Nos estúdios em Campo de Ourique, Lisboa, onde está a finalizar a mistura e masterização do seu primeiro álbum (ainda sem data de edição anunciada), Janeiro passou alguns dos seus momentos mais importantes como músico. “Uma vez comecei a chorar aqui”, conta. Um dia tinha “um teclado MIDI e um microfone barato”, com que gravou o seu primeiro EP (que pode ser ouvido aqui), no outro já “tinha tudo. E agora, o que é que eu vou usar?”, perguntou-se.
Acabou por usar muita coisa. Além dos músicos convidados, “compus, toquei guitarra e cantei, fiz voz principal e coros. Também toquei uns sintetizadores. Ah, e produzi uns beats numa MPC Akai”, uma ferramenta mais usada em áreas como o hip hop e R&B, conta Janeiro, na sua primeira grande entrevista depois de ter passado à final do Festival da Canção, com o tema “(sem título)”.
Ao Observador, Janeiro apresentou quatro temas novos, onde se ouvem ecos da pop e de standards do jazz, em que se mistura D’Angelo com Rui Veloso e em que sobretudo se fala de amor e desamor. “Só sei escrever sobre isso: o amor, o desamor, as mulheres com quem estou, os amigos, os amigos que vão embora…” As letras do primeiro álbum assim o mostram: “Se pensas que eu sou fraco, fraco só sou de amor”, ouve-se numa canção, “Vamos só ficar despenteados / está tudo tão sossegado”, ouve-se noutra, entre tiradas como “Preguiça afunda o meu estado de existir / nunca saio do sofá”, “Sinceramente de cinismo eu já estou farto” e “Se não tens nada para dizer toma coisas para viver”.
É com Frank Ocean, uma das referências deste jovem músico de 23 anos, a tocar como música de fundo, que Janeiro abre o livro sobre o seu percurso: conta como foi a sua infância em Coimbra e posterior mudança para Lisboa, como conheceu Salvador Sobral (“Houve uma empatia imediata entre nós, de repente pensámos os dois: este tipo podia ser super meu amigo”), explica porque decidiu comer uma banana em direto enquanto falava para a RTP, na semi-final do festival (“Não quero que as pessoas pensem que é arrogância, é uma atitude subversiva para mostrar irreverência — I mean well“) e revela ainda o que está a preparar para a final: “Vou tentar ser o mais ‘eu’ possível, mas não sendo tão subversivo”.
[na primeira semifinal do Festival da Canção:]
“Disse à minha mãe: vou estudar gestão e vou ganhar dinheiro”
Numa entrevista já antiga à Nova Magazine [revista da Universidade Nova, que Janeiro frequentou] dizia que o seu pai ouvia muito rock e a sua mãe bossa-nova. A música entrou muito cedo na sua vida?
A minha mãe ouvia muita música comigo no carro, aos berros — Bethânia, discos da Gal Costa (há um acústico da Gal ao vivo que é lindo) — e o meu pai ouvia mais rock, Lou Reed e rock português, tipo GNR e Rui Veloso. Captei um bocadinho daí a importância da canção e da minha mãe se calhar captei mais os acordes do Brasil. Foi muito natural. Eu ouvia muita música clássica, também. Todos nós nascemos e de repente estão-nos a dar música. Se a música é má, pode não ser o estímulo certo. É estranho dizer que há uma música boa e uma música má porque isso é super ambíguo, mas se calhar do que falava era de uma música se calhar mais pobre em termos harmónicos. Quando o que se recebe é isso, se calhar não se desenvolve ou abre tanto o ouvido…
Uma música mais esquematizada, mais fácil?
Exacto. Ou mais comercial. Eu vejo agora imensas mães a pôr aquelas músicas ‘popalhonas’ aos filhos [imita o som de uma batida de pop eletrónica — ou EDM]. O que é que eles estarão a pensar quando estão a ouvir aquilo em bebés?
Nessa entrevista contava também que inicialmente cantava em escadas. Era mesmo assim?
Era, sempre tive um bocado isso, de cantar na casa de banho e em escadas. Nas escadas do prédio acontecia porque a minha casa em Coimbra tinha uma acústica ótima porque tinha imenso espaço, então fazia uma reverberação enorme. Também cantava na garagem…
Estes é que são (mesmo) os primeiros 7 finalistas do Festival da Canção
O que é que surgiu primeiro, tocar ou cantar? Ou as duas coisas começaram mais ou menos ao mesmo tempo?
Primeiro foi a guitarra, aquele primeiro passo clássico de aprender quatro acordes. O meu pai dá-me uma guitarra e, porque ouvia canções, eu começo a tentar explorar e a tentar cantar por cima. Depois começo a soar melhor, a soar melhor…
Isto já com 16, 17 anos? Ou mais cedo?
Antes, por volta dos 14, 15. Aos 17, 18 já comecei a pensar mesmo que se calhar queria ir para a música.
Até porque pouco depois sai de Coimbra e vem para Lisboa estudar Musicologia [na Universidade Nova]. Houve muitas discussões familiares sobre o melhor caminho para o futuro?
Foi a minha família que me disse: tu vais estudar música. A minha mãe é que me disse isso, que devia ir estudar música porque estava a soar bem e devia ir profissionalizar-me nisso porque [a minha vida] podia ir para um lado que eu não estava à espera. Eu dizia-lhe: não, não, eu vou estudar gestão e vou ganhar dinheiro [ri-se]. Tinha aquela ideia do curso clássico, académico — direito ou gestão. A “perspetiva de futuro”. Ela é que me disse: não, se és feliz a fazer isso porque é que não vais fazer isso? Então passo os meus 17 anos a estudar jazz em aulas particulares em casa para tentar entrar na ESML [Escola Superior de Música de Lisboa]. Entretanto aquilo é muito complicado de entrar e eu não entro, fico em quinto lugar e entram os três primeiros. Foi aí que eu e os meus pais arranjámos um plano B: estudar musicologia e ir ter aulas no Hot Clube, para ter a componente teórica e prática.
No início, em Lisboa, estava “sem rede”?
Vim muito à procura de descobrir coisas novas mas vivia com uns amigos de Coimbra, isso deu-me algum conforto no início. Depois comecei a explorar Lisboa e fiz imensos amigos cá, na FCSH e também no Hot Clube, malta com quem ainda hoje me dou super bem. Por exemplo, o Sal [Salvador Sobral].
Foi aqui em Lisboa que começaram os primeiros concertos?
Dava concertos mas aqueles meio introspetivos de guitarra jazz, sabes? Em que tu vais tocar temas a um barzinho meio deprimente, sem ninguém ouvir. Depois começo a cantar com o Sal em barzinhos e não sei quê.
Lançou recentemente um programa no Youtube, as janeirosessions. Os primeiros convidados foram logo o Miguel Araújo e a Ana Bacalhau — além do Salvador Sobral. Já se conheciam?
Já, aliás, escrevi duas canções para o novo disco da Ana Bacalhau, que se chama Nome Próprio: a “Menina Rabina” e o “Só Eu”. Ela escreveu a letra e eu compus as canções. O que quero para as Janeirosessions é que sejam um porto de abrigo para mim. Quando se lança uma canção ou um videoclip, eles têm 3 minutos e meio: é impossível mostrar a pessoa e o artista que se é, a nossa forma de expressão artística. O objetivo daquilo é tirar o artifício, que é o que eu faço também na “(sem título)” [canção do festival], desconstruir a canção toda e mostrar-me sem merdas. Funciona como porto de abrigo para eu poder cantar à vontade as canções que eu quero, lançar no meu canal, não estar preocupado com quantas pessoas vão ver e convidar pessoas que admiro e com quem tenho uma ligação. Com a Ana e o Miguel já tenho uma relação de amizade, com o Sal também. Quero ao máximo que isto aconteça mais: eu chegar ao pé de alguém e, porque gostei dessa pessoa, convidá-la.
Há aí uma procura de familiaridade, de comunidade?
Sim e da ideia de empatia imediata que se pode criar com uma pessoa. Acho isso muito importante.
[Janeiro e Salvador Sobral nas Janeirosessions:]
Há pouco, enquanto ouvíamos uma das canções do seu primeiro disco, falava do D’Angelo. Agora estamos a ouvir Frank Ocean. Tendo essa inspiração da soul e R&B eletrónico americano, nunca teve a tentação de compor em inglês?
O português surge ainda em Coimbra, onde eu tinha uma banda em inglês. Só que quando começo a ouvir mais malta como o B Fachada e o Samuel Úria e a querer ser meio pseudo-intelectual, a escrever poemas e a beber vinho tinto, aquela coisa meio introspetiva, comecei a pensar: se calhar podia escrever canções em português. E aí começa esse rumo. Quando chego a Lisboa já decido mesmo que vou escrever em português. Mas do momento em que decido isso até momento em que assumo que sou um cantor que faz pop em português demorou um bocadinho.
O momento em que se sente confortável a assumir isso é agora que está a compor o primeiro álbum? Ou quando gravou o primeiro EP já o sentia?
Já, já. Eu aí com 20 anos já estou completamente decidido a escrever em português e lançar-me em Portugal. O EP foi gravado todo em casa, com o Ableton Live [sofware musical], um microfone barato e um teclado MIDI e com um amigo meu, o Samuel Martins, que era meu colega em Musicologia na FCSH. Foi ele que me disse: pá, tens umas canções porreiras, ‘bora’ gravar isso? Ele é que me puxou. Gravámos tudo em casa e depois falei com alguém, já não sei se não foi o Henrique Amaro [radialista da Antena 3], que me disse para falar com o Benjamim [Luís Nunes] para misturar, para o EP ficar um bocadinho mais coeso, menos amador. Ele depois entra na mistura e na masterização, fomos para Alvito e ficámos lá quatro dias…
As primeiras canções nasceram desses poemas anteriores que falava?
Sim, foi uma gestão de recursos. Mesmo neste primeiro disco tenho um refrão ou dois que escrevi há anos e fui buscar por achar que faziam sentido dentro de um poema que tinha acabado de escrever. Costuma acontecer-me também com as melodias, às vezes penso numa melodia, gravo no telefone e deixo-a durante meses. Depois, passado esse tempo todo, estou a fazer outra que me faz lembrar alguma coisa antiga. ‘Qual é que era? Ideia 47 do dictafone?’ [Risos]. Mas para o EP escrevi seis canções durante dois ou três anos e não tinha mais. Para o disco já tive umas 40 canções feitas e escolhi as mais fortes…
Quanto tempo é que demorou a composição e gravação do álbum?
Entre um ano e meio e dois anos. Está a ser feito já há algum tempo. E ainda bem porque sou muito novo, sinto que a minha voz muda a cada dia, a minha forma de cantar também, estou sempre a ganhar maturidade na forma como escrevo e componho, como interpreto. Ainda estou nessa viagem de procura — e acho que vou estar sempre porque quando uma pessoa estagna é que é mau.
O primeiro EP foi gravado em casa. É uma reflexão destes tempos, eles foram importantes na sua ascensão? Não precisou nessa fase de grandes editoras para lançar músicas…
Completamente, a globalização e a velocidade com que a informação se propaga com a Internet trazem essa coisa inacreditável que é fazer música de repente já não estar dependente do estrato social. A música sempre foi uma coisa de aristocracia e agora qualquer pessoa tem liberdade de mostrar a sua expressão artística ao mundo. Eu acho isso genial, acho uma coisa muito boa. No outro dia estavam-me a perguntar algo sobre plataformas como o Spotify e o Youtube e eu acho que o advento da informação é das melhores coisas que aconteceu no mundo. Traz desvantagens — a efemeridade da mensagem, da imagem, até das próprias canções — mas acho que as vantagens muito maiores.
Depois há que aproveitar essas ferramentas. Há quem defenda que não é muito recomendável sobrecarregar o público…
Sim e ter cuidado para não estar sempre a requerer coisas das pessoas. Hoje em dia uma pessoa lança um single e começa a pedir para os outros porem like, partilharem, subscreverem, fazerem ‘reacts’ [vídeos com Youtubers a reagirem ao que ouvem]… É preciso deixar a canção seduzir as pessoas e acho que isso hoje acontece muito pouco. O Rodrigo Amarante, que é um cantor incrível, dizia que queria que o último disco dele, o Cavalo, seduzisse as pessoas. Isso é muito bonito. A música hoje está tão comprimida — e não digo que a minha também não esteja, a Canção para Ti tem beats super comprimidos — que precisa de ter algum conteúdo que seduza os outros. Fazer o público querer vir atrás e não sermos nós sempre a dizer ao público para ir atrás de nós… Isso é muito difícil.
[“Canção para Ti”:]
Escreve e canta muito sobre amor. É assim desde o início?
Sim, o amor e o desamor sempre foram coisas que estiveram muito presentes. Sinto que sou um apaixonado pelas pessoas e pela vida. Chegar uma pessoa ao pé de mim que me mude a vida, que transforme a forma como eu vejo o mundo, é das coisas que mais me apaixona. Estar na vida e ficar constantemente admirado por ela, todos os dias. É mesmo a única coisa sobre a qual eu consigo escrever — o amor, o desamor, as mulheres com quem estou, os amigos, os amigos que vão embora…
“A banana é uma atitude subversiva”
O primeiro contacto com o Salvador Sobral foi no Hot Clube. Identificaram-se logo um com o outro? Têm algumas referências parecidas, a bossa-nova, a canção em português…
Sim e até sinto que o influenciei um bocadinho nessa última parte, de começar a ouvir mais cantautores em português. Como as pessoas o conheceram primeiro sentem que isso é uma extensão da personalidade dele [por causa do tema “Amar pelos Dois”] quando no fundo isso também acontece por coisas que eu lhe mostrei a ele, que ele me mostrou a mim, também… Houve uma empatia imediata entre nós, de repente pensámos os dois: este tipo podia ser super meu amigo. Isso é uma coisa que se sente logo com as pessoas e pelo olhar. Há bocado estava a falar da admiração que tenho pela vida e pelas pessoas e há uma coisa de que eu gosto imenso: estar a escrutinar as pessoas, tentar perceber se são afáveis, boas ou más. E se são assim por natureza ou por uma questão social. Mas voltando ao Salvador, há imensos pontos em comum: eu já estudava jazz antes de o conhecer e ele também estudava, eu já ouvia desde miúdo as bossa-novas e ele também… de repente há ali um comunhão. Aconteceu uma coisa que sinto que não acontece muito aqui em Lisboa mas que eu até encontro cada vez mais, também com o Benjamim, por exemplo, com quem no outro dia estava a tocar em casa, à guitarra. Pensei logo: caraças, é tão bom ter aqui um amigo com quem tocar. Eu tinha muito isso em Coimbra, estava com alguém e ia beber um vinho e escrever qualquer coisa, mesmo que fosse a pior do mundo tentava-se criar qualquer coisa.
Há vários vídeos seus na Internet a tocar com o Salvador Sobral. Depois da semi-final contou que já tinha tocado este tema do festival [“Sem Título”] com ele…
… Sim, cantámo-lo algumas vezes. Quando lhe mostrei já tinha a canção feita, embora não estivesse gravada. Aliás, tinha mais uma parte que depois tirei. Mostrei-lhe a primeira gravação no dictafone e depois mostrei a versão final. Até pensei que se calhar ele podia ajudar com alguma coisa mas depois não aconteceu…
Onde é que fez a primeira versão da música?
Metade fiz aqui em Portugal, outra metade em França, curiosamente, porque os meus pais decidiram ir para o sul de França [de férias] e eu decidi ir também, com o meu irmão. Acabei a música lá, estava até ao telefone com o [Nuno] Galopim que me estava a convencer a interpretar a canção [ri-se]. Não sei se estava a convencer se me estava só a dizer que se quisesse interpretar [podia]. Eu primeiro pensei em compor e dar a alguém mas a própria canção não estava a pedir que a desse e ele estava-me a dizer que cada vez mais o festival era uma montra de cantautores da música contemporânea portuguesa. Estávamos a conversar sobre isso quando eu tinha acabado de compor a última parte da canção, é curioso.
Se o festival não tivesse mudado de formato no ano passado teria pensado duas vezes antes de participar?
Talvez, talvez. Claro que eu venho de um contexto em que conhecia o festival do ano passado. Quando te dizem que estão a tentar reabilitá-lo, que querem que os novos compositores e intérpretes portugueses venham compor e interpretar canções, acho que faz sentido.
Dizia depois da primeira semi-final que o festival era um “ótimo canal de comunicação”…
Sim. Não quero é que as pessoas pensem, por exemplo, que o episódio da banana é um sinónimo de arrogância. Não é. Aquilo basicamente é uma atitude minha subversiva de tentar mostrar irreverência, por exemplo aquela irreverência que havia também no movimento modernista português, o nonsense e a performance em situações do quotidiano. Sou apaixonado por isso. Quando eu saco de uma banana e começo a comer a banana, obviamente que sei o que estou a fazer e tenho a consciência plena do que estou a fazer em direto na RTP. Há todo um humor cínico por trás daquilo que me apaixona. Essa subversão é importante porque desconstrói as próprias jaulas que as pessoas criam ali.
É uma maneira de expressar diferença, individualidade?
Claro, claro! Para mim é muito mais engraçado um tipo chegar ali, perguntarem-lhe qual é a reação ao júri e ele sacar de uma banana e agradecer do que dizer “muito obrigado, gostei imenso, estou muito agradecido”. Nós já vimos isso tantas vezes… isso não quer dizer que não esteja agradecido e gostava que as pessoas percebessem melhor isso. Se calhar dei-lhes logo o 80 mas acho que para uma pessoa ser subversiva tem que provocar logo um bocadinho.
[Janeiro e Salvador Sobral a cantarem o tema “Casa Pré-Fabricada”, dos brasileiros Los Hermanos:]
Sentiu que as pessoas conseguiram separar essa atitude da música?
Tenho tido muitas reações diferentes [ri-se], de algumas muito duras tipo “devias morrer” a outras em que me dizem que sou o maior, que fui lá cantar e cantei super bem. Mas uma pessoa não pode controlar o que as pessoas pensam. Isto pode soar pretensioso mas eu gostava de tocar naquele cérebro fechado que está sentado numa aldeia e fazê-lo pensar. Mesmo que essa pessoa não chegue a ponto de perceber totalmente a minha personagem, gostava pelo menos que ela pensasse assim: “ó filho, porque é que ele deu este título à canção?”. Gostava de fazer as pessoas questionarem-se sobre o que é que que quero dizer com aquilo que fiz e cantei em vez de negarem logo à partida. Tive um bocado medo disso e a minha atuação no Festival da Canção foi muito pensada, mesmo esteticamente: a narrativa por trás da canção está pensada, a minha atitude lá está pensada e não quero que as pessoas pensem que não está porque isso seria pouco genuíno da minha parte. É uma mensagem para que as pessoas se questionem sobre as suas próprias atitudes, as suas ações no quotidiano, sobre se eu quero mesmo fazer e dizer aquilo ou estou a dizer aquilo porque estou a vestir uma máscara… Se houver pessoas a pensarem nisto acho que teremos uma sociedade muito mais orgânica, muito menos standartizada, mais auto-crítica, com maior respeito pela diferença.
“Eu próprio não sabia exatamente que Janeiro ia aparecer ali”
Os headphones e a fita enquadraram-se nessa mensagem?
A fita uso mais ou menos há um ano e meio, os phones foi mais por uma questão funcional, porque os in-ears [aparelho semelhante mas mais pequeno e discreto, que fica dentro do ouvido] estavam-me a cair e eu pensei: “se estão a cair no ensaio, tudo de pior vai acontecer na atuação”. Além de que os phones permitem-me estar ali numa espécie de bolha em que não existem nervos, estou-me só a ouvir a mim próprio e oiço-me super bem. Esteticamente também faz sentido por ser subversivo. Mas eu tenho plena noção de que dei logo o 80. Podia ter dado o 47… Sinceramente, eu próprio não sabia muito exatamente que Janeiro ia aparecer ali, que coisa ia acontecer, que pequenas trips iam surgir.
Tendo essa atitude pensada, tinha alguma expectativa sobre como seriam as reações?
Não, porque quando eu digo que está pensada, não significa que esteja pensada ação a ação. Eu não pensei dois dias antes que vou comer uma banana ali. O que está pensado é essa atitude irreverente, de chegar lá e reagir ao momento e não reagir como as pessoas querem que eu reaja. A minha expectativa era ser fraturante, tocar as pessoas de alguma forma e fazê-las questionarem-se com toda a persona que eu criei. Fazê-lo logo a partir do título da canção e do vídeo de apresentação, que sou eu a andar de bike, que é uma coisa que faço todos os dias. Tudo isso está pensado.
Depois de interpretar a canção sentiu que ias passar?
Não, não senti. Aliás, quando chega a Inês Lopes Gonçalves [da RTP] ao meu lado eu estava completamente à nora. Depois saco da banana e digo que ainda era um ensaio… Claro que sei que não era um ensaio, isso faz parte da personagem mas eu sou muito aluado. Na altura estava sem saber se passava ou não, sem fazer ideia se o júri gostou realmente da canção. Tudo bem que a Ana Bacalhau está no júri e eu já fiz uma canção para ela, mas será que gostou desta canção ou ficou chateada porque está num dia mau? Sei lá, tanta coisa pode acontecer… não estava à espera nem de ter os 12 pontos do júri nem do público depois não gostar nada da canção [teve quatro pontos]. Se calhar não é reflexo de o público não ter gostado mas de uma camada mais jovem não ter votado, não sei. Mas eu gosto de me sentar ali, ficar na bolha e depois logo me dizem o resultado.
Houve outras canções que tenha gostado de ouvir?
Gostei muito da do JP Simões, é muito bonita. Gostei especialmente do tema da Francisca Cortesão, é alta canção, lembra ali um bocadinho Fleet Foxes, aquele folk mas depois em português… E a da Mallu, também era bonita.
O que é que se passou ali na votação [houve um erro e afinal o tema não passou à final]?
Não sei, não me perguntes que eu não faço ideia…
“A melhor estratégia é levar a vida como uma brincadeira total”
Ter estado próximo do Salvador Sobral na fase em que ele ganhou ajudou a enconrar a melhor estratégia para lidar com a mediatização do festival?
Sinto que a melhor estratégia para tudo é levar sempre a vida como uma brincadeira total. Com seriedade, claro, mas percebendo que tudo é tão maleável e efémero e que a única forma [de lidar com isso] é brincar com a vida, com tudo o que existe na vida, ser tudo uma brincadeira constante. Mas claro, foi uma ajuda por exemplo já conhecer o ambiente, porque eu fui à RTP com ele [em 2017] e estava nos estúdios, já tinha visto o palco montado. Tudo bem que uma passa faz ensaios uma semana inteira mas é diferente já ter estado lá e saber como é que aquilo funciona. Essas coisas pequenas que estão na cabeça e sobre as quais nem se pensa ajudam depois aos nervos e ao teu crescimento. É bom, são tudo experiências de vida. Não mudou nada na composição e na escrita mas ajudou a estar lá sem nervos. Quando me sentei para cantar, quando as câmaras começaram a transmitir para as pessoas, eu estava completamente tranquilo. E não me tinha acontecido antes nos ensaios, mas estava a encarar aquilo de uma forma tranquila, calma — tal como o é a minha canção.
Falava no exemplo do Salvador Sobral e em “estratégia” pensando na forma como se pode aproveitar o mediatismo do festival sem exposição excessiva, sem grande prejuízo para a pessoa. Aí, ajudou?
Eu lido com essas coisas de uma forma diferente da dele. Ele fica muito chateado por exemplo com as fotografias, com as pessoas dizerem mal, fica muito triste e eu não. Se uma pessoa quer tirar uma selfie comigo, tiro uma selfie. Mas se calhar aconteceu-lhe tantas vezes que ele teve de arranjar esses mecanismos de defesa. Mas agora estou completamente tranquilo com isso, com as pessoas filmarem-me, tirarem fotografias. Não tenho problemas nenhuns em que as pessoas digam mal de mim, digam que eu canto super mal, por exemplo. É uma opinião e é super legítima, desde que seja mesmo o que se acha. Gosto menos do contrário, de às vezes haver pessoas que chegam ao pé de mim e que eu sinto claramente que estão a fazer um frete para me dizer que a canção foi boa. Prefiro que nesses casos cheguem ao pé de mim e digam-me: olha, até nem gostei, mas parabéns. As pessoas às vezes parece que andam sempre a tentar vender uma imagem um bocado melhor delas próprias, quase perfeita. É um bocado Hollywood… Claro que toda a gente mente a si próprio um bocadinho e eu também, mas tento ao máximo que tudo na minha vida seja o mais real possível. Só assim é que nos podemos sentir bem connosco, acho eu.
Quais é que foram as reações mais curiosas à “Sem Título”?
Não me lembro assim de nada em especial. Vou ser sincero, às vezes vou ver os comentários, não devia ir. Mas houve uma reação muito engraçada ainda nos estúdios, depois da semi-final. Estavam lá umas miúdas e uma delas dizia: “vestimos a minha avó de Janeiro”. Estava a avó com uma fita e com o meu EP lá atrás… Isso é super engraçado, é o melhor em ter uma carreira na música: as pessoas sentirem-se influenciadas, imitarem, cantarem, serem felizes com o que tu fizeste.
Alguns dos compositores que falava no início — o Samuel Úria, o Benjamim e o B Fachada — têm uma carreira mais nos nichos. O seu caso é diferente. Porquê?
Tento equilibrar isso com a minha música, fazer uma pop com conteúdo, que é uma coisa que eu acho cá não existe muito…
Cá?
É raro em todo o mundo, parece-me. E é o caso do Frank Ocean, que está a passar na rádio com o Calvin Harris e ninguém se chateia porque a música é boa, é divertida, para dançares e ninguém está a pensar [que é comercial] porque se percebe quando ele fala que é um gajo íntegro e que depois aquilo faz sentido.
Encontrou alguns traços na maneira como por exemplo a Ana Bacalhau e o Miguel Araújo [que convidou para as Janeirosessions] trabalham que os tenha ajudado a fazer isso, conciliar a música deles com muito público?
O Miguel, por exemplo, tem uma coisa muito curiosa, gosta de não ser um elemento performativo em palco. Até é uma coisa que eu não concordo, porque gosto de o ser mas ele gosta muito daquela ideia romântica de se ir para o palco com as chaves e o telefone no bolso. De repente tens ali um tipo de calças de ganga que chegou ali e veio cantar umas canções para as pessoas.
Não deixa de ser uma construção na mesma…
Não deixa, mesmo. É a forma dele de ser orgânico e eu respeito totalmente. Se me perguntares se ganhei isso com ele, é um bom exemplo de uma aprendizagem que tirei: gosto de ir cantar como estou, se estou chateado canto com a cara mal…
“Gostava de conseguir ter longevidade. Como o Rui Veloso”
Como é que gostava que fosse o futuro? Nesta fase, como é que o vê?
Tenho vários planos… o primeiro é lançar o álbum, depois continuar com as Janeirosessions com músicos bons e com quem me dou bem, que possa levar a minha casa. Depois quero acabar o mestrado — comecei a fazer um mestrado na FCSH [da Universidade Nova] em Comunicação e Artes, para ter um bocadinho mais de conhecimento sobre artes performativas e sobre dança, que está muito aliada à música e sobre a qual ainda não tinha grande conhecimento. Quis ter umas cadeiras mais fora da minha área de conforto. E a seguir quero fazer um doutoramento em literatura, o que é um bocado maluco, não sei se vai acontecer. Para já os planos que tenho são lançar o disco, fazer as Janeirosessions e acabar o mestrado. Numa perspetiva mais a médio e longo prazo gostava de conseguir longevidade, conseguir que as pessoas estejam sempre comigo, ser um daqueles artistas que são tão coesos e lançam coisas tão boas que têm sempre público a segui-los. Queria ter essa longevidade e queria que as pessoas continuassem a cantar as minhas canções — como acontece com o Rui Veloso, por exemplo, que é uma referência minha.
E dar concertos, não?
Exatamente, porra… [risos]. Agora estava-me a esquecer, claro.
A sensação de ter um álbum feito é melhor que a de acabar um concerto que tenha corrido bem?
É porque eu sou altamente perfeccionista. Também gosto muito de dar concertos, gosto daquela espontaneidade de estar a cantar uma canção no momento mas sinto que nunca sai como eu quero porque eu também não tenho uma grande voz, não sou aquele tipo com uma voz grande e incrível… No estúdio sinto que posso mostrar às pessoas exatamente o que quero no tempo que quero mas acho que isso também acontece por causa dos tempos atuais, de se poder fazer tudo na música. Uma vez comecei a chorar aqui em estúdio porque pensei: então, eu tenho tudo… tinha um acesso limitadíssimo a coisas para gravar e de repente tenho aqui coisas físicas, de repente não estou limitado com nada e comecei a chorar porque pensava: eu tenho tudo, o que é que eu vou usar? Fiquei sobrecarregado com o que tinha.
Há pouco mencionava alguma hesitação no momento de entregar a canção do festival a outro intérprete. Houve nomes equacionados?
Não porque a própria canção pedia mesmo a minha interpretação. Se calhar é um bocado egocêntrico dizer isto mas para tirar a pretensão desta frase o que eu não encontrava era um intérprete que servisse a canção, não no sentido de ser bom ou mau, mas de ouvir a canção e pensar: ela é tão minha…
O Festival da Canção em memes: como o Janeiro gosta de banana, o júri gostou dele
O JP Simões fez o mesmo mas usou um humor auto-depreciativo para explicar a decisão: “Decidi interpretar porque não queria impingir a ninguém as minhas idiossincransias”.
Olha, é verdade. No meu caso não foi por isso. Eu esperei que a canção surgisse para decidir, não escrevi a pensar em ninguém e como ela surgiu com o meu estilo, fui eu cantá-la. Além de que não vou estar a mentir: é um canal de comunicação ótimo e eu ir interpretar é bom para mim porque as pessoas ouvem e vão ouvir o EP e o disco. E levou-me a estar a fazer esta entrevista [ri-se]. Agora na final vou tentar ser o mais eu possível mas tentar não ser tão subversivo para não estar a passar uma ideia de arrogância, não quero que as pessoas sintam isso. “I mean well” [em português, algo como: venho por bem]. É uma brincadeira de miúdo, para tirar o peso daquilo, da rigidez que existe ali. E ao mesmo tempo para melhorar a qualidade de vida das pessoas porque acho mesmo que fazer as pessoas questionarem-se é melhorar a qualidade de vida delas. É a única forma que tenho de o fazer, pelo menos. Até podia ser ditatorial estar a aplicar aos outros a receita que uso para mim mas eu não estou a obrigar as pessoas a fazerem isso, estou só a trazer uma nova visão das coisas.
Não há o risco também de que as atitudes depois comecem a ser tomadas só por graça?
Há, por isso é que disse que na final vou tentar ser muito menos subversivo porque não quero que as pessoas achem ou que eu estou a tentar gozar com aquilo, porque não estou, ou que estou a ser arrogante — não queria que passasse essa ideia de que acho que sou superior. O que queria até que as próprias não achem isso delas próprias, que são superiores aos outros, porque somos todos iguais. É difícil explicar isso, o que me deixa um bocado triste, mas também a maioria das coisas que vejo na nossa sociedade e no mundo são tristes, altamente depressivas. Acho que a autenticidade é a maior defesa. Claro que nunca vou ser 100% autêntico porque é impossível, vou estar sempre a vestir uma pequena máscara mas se eu tentar que seja a mais pequenina possível ou a mais próxima de mim é o meu objetivo.