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James Joyce (1882-1941), Irish writer. Paris, 1934
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Roger Viollet via Getty Images

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James Joyce e um monstro chamado "Ulisses": 100 anos da mais moderna das ficções

A 2 de fevereiro de 1922 era publicado o romance que fundou a modernidade literária. Um século depois, como é que a minúcia, a obsessão e a mestria de James Joyce continuam a influenciar o mundo?

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A mãe de Stephen Dedalus morreu. Segundo o seu amigo Mulligan, foi ele que a matou, ao não ser capaz de respeitar o pedido da moribunda para que se ajoelhasse e fizesse com ela o sinal da cruz. Stephen passa umas horas com o seu companheiro de casa e com o inglês que Mulligan infiltrou na torre em que vivem, antes de ir para a escola, dar aulas a crianças pouco interessadas na matéria. Vagueia por Dublin, vai visitar um tio, descansa numa praia, tem uns encontros pouco morais.

Leopold Bloom vai ter de assistir a um enterro. Prepara-se para tomar o pequeno-almoço com a mulher, Molly, ataca-o uma vontade de comer rim, passeia até ao talho, compra o rim e quase deixa que ele queime quando se esquece dele na frigideira. Encontra um conhecido que se tenta livrar da maçadora homenagem ao morto. Entra na igreja, assiste à cerimónia, alivia o peso da cerimónia com um hammam, entra num carro. Passa por Stephen, a caminho da casa da tia, para grande irritação do Senhor Dedalus, pai de Stephen, que partilha o carro com Bloom.

Ambos, Stephen e Leopold, vão à biblioteca. Molly encontra-se com o seu amante. Bloom masturba-se a olhar para uma rapariga. Stephen vai a um bordel. Bloom leva-o até casa. É isto: 24 horas, um dia inteiro, duas personagens fundamentais, um delírio estilístico, um labirinto de referências e textos cruzados, episódios que arrastam caudas nupciais de símbolos, experiências loucas, inconstantes, uma escrita forjada entre os esquemas dos tratados teológicos medievais e os trocadilhos, paródias linguísticas, pastiches, meditações filosóficas, o mais baixo e o mais alto, o ser humano em toda a sua amplitude. Eis Ulisses, a Bíblia da modernidade.

O mito contemporâneo do escritor obsessivo

Não foi apenas Ulisses a imprimir o carácter da literatura contemporânea. O próprio James Joyce (nasceu a 2 de fevereiro de 1882, faria 140 anos neste dia em que a sua obra maior cumpre 100) marcou, decisivamente, a imagem do escritor do nosso tempo. Joyce foi um nómada europeu com o coração ancorado na sua Irlanda natal; na Dublin pequena e provinciana e no espírito do catolicismo pobre e minoritário, nos colégios jesuítas em que estudou e naquela paixão entre o cândido e o devasso pela sua famosa mulher, Nora Barnacle, todos transportados impiedosamente para a sua literatura, numa estranha forma de homenagem.

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James Joyce with Family

Joyce com a família em Paris, em 1934. Ao lado do autor, em pé, a mulher, Nora Barnacle. Sentados, o filho e a nora, com o neto

Bettmann Archive

Não houve outro escritor que encarnasse tão bem a transição dos arquétipos sociais dos escritores novecentistas, da versão azeda e pobre dos escritores malditos para a imagem festiva dos grandes boémios parisienses. Nem a Lost Generation americana representa tão bem a ideia do escritor que arranca a própria pele para ter onde escrever. O Joyce que viveu entre Trieste e Paris, que fez Sylvia Beach, fundadora da Shakespeare & Co., publicar o seu poderoso romance, contribuindo assim para a lenda da livraria dos escritores boémios, esse Joyce que nunca saiu de casa, mas que também nunca teve um verdadeiro teto, marca toda a ideia contemporânea do escritor obsessivo, desligado do mundo, que vive para a sua literatura com um desprendimento tal que parece sempre nas vascas de ver o seu génio diluído pela loucura ou pelo capricho.

100 anos depois, eis “Ulisses” e “O Malhadinhas”

Num tempo em que Paris abarrotava de escritores pouco interessados em grandes carreiras, dispostos a aceitar medíocres trabalhos no ensino ou no jornalismo, Joyce foi aquele que mais longe levou a ideia de que a literatura, de alguma forma, implicava o sacrifício da vida. Entrou nas antologias de Pound, escreveu para revistas literárias, andou pela Shakespeare & co. e pelo grupo da Bloomsbury, sim; no entanto, também os deixou em acessos repentinos que o levavam a insular-se na Croácia ou em Itália.

A vida de Joyce tem pouco interesse se por interesse tomarmos uma presença nos grandes palcos ou nas decisões centrais do século; no entanto, aquela vida errática e desordenada é talvez a representação mais fiel do espírito que animou os grandes nomes da literatura europeia do princípio do século.

"Ulisses" é uma obra sobre o excesso e é feita de excesso, e uma das coisas interessantes que o livro mostra é como o excesso de precisão e de descrição, a minúcia no pormenor e o varrimento de todos os significados acaba, também ele, por criar estranheza. "Ulisses" a mais moderna das ficções. No entanto, é também, em muitos sentidos, a mais antiga.

O livro mais reescrito do século XX

Não é fácil gostar de Ulisses, gostar, no sentido mais comum do termo, dado que o gosto parece uma categoria desadequada quando se quer olhar para a obra-prima de James Joyce. Este é o livro mais reescrito do século XX, o papel sobre o qual se imprimiram todas as grandes obras a propósito do significado da arte contemporânea. É Ulisses o símbolo e o objeto destas obras, o exemplo mais cabal daquilo que falam os maiores tratados de estética contemporânea. Ora, se as interpretações sobre o romance contemporâneo divergem e têm mais chaves de leitura do que as muitas moradas que existem no reino das letras, há um ponto que parece unânime.

A grande literatura do século XX, como explicava Ortega y Gasset, já não se contenta apenas em afagar o gosto. Já não lhe basta que o leitor olhe pela janela e goste da paisagem. A literatura do século XX precisa, obsessivamente, de mostrar que existe o vidro. Há no romance contemporâneo a noção de que o divertimento romanesco assenta num engano, num fingimento que Joyce, ou Kafka, ou Robbe-Grillet não estão dispostos a aceitar. A primeira premissa para olhar para Ulisses é, então, essa. Pouco importa se o leitor gosta de Ulisses; Ulisses não está a falar ao gosto. O que importa é perceber se Ulisses é verdade. Se consegue, de alguma maneira, dar uma ideia mais clara do vidro, daquilo que é a literatura e do modo como os seus processos provocam em nós sensações e estados de espírito.

Há, no entanto, outro aspeto intrinsecamente contemporâneo em Ulisses que nos parece importante frisar. A ideia avançada por Eco, de que o carácter mais distintivo da obra contemporânea é a sua abertura, tem em Ulisses um significado maior do que em qualquer livro. A tese de Eco baseia-se na incomunicabilidade que existe sempre entre quem escreve e quem lê. Há sempre, na passagem, uma perda, que torna a comunicação direta mais pobre. O grande desafio da arte é o de conseguir contornar esta incomunicabilidade, conservando a riqueza da obra. Isto implica que a obra não seja de uma comunicação tão direta, que seja de algum modo aberta, isto é, que obrigue o leitor a um esforço que não é meramente passivo.

Exemplar da primeira edição de "Ulisses", de fevereiro de 1922, publicado pela Paris Shakespeare

Do mesmo modo que não é exatamente claro sobre o que fala Kafka quando escreve, do mesmo modo que parece sempre haver uma série de elementos em falta na construção dos seus enredos e que são esses mesmos elementos em falta que lhe dão toda a estranheza e o interesse, em Ulisses também há um modo de contornar esta incomunicabilidade. É um modo, talvez, oposto: a quantidade de símbolos e remissões é tão avassaladora, há uma gama de significados tão rica em cada frase, cada episódio, que é possível navegar entre livros diferentes sempre dentro da leitura de Ulisses. É, de facto, possível ler um Ulisses voltado para a emulação assassina da epopeia homérica, como é possível ver um grande fresco sobre o sufoco da Irlanda ou sobre o peso das heranças judaica e cristã. Ulisses é, também, uma obra sobre o excesso e é feita de excesso, e uma das coisas interessantes que o livro mostra é como o excesso de precisão e de descrição, a minúcia no pormenor e o varrimento de todos os significados acaba, também ele, por criar estranheza.

Esta estranheza leva-nos àquilo que nos parece ser mais interessante no cômputo geral do livro. Há uma série de elementos, alguns deles já expostos, que fazem de Ulisses a mais moderna das ficções. No entanto, é também, em muitos sentidos, a mais antiga. É claro que Ulisses é, também, uma viagem e uma viagem com paralelos declarados com a do Odisseu de Homero. No entanto, esta espécie de atualização do herói grego é feita de um modo muito peculiar. Enquanto a viagem de Ulisses-herói é uma viagem de regresso, a de Bloom é uma viagem por casa. E se Ulisses cumpre o seu propósito, a de Bloom não parece sequer ter propósito. Ainda assim, aquilo que mais impressiona no dia de Leopold Bloom não é a sua errância meio perdida – esse é um traço comum a muita da literatura da época, dos Cadernos de Malte Laurids Brigge ao Livro do Desassossego; o que é verdadeiramente chocante é o contraste entre a banalidade do dia de Bloom e o peso literário que a narração carrega.

Author James Joyce and Publisher

O escritor James Joyce (à direita) no escritório da editora Sylvia Beach (à esquerda), em Paris

Bettmann Archive

Joyce é muito hábil na colagem entre o modo como escreve e aquilo que escreve. As cenas mais sórdidas estão carregadas de linguagem sórdida, as mais ridículas de trocadilhos e infantilidades, os grandes excessos e as ruturas com os comportamentos tradicionais também trazem os mais arrojados trechos de fluxos de consciência, onomatopeias e frases sincréticas. Molly, para dar apenas um exemplo, cantará num evento especial o trecho de Don Giovanni, La ci darem la mano, em que Zerlina exprime a hesitação a respeito de Don Giovanni, antes de ceder aos sentimentos que a seduzem. A música regressa permanentemente ao pensamento de Bloom, que será traído por Molly, também ela uma Zerlina posta num casamento desinteressante. A tese de Stephen sobre Hamlet tem uma relação clara com o casamento dos Bloom, a graça anti-semita que, no princípio do livro, o diretor da escola conta a Dedalus terá uma espécie de desenvolvimento em todo o sentimento de estranheza que acompanha o dia de Bloom, e a quantidade de exemplos deste género é incontável.

Um mundo sufocante pelo peso de tudo o que o rodeia

É curioso, então, que a narração de um dia pretensamente simples, cheio de banalidades, seja abafado pela simbólica mais barroca e remeta constantemente para a mais grandiloquente tradição literária, filosófica e religiosa do Ocidente.

Há, é certo, vários casos na literatura que nos tentam convencer do valor épico da simplicidade, que tentam elevar histórias de amor prosaicas aos cumes de Eros e de Platão; o excesso de Joyce, porém, não eleva, nem procura elevar, a narrativa. A comparação entre o almoço de Bloom – uma sanduíche de queijo – com a gesta de Ulisses entre os Lestrigões, os canibais, é um bom exemplo disto. Dedalus está longe de ser um “maldito jesuíta”, como lhe chama Mulligan, não há nada nas conversas básicas dos estudantes que leve às intrincadas questões teológicas do Arianismo contra a Ortodoxia, nada naquelas vidas se relaciona com estes mundos heroicos e profundos, a não ser pelo evidente contraste entre umas e outras. Este parece-nos ser o traço mais constante numa obra tão cheia de variações. A gesta de Bloom e de Dedalus é a grande jornada sobre a dificuldade em lidar com uma tradição rica; sobre o modo como esta pode oprimir pela distância entre os grandes heróis e as vidas quotidianas, e sobre o modo como é difícil para um homem e para um artista integrá-la e integrar-se nela.

Ulisses, o livro que abarca a teologia, a etnografia e o simbolismo do modo mais fanático é, por isso mesmo, um pária dentro da tradição intelectual. Esta relação do livro com a tradição é, também, a relação entre pais e filhos tal como ela nos é dada por Joyce.

É nesse sentido que nos parecem particularmente significativas as duas mortes mais importantes do livro. A Stephen morreu a mãe, uma mãe que ele não foi capaz de contentar, persignando-se. Várias vezes se repete o mote – In nomine patris… — quer na voz da consciência irritante que Mulligan traz, quer nos vários capítulos em que se medita sobre a filiação e sobre esta trindade que Stephen foi incapaz de invocar. A ideia de que o amor mais próximo lhe está vedado pela incapacidade de corresponder à tradição casa, também, com a ideia de que Bloom, a quem morreu o filho, não tem ninguém a quem passar aquilo que tem.

A exegese tem, com razão, claro, feito de Stephen o Telémaco e de Bloom o Ulisses, filho e pai. Ora, o que nos parece é que esta relação de pai e filho, a dificuldade desta relação, ultrapassa as relações entre as personagens e é mesmo o mote principal de todo o livro. É ela que determina o estilo, no desajuste, na incomunicabilidade própria de uma relação que é ao mesmo tempo feita de amor e de estranheza, de culpa e de inacessibilidade. Homero, Tomás de Aquino, Ário, Wilde, o latim, o irlandês popular, este é um romance mergulhado em toda a cultura, mas de tal modo que esta transforma o livro num estranho e o repele.

Ulisses, o livro que abarca a teologia, a etnografia e o simbolismo do modo mais fanático é, por isso mesmo, um pária dentro da tradição intelectual. Esta relação do livro com a tradição é, também, a relação entre pais e filhos tal como ela nos é dada por Joyce. Stephen não é bem um filho, nem do seu verdadeiro pai que se enche de orgulho com o filho de quem odeia os comportamentos, nem da sua mãe que “mata de desgosto” nem de Bloom. Há uma inacessibilidade feita de proximidade, de estar imerso no mundo de todos eles de um modo que não lhe consegue pertencer verdadeiramente.

O mundo de Ulisses é um mundo sufocante pelo peso de tudo o que o rodeia. Nem se vive verdadeiramente no mundo da Odisseia, já que a banalidade prosaica não o deixa, nem o mundo da Odisseia nos deixa estar integrados no quotidiano, como animais.

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