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Sophie Bassouls

Sophie Bassouls

James Baldwin: 100 anos do "sobrevivente da última rebelião de escravos"

Nativo do Harlem, exilado em Paris, James Baldwin, o escritor que ousou amar a sua herança de negro e filho da terra é, no centenário do seu nascimento, o rosto da justiça que falta cumprir.

“Não gosto de quem gosta de mim porque sou negro”, afirma logo à entrada do seu livro Notas de Um Filho da Terra (Alfaguara), um conjunto de ensaios onde pratica uma espécie de semiótica desafiadora e desconfortável sobre a forma como os negros são retratados na cultura  e na sociedade americana. Se a esta frase juntarmos o já famoso slogan “eu não sou o teu negro”, do manuscrito inacabado “Remember This House, que deu origem ao documentário, de 2016, I’m Not Your Negro, temos um retrato do homem carismático, absolutamente desassombrado, sem fé, que cedo percebeu que dele se esperava duas coisas: que fosse um negro agradecido para os bem intencionados colocarem na lapela do “progresso”, ou que fosse um criminoso sobre o qual outros pudessem disparar.

Um homem que, na verdade, decidiu não fazer a vontade nem a uns nem a outros porque acreditava que a única salvação para os negros seria “fazerem sempre o que não é esperado”. Esse “não esperado” era a afirmação não da condição social, mas da alma humana, demasiado humana, nos seus abismos, ambiguidades, paradoxos, amores, violências, individualidade, intimidade. Era a rejeição enfática do discurso que coloca sempre os negros num contexto social, coletivo, seja para falar de liberdade, de felicidade ou de crime e encarceramento, que diz que “eles nunca estão sós”, “eles não têm vida interior”, como tal, estão “condenados” a ser um objeto para proselitistas, catequistas, liberais.

James Baldwin, em Paris, para onde se mudou, em 1948, e onde experimentou ter uma vida “normal” entre intelectuais e expatriados

Quando decide dar ao volume de ensaios o titulo Notes of a Native Son, lançado agora pela Alfaguara para celebrar a passagem dos cem anos do seu nascimento, fá-lo como uma desafiadora  resposta ao escritor Richard Wright , negro e autor do livro aclamado Native Son, um romance de protesto que, para Baldwin, corporiza toda uma série de imagens da negritude criadas pelos brancos e interiorizadas pelos afro-americanos, tal como já o fizera o sentimentalista A Cabana do Tio Tom, também conhecido como A Cabana do pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe  — e muitos outros romances, filmes, musicas que ele escalpeliza com dureza e ironia ao longo destes ensaios, nos quais ele se coloca mesmo na posição de “branco”, acentuando o tom provocatório, mas nunca gratuito.

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É desta incrível brutalidade que nasce o mito do pretinho feliz de E Tudo o Vento Levou. E os norte-americanos parecem acreditar nessas lendas, que eles próprios criaram e que absolutamente nada na realidade corrobora até hoje (…)”

Esta obra, publicada em 1955, será para muitos a resposta que esperavam, mas para outros, sobretudo para os negros, uma espécie de traição. Porém, foi esse gesto ousado de, recusando toda e qualquer condescendência, se afirmar como um orgulhoso filho da terra, da herança bela e trágica dos negros e dos brancos, que lhe possibilitou deixar uma obra romanesca, poética, ensaística que se constitui, também, como um gesto de resistência de um povo a quem é negado, todos os dias, o direito de existir.

Ao longo de quatro décadas, fará sem cessar uma análise lapidar da sociedade americana, dos seus mitos, das suas máscaras, dos seus monstros. Tendo subjacente a ideia socrática do “conhece-te a ti mesmo”, Baldwin, que tinha o dom da palavra certa, fará  uma exortação à libertação dos homens e mulheres de toda e qualquer classificação que os condene à indignidade e à desumanização. Lembrando sempre que também os brancos precisam de se libertar das ilusões da sua branquitude, do seu “suposto” humanismo e civilidade cristã, que os vários séculos de escravatura e genocídio de negros, índios ou judeus não cessam de desmentir.

A palavra como rebelião

“Sou um sobrevivente da última rebelião de escravos”, escreverá em 1979, referindo-se às convulsões dos anos de luta pelos direitos civis americanos que mataram centenas de negros, entre eles Martin Luther King Jr., Malcom X e Medgar Evans. Aquilo que escreve terá, também, o objetivo de contrariar o esquecimento dos negros de que a sua condição de escravos não acabou com o fim do esclavagismo, apenas mudou de feição. Tornou-se menos material, os castigos tornaram-se menos visíveis, já não existem sob a forma de chicotadas mas de condenação à pobreza, à segregação, ao desemprego, à miséria espiritual, à musica como único lugar onde é permitido aos negros se destacarem, ao sentimentalismo que é sempre uma máscara para a crueldade e para a incapacidade de experimentar o lugar dos outros.

Ele [o negro] é sempre um problema social e não pessoal ou humano; pensar nele é pensar em estatísticas, bairros de lata, violações, injustiças, uma violência remota; é ser confrontado com uma catalogação interminável de perdas e ganhos, conflitos; é sentir-se virtuoso, indignado, impotente, como se o seu estatuto entre nós fosse de alguma forma análogo a uma doença (…) que tem que ser controlada (…) a nossa desumanização do Negro é então indivisível da desumanização de nós próprios (…)

[James Baldwin, Notas de Um Filho da Terra]

Mas James Baldwin é o sobrevivente de várias margens; filho de uma rapariga solteira, adotado por um pastor batista, puritano e violento que amou com temor e reverência como a um deus, pobre, sensível, leitor fervoroso, homossexual, segregado em escolas, empregos, restaurantes, autocarros, suficientemente sagaz para perceber a sua condição para lá dos paliativos da religião e das promessas políticas, irremediavelmente melancólico, mas teimosamente persistente. Nasceu como um escravo no Harlem, morreu como um príncipe, no sul de França, sem nunca ceder nem à vergonha, nem ao ódio.

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James Baldwin, a discursar numa igreja, em 1963, durante a luta pelos direitos civis

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James herdou o sobrenome Baldwin, do padrasto, que o destinou a ser pastor e o educou com o Antigo Testamento. À revelia do destino que o esperava, James leu Dostoievski, foi trotskista, tornou-se demasiado amigo de brancos, especialmente judeus, desejou ardentemente ser dramaturgo, teve acessos de fúria em lugares onde se recusavam a atendê-lo por “ser negro”. A morte deste pai, e o funeral no dia em que James cumpriu 19 anos, estão descritos num dos textos que integra o volume Notas de um Filho da Terra. Um texto de uma violência lancinante que “enche o ar de gritos” e nos torna “parte da dor do universo”, sem nunca cometer os dois pecados tão em voga na literatura atual: o sentimentalismo desonesto e a descrição hiper-realista e espúria das feridas emocionais. A absoluta contenção abre espaço para o leitor ver com perplexidade e terror a sua própria vida. É que mesmo quando parece falar só dos negros, Baldwin, está sempre a falar de experiências transversais à condição humana.

Não se trata de uma questão de memória. Édipo não se lembrava das correias que lhe atavam os pés; no entanto, as marcas que elas deixaram testemunham a desgraça em direção à qual os seus pés o dirigiam (…)”

Apesar de ter decidido tornar-se escritor e não pastor, ele que, aos 14 anos, já escrevia e ministrava sermões manteve sempre um forte vinculo à palavra falada; o ato de fala surge em vários títulos dos seus livros, desde logo o primeiro, Go Tell it to the Mountain, de 1953, Tell Me How Long the Train’s Been Gone, de 1968, If Beale Street Could Talk, de 1974, (adaptado ao cinema em 2018). Mas, será durante a década de 60, quando regressa aos EUA, depois uma década a viver em Paris, que o seu talento como orador se afirma e ajuda a celebrizá-lo como uma das vozes mais importantes da luta pelos direitos dos negros. Os seus discursos nas universidades americanas, o seu pensamento claro,  materializa-se como implacável no discurso, onde a dureza do que diz contrasta com os seus modos delicados, refinados, a sofisticação das roupas, cigarro sempre acesso entre os dedos magros.

Torna-se uma presença constante nas televisões, desarma entrevistadores com olhares carregados de sarcasmo e desprezo, contrapõe filósofos e teorias com os factos esmagadores da violência sobre os negros, a “experiência de andar na rua sempre com uma arma invisível apontada às costas”. O seu repto contra a violência dos negros, que os leva inevitavelmente a colapsar no preconceito dos brancos e a cumprir uma espécie de profecia, fá-lo-á rejeitar o grupo Black Panthers e de novo ser considerado um traidor. Escreverá também contra William Faulkner, cuja obra considera ser uma forma de continuar a adiar a desegregação.

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Com os atores Charlton Heston, Harry Belafonte e Marlon Brando para ouvirem o famoso discurso de Martin Luther King Jr., "I Have a Dream", em 1963

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A vida normal que experimenta em Paris, são para ele a prova de que a sociedade americana é profundamente doente. Escreve também sobre a homossexualidade, a partir da ideia de que o amor e a intimidade são a única forma de verdade, de risco, e de abismo. Um desses romances, O Quarto de Giovani, está publicado em Portugal, também pela Alfaguara, que tem vindo a traduzir a obra deste escritor, que o século XXI tem confirmado como uma das vozes literárias mais articuladas e incisivas sobre a sociedade americana. Num dos arquivos da CIA encontra-se a nota: “escritor, provavelmente homossexual, que nada faz para o esconder”.

Em 1970, compra uma casa em Saint-Paul-de Vence, no sul de França, na qual viverá os 17 anos seguintes, até à sua morte, em 1987. Apesar da intensa vida social que cultivou, da extensa produção literária, que se traduz em dezenas de obras, ensaios, romances, teatro, crítica literária e cinematográfica, poesia, manteve sempre, para com o mundo, a distância de quem observa. A realidade sentia-a como uma prisão da qual era preciso libertar-se para a alma se cumprir.

“No fim, a coisa mais difícil (e mais gratificante) da minha vida foi o facto de ter nascido Negro e ter sido forçado, por isso, a fazer uma trégua com a realidade”, escreve no prefácio de Notas de Um Filho da Terra  e depois, recorda uma canção que escreveu no fim da infância: “corri até à rocha para esconder o meu rosto: a rocha gritou, aqui não há esconderijo”. Desafiar a rocha foi sempre a sua condição.

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