitir dar um novo impulso às consultas de cessação tabágica. É uma medida positiva para os fumadores”, realça António Morais. Os dois fármacos triplicam a taxa de sucesso do tratamento e têm uma eficácia elevada, com mais de 50% das pessoas a conseguirem deixar de fumar, garante Sofia Ravara. O medicamento genérico custa 26 euros por mês, durante três meses, enquanto fumar um maço de trabalho por dia custa entre 120 e 150 euros/mês, cerca de cinco vezes mais, compara a pneumologista do Hospital da Covilhã. O outro fármaco (o Xistab) tem um custo mais alto, uma vez que não está disponível na forma de genérico, e custa 60 euros/mês.
A médica explica que existem dois tipos de fármacos para deixar de fumar: os substitutos de nicotina (a substância que causa dependência), e que tratam “a privação e o aliviam o sofrimento que o fumador sente ao parar de fumar”; e ainda os medicamentos não-nicotínicos (de que são exemplo os dois fármacos que agora obtiveram comparticipação), em forma de comprimidos, “que têm um mecanismo de ação específico para os recetores nicotínicos cerebrais, responsáveis pela dependência”. “Como bloqueiam estes recetores, conseguem diminuir o desejo e a recompensa psicológica de fumar e tratam a privação nicotínica”, detalha a pneumologista.
“O fumador começa a tomar os comprimidos ainda a fumar, e a partir da segunda semana começa a sentir que está a reduzir o consumo, sem esforço, e já não tem tanta vontade de fumar. Já consegue passar mais horas sem fumar, até que chega a uma altura em que já está confiante para parar e ajudamos com aconselhamento prático, mantendo a medicação (as pessoas não ficam ansiosas, conseguem concentrar-se no trabalho, não têm alterações de humor)”, explica, acrescentando que “a medicação ajuda muito os fumadores, torna o processo mais fácil e tranquilo e dá-lhes confiança para persistirem e conseguirem manter a abstinência”.
Sofia Ravara garante que estes dois fármacos são igualmente eficazes para quem consome outras formas de tabaco. “O tabaco aquecido, o cachimbo de água e os cigarros eletrónicos são tudo dispositivos de nicotina inalada e o problema é esse. São veículos rápidos de fornecimento de nicotina através da via pulmonar. E em 10 segundos a nicotina atinge o cérebro e causa dependência. E há estudos que mostram que o tabaco aquecido e os cigarros eletrónicos são mais aditivos do que os cigarros normais. Isto é uma indústria que vicia para lucrar”, acusa a médica, sublinhando que algumas pessoas que deixaram o tabaco normal e passaram a fumar o tabaco aquecido “passaram a fumar mais”.
“Não há consumo seguro”, sublinha a médica. As outras formas de tabaco “contêm muitas substâncias tóxicas, carcinogénicas e irritantes, embora em menor quantidade”, acrescenta Sofia Ravara.
A especialista ressalva que, apesar do elevado grau de eficácia, estes medicamentos não garantem que alguém se mantém muito tempo sem fumar. Esse tempo, vinca, “não depende da medicação”, mas sim do contexto e das políticas de controlo de tabagismo. “Por isso é que muito importante que o preço seja alto, que não haja marketing da indústria. E que a proibição de usar tabaco e nicotina seja abrangente: aos locais públicos fechados sem exceção e até espaços exteriores, como esplanadas, terraços, paragens de autocarros, recintos desportivos e de espetáculos”, defende a médica, criticando os aumentos anuais no preço do tabaco (entre 5 e 10 cêntimos por maço) que diz serem “escandalosamente insuficientes”. “O governo tem hipótese de aumentar eficazmente a taxação, isso tem de acontecer todos os anos. Na Irlanda, um maço de tabaco custa 12 euros, aqui compramos cigarrilhas por três euros”, compara.